
Um mapa de atalhos a não tomar em pesquisa de ciências sociais e humanidades, bem como em abordagens qualitativas de outras disciplinas científicas.
Viés de seleção dos indivíduos, fontes ou dados para a pesquisa. A escolha a dedo da fonte afeta a qualidade da pesquisa. Quase nunca uma seleção aleatória é possível, especialmente em métodos qualitativos. Por isso uma metodologia de análise robusta, como a hermenêutica, análise interpretativa fenomenológica (IPA), análise do discurso ou outra são imprescindíveis.
Viés da evidência por anedota: é uma variante do viés de seleção. Experiências próximas tendem a ser julgadas como relevantes e mais generalizantes que fontes mais estatisticamente significantes ou mais qualitativamente representativas.
Viés de informação: são vícios na fonte de informação. Muitas variáveis dependem de registros com menor grau de confiabilidade, como a memória humana, veracidade da informação ou objetos descontextualizados. Isso ocorre, por exemplo, com um artefato arqueológico identificado fora de uma escavação controlada.
Viés de não informação: amostras ou populações relevantes não são encontradas e representam tipicamente o fenômeno sob investigação. É o Abel Tasman que concluiu que não existia um continente no Pacífico sul depois de ele cruzar mas não encontrar a Austrália.
Viés de confirmação: os interesses ou a adesão do investigador a um conjunto de hipóteses, pressupostos ou possíveis efeitos da pesquisa são tendenciosos. Essa tendência de somente enxergar o que interessa pode ser remediado por triangulação na coleta, na análise ou na redação do relatório.
Viés da perda do participante ou dos dados incompletos: os dados não coletados poderiam diferir dos dados completos, com tendência de afetar o compreensão total de um fenômeno. É uma espécie do viés de não informação. A triangulação de dados pode evitar isso.
Viés de retrospectiva: é o anacronismo quando depois de uma série de eventos achar que já sabia de tudo desde o início. Por um truque e falha da memória tendemos a ignorar a nossa falta de informação pretérita e superestimar nossos prognóstico. Atire a primeira pedra quem nunca foi bem numa prova que não estudou e com o mesmo empenho foi mal na próxima prova. O informante pode lembrar ou interpretar coisas do passados com esse viés tal como o pesquisador tentar impor suas conclusões em dados coletados em diferentes fases.
Viés de observação ou mensuração: a própria presença do observador afeta o fenômeno (efeito Hawthorne) e os pressupostos inescapáveis do observador afetam sua percepção e cognição.
Viés cultural: a posição e situação do pesquisador afeta sua percepção. As categorias lugar de fala (standpoint), cosmovisão, ideologia, valores, parâmetros estéticos, situação socioeconômica, filiação étnica, expressão linguística, status social, identidade dentre outros tornam toda a percepção tendenciosa. O raciocínio crítico, o agir comunicativo e a reflexividade, bem como o exercício básico de se informar sobre o Outro remediam a esse viés.
Viés de correspondência (erro fundamental de atribuição): é a tendência de superestimar as motivações internas de outros e ponderar as circunstâncias das ações de si ou de seu grupo. Informantes e pesquisadores de fenômenos políticos tendem a atribuir desonestidade ou inépcia aos oponentes enquanto atribuir fatores limitadores externos para a efetividade de seu lado preferido.
Viés da autoconveniência: é o outro lado do viés da correspondência ao superestimar as motivações e traços internos de si e minimizar esses mesmos fatores quando se podera sobre os outros. É se achar a última bolacha do pacote e todos os demais errados.
Viés de prevalência: normalmente é impossível determinar quais categorias a priori são relevantes para uma pesquisa, o que leva a concentrar em uma população e a excluir outras. Um estudo dos efeitos de um remédio para uma doença, mesmo com grupo de controle, pode excluir os curados, os assintomáticos ou os mortos. Nada impede de que o grupo selecionado tenha o pior efeito.
Viés de exposição: é o inverso do viés de prevalência. No problema da indução, o uso exclusivo de categorias a posteriori pode levar às falsas analogias, associação, correlação ou causalidade. É comum a superinterpretação de dados. Outro problema é a inclusão de populações com perfis diferentes em um estudo comparativo. Por exemplo, em um estudo controlado, ao invés de comparar pessoas expostas a uma doença tropical, comparar residentes da Groenlândia e da Amazônia.
Viés de sobrevivência: é considerar dados ou populações que sobrevivem um processo e ignorar os eliminados. Está relacionado com os dois vieses anteriores. É um problema na tendência de somente resultados positivos serem publicados. Casos negativos e pontos fora da curva podem explicar o fenômeno, mas somente um recorte publicado é levado em conta. Disponibilização de dados abertos e relatórios de pesquisa são boas práticas de transparência que auxiliam a lidar com esse viés.
Viés de conformidade coletiva: fenômeno observado por Solomon Asch na psicologia e por Stanley Fish em estudos literários. A comunidade em que estamos inseridos afetam nossa cognição. Ainda, tendemos a valorizar o conhecimento e sujeitos de nossa própria comunidade. Esse efeito (in-group bias) ocorre em escolas de pensamento sectarista bem como em intelectualismo elitista do cientismo. Multidisciplinariedade, interdisciplinariedade e popularização da ciência são balanços para isso.
Viés de atitude: o pessimismo e o otimismo dos informantes e dos pesquisadores afetam como enxegar o copo meio vazio ou meio cheio. Caso o estudo não tenha enfoque em percepção de valores, sentimentos e atitudes, essa é uma tendenciosidade a ser discutida. A axiologia dos informantes e do investigado afetam os resultados. A revisão por pares, o debate das descobertas preliminares e a reflexividade mitigam esse viés.
Viés de temporalidade: as circunstâncias não são as mesmas ainda que o perfil dos informantes ou a questão de pesquisa se mantém constantes. Um mesmo rol de informantes poderiam dar respostas radicalmente diferentes no ínicio da pandemia e depois da fase de vacinação massiva. Esse é o dilema do historiador. Uma fonte histórica nem sempre é acompanhada por informação sobre seu contexto além de mudarem quais as variáveis relevantes ao contexto de cada estágio da recepção da fonte.
Viés de progresso e declinío: tendência de fazer juízos de valor conforme um parâmetro amplo. A fé em que as coisas estão melhorando ou piorando desde X, ou de quanto fora ruim ou áureo uma era passada, acarreta na expressão de dados e em sua interpretação. O contrabalanço para esse viés teleológico incluem evitar fins imaginados, calibrar os critérios avaliativos e contextualizar.
Viés da equivocação: é confundir termos e conceitos, quer dos informantes, quer dos teóricos, quer de si mesmo. Tipicamente segue essa lógica: “o bispo anda somente nas diagonais. O papa é um bispo. Portanto, o papa Francisco só anda na diagonal”. Um domínio bem robusto de semântica ajuda muito, especialmente para pesquisadores metodologias naturalísticas não acostumados com nuances conceituais.
Viés de confusão: resultam de um raciocínio analógico errôneo. São comuns as confusões mapa-território, processo com produto, agência com estrutura e alhos com bugalhos (falsa analogia). Triangulações téoricas e metodológicas são bons amigos para superar esse viés.
Viés de incompletude analítica e ilogicidade: são problemas no processamento lógico da informação. Esse viés inclui análises incompletas, conclusões sem suporte das premissas (non sequiturs), tautologia e muitas outras falácias lógicas formais. Rigor lógico e discussão com pares são essenciais.
Viés de romantização ou efeito halo: a tendência de ver aquilo enfocado com uma carga emocional, normalmente positiva. Estudos intensivos com pessoas com comportamentos socialmente reprováveis podem gerar simpatias que pesarão na balança. Ser empático e humano é diferente da advocacia. Um investigador pode ficar do lado do criminoso e negligenciar a vítima. Reflexividade e distanciamento são técnicas que remediam tal viés.
Viés da aquiescência ou da amabilidade: os informantes tendem a comunicar aquilo que imaginem que o investigador queira ouvir. É o viés da romantização feito pelo outro lado da pesquisa. Em entrevistas longas os sujeitos podem ficar cansado e atropelar nas respostas para se ver livre logo, como parte do viés da fadiga. Anotar o contexto e impressões não verbais são importantes.
Viés do questionamento (petição de princípio): perguntar o que se quer ouvir. É o detetive antiético e incompetente que interroga o suspeito sem evidências de autoria: “Por que você fez isso?”. Testar questionários quando possível e fazer perguntas secundárias reformulando a fraseologia em entrevistas abertas permitem que o ponto a ser investigado tenha maior representatividade.
Viés de submestimar o informante: supõe-se que um sujeito possua maior informação sobre algo que o próprio pesquisador, caso contrário, sequer haveria motivo para a investigação. Por outro lado, a competência do pesquisador é dominar as técnicas que permitam traduzir as informações em conhecimento científico. No entanto, o informante pode ter conhecimento técnico maior e melhor que o próprio pesquisador, invalidando aspectos do desenho da pesquisa (pressupostos, métodos, referenciais teóricos, conceitos nos questionários). A reflexividade e atitude de relação simétrica e colaborativa entre pesquisador e informante são os ideais para lidar com esse viés.
Viés de sequenciação: a ordem das perguntas ou da análise podem afetar os resultados. Parte disso é pelo viés do questionamento. Variação randomizada em questionários, mudanças nas ordens de entrevistas semi-estruturadas, bem como diferentes técnicas de análise auxiliam em calibrar essa tendenciosidade.
Viés da fadiga ou da saturação: tanto o informante quanto o pesquisador podem cansar-se ou estar em um momento indisposto. Para o investigador esse viés é periogoso porque o enfado pode vir na fase de análise. Um equilíbrio entre atividades e mesmo vida pessoal e trabalho ajudam. Poupar o tempo do entrevistado também ajuda.
Viés da heurística da disponibilidade: a tendência que temos de otimizar nossas respostas. A resposta mais rápida de ser lembrada não necessariamente é a mais satisfatória. É um viés que afeta tanto o pesquisador na análise ou o informante na coleta.
Viés do datismo: nem sempre possuir mais informação vai ajudar a compreender o fenômeno. O mini-ensaio de Borges “Sobre o rigor da ciência” reflete isso. Ocorre nas falácias de mover as traves ou demandar um rigor excessivo quando eticamente ou metologicamente inviáveis, por exemplo, exigir experimentos com grupo de controle para uma doença letal quando se há remédios com potenciais de cura disponíveis. Um bom planejamento e uma análise sensata de pesquisa auxiliam nisso.
Viés da clivagem ou da falsa dicotomia: reduzir um fenômeno a duas alternativa autoexcludentes. Esse “oito ou oitenta” é bem mais comum do que muitos pesquisadores gostam de admitir. Devido sua dimensão cognitiva, uma triangulação teórica repara muito disso.
Viés da ancoragem: é dar crédito à primeira informação ou explicação que recebeu e julgar todas as informações posteriores com essas lentes iniciais. Esse viés dificulta a aceitar novas informações que contradigam ou refutem a primeira informação. Uma variação é o apego à autoridade, quer de acadêmicos renomados, quer do consenso científico, quer da escola de pensamento na qual se foi treinado. Uma abertura crítica, honesta e cética é bem-vida. Um raciocínio e inferência bayesiana contrabalanceia isso.
Viés do focalismo: é concentrar em uma parte de um todo. Como não conseguimos processar muita informação, tendemos a concentrar em um subconjunto que pode ser representativo ou não. Muitos confudem a amostra com microcosmo. É tentar imaginar o quebra-cabeça somente por uma peça.
Viés de falsos parâmetros: O teorema de Ramsey demonstra que de um conjunto de dados emergirão vários parâmetros. Nem todos esses parâmetros são válidos, por isso, qualquer tese robusta requer triangulações e falseabilidade.
Viés de recorte: conhecido como cherry picking ou dicta probantia, é o uso de dados selecionados, intencionalmente ou não, em um suporte a uma tese. Pode ser por uma combinação dos vieses acima. É comum em pesquisa bibliográfica. Para remediar é preciso de uma leitura crítica e sistemática além de uma mera citação superficial.
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