Essencialismo, reducionismo e construtivismo

SOBRE O RIGOR DA CIÊNCIA – Jorge Luis Borges

Naquele Império, a arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma única província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do Império uma província inteira. Com o tempo, estes mapas desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos dedicadas ao estudo da cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado mapa era inútil e não sem impiedade entregaram-no às inclemências do sol e dos invernos. Nos Desertos do Oeste perduram despedaçadas ruínas do mapa habitadas por animais e por mendigos; em todo o país não há outra relíquia das disciplinas geográficas. (Suárez Miranda. Viajes de Varones Prudentes, libro cuarto, capítulo XIV, Lérida, 1658.)

supercordas

O que define o índio no Brasil? Pertencem os ‘pardos’ do IBGE ao mesmo grupo que os Afro-Americans dos EUA? Gêneros são socialmente definidos ou coincidem com o sexo biológico e a sociedade altera suas significações? Quais são os limites da religião, da moral e da magia?

Parece a versão século XXI da picuinha escolástica entre realismo e nominalismo, mas a questão de ontologia social afeta a vida prática. Políticas públicas são tomadas em critérios essencialista, reducionista ou social construtivista, bem como essas abordagens afeta as investigações e seus resultados nas ciências sociais e humanas. Isso se deve ao fato que essa questão delimita o objeto de estudo nessas ciências. Como consequência, reverbera em normas jurídicas e em discursos políticos.

Para desemaranhar o confuso novelo da realidade há de se achar estratégias simplificadoras. Como no curto conto de Borges em epígrafe, o aumentar a precisão do instrumento teórico de pesquisa pode por torná-lo inútil ou inviável. Desse modo, informado com os pressupostos de ontologia (o que é a realidade), de epistemologia (o que dessa realidade é possível de se conhecer) e de método (como conhecer essa realidade) o pesquisador acaba por restringir seu estudo a um objeto trabalhável. Essa restrição metodológica da realidade assume os tipos de essencialismo, reducionismo ou construtivismo.

Essencialismo

O essencialismo é a crença que objetos possam ser categorizados de acordo com propriedades necessárias. Essas propriedades são definidas por observação de seus atributos comuns ou por abstração de uma ‘essência’ representativa. Esses elementos categorizadores do objeto apresentariam uma essência, a qual seria invariável senão perderia sua identidade.

Os pressupostos do essencialismo complicaram-se com a questão dos universais. Na Idade Média, pensadores realistas argumentava que os universais, ou seja, as características essenciais abstratas de um ser qualquer eram tão reais quanto a matéria tangível. Por outro lado, os nominalistas replicavam que eram apenas nomes, convenções sociais para etiquetar uma abstração criada.

Tipicamente, no essencialismo os objetos são definidos por um número mínimo de critérios: brasileiro é quem nasça no Brasil (jus solis), consequentemente naturalizados e filhos de brasileiros nascidos no exterior são vistos como gringos. Judeu, por critério rabínico, é quem seja filho de mãe judia (mas não define mãe judia, pressupõe-se uma corrente genealógica que se perde no tempo). Comunista ou neoliberal depende de quem esteja xingando.

O essencialismo caiu em desfavor das ciências sociais e humanas, embora seja a perspectiva mais vigorosa a ser empregada no discurso político, publicitário e mesmo no direito.

No direito, por vezes a transformação de fatos sociais em fatos jurídicos por meios essencialistas geram absurdos. É como a cama de ferro de Procusto que amputa ou estica o hóspede para fazer cabê-lo no leito. Por exemplo, tentar definir juridicamente o que é religião em termos essenciais como “religião é a associação para fins de culto de seres sobrenaturais” excluiria religiões sem instituições supra-individuais permanentes, sem ritos definidos ou sem crenças em entes sobrenaturais.

Como se pode ver, o risco do essencialismo é incorrer em generalizações superficiais. Hoje, em algumas disciplinas, como na antropologia, chamar alguém de essencialista é praticamente insultá-lo.

Todavia, a própria existência da distinção entre essencialismo e construtivismo parece ser socialmente construída e regida por termos essencialistas. O filósofo Wolfgang Spohn (n.1950) não vê oposição entre essencialismo e construtivismo. Para Spohn, o essencialismo cria meios de individualizar objetos em uma matriz socialmente construída.

Reducionismo

O reducionismo normalmente não aparece em dicotomia entre essencialismo e construtivismo. Essa abordagem seria reduzir a complexidade em fórmulas previsíveis expressas matematicamente, atentando-se principalmente para as relações causais. É tipico das ciências naturais ou exatas e devem-se aos métodos de Ockham, Descartes e Newton. Nas ciências sociais e humanas o positivismo propõe a descobertas de leis ou fórmulas nomotéticas. Comte, Spencer e Marx explicaram a sociedade com meios reducionistas, abordagem que seria rejeitada por sociólogos como Durkheim e Weber ou antropólogos como Boas ou Malinowski devido seu determinismo subjacente.

Entretanto, o reducionismo mecanicista não deve ser inteiramente abandonado. Modelos da microeconomia, a antropologia física e o advento da big data em áreas desde a psicologia até estudos de consumo possuem capacidade explicativa, demonstrando que há sim elementos nomotéticos expressos em formas reducionistas.

O reducionismo não leva em consideração o contexto ou a soma das características individualizantes do objeto. Dessa forma, informações complexas foram traduzidas de forma úteis à ciência. Por exemplo, Lineu considerava a morfologia dos seres vivos em sua taxonomia, mas não se preocupava com as características intrínsecas ou essenciais dos animais. Da mesma forma, Mendeleyev considerou os elementos com suas características, mas não os elementos em relação entre si na matéria ou a “essência” em um sentido alquímico dos elementos. O resultando foi a descoberta da correlação entre os elementos e suas propriedades dispostas na tabela periódica.

O reducionismo não é contérmino ao essencialismo. Há modelos teóricos reducionistas que são lineares em uma cadeia de causa-e-consequência, mas sendo monocausais caíram em desuso desde o final do século XIX. Hoje, modelos algoritmos, métodos quantitativos, a Teoria dos Jogos e a aplicação da Teoria dos Sistemas a um conjunto complexo porém com variáveis limitadas ou sistemas fechados são formas teóricas precisas, ainda que reducionistas.

Construtivismo

Outra perspectiva é o construtivismo. Essa perspectiva considera a realidade independente da mente, mas o conhecimento como uma constante construção humana. Nessa abordagem, o sentido da realidade social é distinto e apreendido (construído) pela mente.

As incipientes ciências sociais do século XIX eram fundadas em um essencialismo: fases discretas da evolução sociocultural, distinção precisa dos diversos povos e “raças”, classes sociais delineada com acuracidade, leis previsíveis guiando as transformações sociais (nomotética) dentre outros paradigmas. Já com Weber (uso de tipos ideais), com a Escola Francesa de Durkheim, Mauss e Lévy-Bruhl (esquemas de categorização ‘primitiva’) se começam a duvidar da precisão da epistemologia positivista nas propostas de definições. Ainda assim, o estruturalismo fundado em um essencialismo subjacente do pensamento ocuparia o palco nas grandes concepções teóricas do século XX. Mas, novas perspectivas da filosofia, da antropologia, da psicologia das percepções, das ciências cognitivas e da teoria social criaram um cenário com sentidos mais complexos.

Filosoficamente, o Wittgenstein (1953) pós-positivista apresentou um meio de criar conceitos realisticamente mais acurados que as categorias mutuamente exclusivas de Aristóteles. Reconhecendo as limitações da linguagem (eis aí um viés nominalista), Wittgenstein apontou que os jogos de linguagem e as semelhanças de família representavam melhor a realidade, cujas fronteiras das categorias de objetos são imprecisas e arbitrariamente determinadas.

Para lidar com as imprecisões do objeto ou capacidade de conhecê-lo, a abordagem construtivista emprega um instrumentalismo. Ou seja, definições e conceitos operacionais. Abre-se parênteses para convencionar quais termos e condições para o estudo de um objeto. Não há uma metodologia de inquirição, mas reconhecem-se a diversidade metodológica, embora haverá um método mais apropriado para cada pesquisa particular.

O giro hermenêutico, a nova retórica, a construção social da realidade de Berger e Luckmann, comunidades imaginadas de Benedict Anderson, o conceptualismo de Anselmo, os tipos ideais de Weber, os arquétipos de Jung, a pedagogia de Vygotsky, a psicologia de Piaget, a história de Władysław Tatarkiewicz, as teorias de gêneros, a teoria dos sistemas e da complexidade, a cibernética, teoria da contingência e o realismo crítico são modelos teóricos fundados no construtivismo.

Uma notável contribuição para essa perspectiva foram os trabalhos dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela. Fundada na premissa que “tudo o que é dito é dito por um observador”, esses autores propuseram o conceito de autopoiesis, a construção reflexa mediata pela interação com o ambiente e com a dinâmica do próprio ser. O conceito foi transferido para a teoria dos sistemas, para as ciências da cognição e para as ciências sociais. Esse modelo explica como a interação individual com a sociedade constrói a percepção e conhecimento, além da própria sociedade.

Alguns teóricos foram além do componente social do construtivismo. Para o filósofo Ernst von Glasersfeld, defensor do construtivismo radical, o indivíduo constrói sua própria realidade.

Um exemplo clássico do construtivismo é o conceito de etnicidade de F. Barth (1969). Ao estudar a identidade étnica no Irã e Afeganistão, o antropólogo Fredrik Barth (1928 – 2016) notou a fluidez da identidade étnica. Os limites de pertença a um grupo étnico não eram sólidos ou bem delineados, variando conforme a transação do indivíduo com outras pessoas. O que constrói a etnicidade seria seus limites com os Outros, não seu conteúdo “cultural”.

Aplicando o conceito de etnicidade ao caso de indigeneidade no Brasil, no país seria índio quem se identifica e é reconhecido como tal pelas comunidades indígenas e pelas sociedade em geral. Em geral, no Brasil não se é índio por critérios isolados de:

  • Descendência: boa parte da população tem ancestrais indígenas, mas não se identifica como tal;
  • Local de morada rural em aldeamento: a população indígenas em áreas urbanas cresce significativa nas últimas décadas, sem contar os não indígenas que vivem em territórios tradicionais indígenas;
  • Língua materna ameríndia: vários ribeirinhos na Amazônia falam o nheengatu sem serem povos tupis e vários povos indígenas perderam seus idomas originais;
  • Uso de tecnologia autôctone: um brasileiro qualquer come pipoca e curte uma boa rede de dormir. O uso dessas tecnologias indígenas não os faz índios. Do mesmo modo, o uso de celulares não faz uma pessoa menos índia. (Aliás, por esse raciocínio, a pessoa seria menos “brasileira” por utilizar um smartphone, uma invenção importada).
  • Possuir um etnônimo: muitos indígenas não tem uma autodesignação, utilizando o nome étnico atribuído a eles ou termos genéricos em português como ‘bugres’.

Portanto, identificar uma pessoa como indígena não é por subsunção essencialista ou reducionista, mas verificar quais elementos constroem sua identidade em relação a sua comunidade e aos outros. É compreender os mecanismo de pertencimento coletivo. Em uma investigação de campo sobre indigeneidade, o ideal seria levantar:

  • Quais critérios os não índios da região usam para identificar os índios em questão?
  • Quais critérios a própria comunidade estudada usa para autoidentificação?
  • Como esses critérios foram tratados por diversas instituições (indígenas ou não), locais e nacionais, diacronicamente?
  • Como são tratados os híbridos/mestiços? Como são tratados a comunidade em estudo em relação a outros grupos? Seria possível transitar entre diferentes identidades?

Com esses questionamentos emic/etic seria possível delinear com segurança as fronteiras identitárias com um conceito construcionista. Agora, imagine a complexidade, o tempo dispendido, o trabalho de realizar escavações arqueológicas, gravar e transcrever histórias orais, registrar genealogias, decifrar documentos em arquivos não indexados, codificar e cotejar respostas. Além de avaliar criticamente, separar bravatas da realidade e traduzir os resultados para outro jargão, provavelmente jurídico. Por essa razão, um bom laudo antropológico é algo a ser respeitado.

Experimente responder as questões iniciais deste ensaio com esse método para testar sua “facilidade”.

* **

Essas distinções de essencialismo, reducionismo e construtivismo são ferramentas cotidianas para o trabalho do cientista social ou do pensador de humanidades. Na interpretação de fatos culturais requer-se aplicar criticamente uma das três perspectivas, conforme for apropriado.

A simplificação operacional da realidade a ser estudada não é uma tarefa fácil. Há muitas pesquisas inválidas, mal feitas ou parciais devido à falta de consciência desses instrumentos analíticos. Tanto o essencialismo, o reducionismo e o construtivismo podem gerar construtos teóricos reificados. Por esse motivo, deve-se manter uma auto-vigilância crítica de como a concepção teórica se relaciona com os referenciais.

SAIBA MAIS

BARTH, Fredrik. Ethnic groups and boundaries. The social organization of culture difference. Oslo: Universitetsforlaget, 1969.

SPOHN,Wolfgang. How essentialism properly understood might reconcile realism and social constructivism

WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations /Philosophische Untersuchungen. 1953.

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