Um dos mais influentes intelectuais públicos contemporâneos, o filósofo Jürgen Habermas (n.1929) representa um retorno à confiança na razão dentre os pensadores críticos. Contrastando com pós-modernistas (Lyotard, por exemplo), Habermas espera que conceitos de justiça ou liberdade possam ser aplicados tanto globalmente ou em uma dada sociedade desde que incorporadas em instituições solidamente democráticas. E o meio para a busca desse projeto do iluminismo seria a ação comunicativa, cuja força coercitiva e legítima é o direito.
Sua teoria da ação comunicativa contrapõe-se à razão instrumental, orientada para a consecução de fins egoístas. Essa última, proposta por Horkheimer, retrata o uso da razão por ideólogos positivistas, sem se ater ao conteúdo ou valoração. Em um exercício de pensamento proposto por Habermas, imagine que alguém racionalmente te persuada a fazer algo moralmente inócuo: emprestar dinheiro, por exemplo. Assim agindo, emprega a razão para te convencer, mas omite que utilizará esse dinheiro para comprar uma arma que será usada em um assalto. Quem emprestou o dinheiro passa a ser moralmente implicado, mas se houvera uma comunicação apropriada, possibilitaria o uso ponderado da razão. Isso seria o agir comunicativo. Negligenciar ou se omitir de debates sobre questões de interesse público são riscos para a concretização da justiça almejada.
A ação comunicativa pressupõe o diálogo, a crítica e o contraste das ideias. Nem sempre será consensual, mas chegará a resultado acordado entre os interlocutores.
Nesse debate, a mediação das instituições do direito —seja como ideal na forma de dever-ser, seja como as regras para o próprio debate —realizaria um papel vital.
O PENSADOR
Habermas, nascido em uma família de classe média que aderiu ao nazismo sem muito ponderar ou se entusiasmar, chocou-se com as atrocidades do regime de Hitler publicizadas após a Segunda Guerra Mundial. Principalmente, espantou-se pela apatia ou apoio passivo dos alemães ao nazismo, mesmo depois da disseminação dessas atrocidades. Esse desapontamento minou sua inicial admiração pelo pensamento de Heidegger (1889 —1976).
Estudante de uma rápida carreira acadêmica, Habermas estudou filosofia em Göttingen, Zurique e Bonn doutorando-se em 1954 com uma tese sobre Schelling. A partir daí, foi assistente de Adorno em Frankfurt (1956), interagindo criticamente com as ideias marxistas reinterpretadas pela Escola de Frankfurt. Lecionou em Marburg (1958) e colou grau de Habilitation (livre-docência) (1961) em Heidelberg, onde foi professor. A recusa de Horkheimer em aprovar sua tese de Habilitation “A transformação estrutural da esfera pública” marcou o rompimento de Habermas com a primeira geração da Escola de Frankfurt. Todavia, Habermas manteve o projeto filosófico interdisciplinar de diagnóstico dos problemas sociais da modernidade dessa escola crítica. Enfocou a livre interação interpessoal na vida cotidiana enquanto meio de impulso emancipatório e concepção de verdade socialmente aceita.
A partir de 1964 Habermas lecionou e ocupou funções de direção acadêmica na Universidade de Frankfurt e no Instituto Max Planck em Starnberg até aposentar-se em 1994. Na década de 1990 foi professor visitante nos Estados Unidos, passando a se interessar em questões da justiça de acordo com Rawls, uma teoria pragmática de significado e com o constitucionalismo norte-americano. Além de seus livros obscuros (mais fáceis de ler que Heidegger, mais difíceis que Wittgenstein), seus artigos em jornais de grande circulação na Alemanha influenciaram os discursos políticos em defesa de uma democracia plural firmada em valores de justiça e liberdade, ainda que confinada nos limites da razão.
O PROJETO DE MODERNIDADE E A AÇÃO COMUNICATIVA
Como mencionado, Habermas rejeita a falta de referenciais éticos do pós-modernismo descrito por Lyotard. Os ideais de justiça e democracia propostos pelo iluminismo teriam sido capturados para a legitimação do capitalismo industrial europeu sob um verniz de liberalismo. Todavia, seria possível um resgate desses ideais e aplicação a uma comunidade ideal de comunicação mediante um esforço cooperativo de entendimento, a ação comunicativa (ou agir comunicativo, conforme se traduza kommunikativen Handelns). Para tal, essa comunidade ideal de comunicação superaria os limites impostos pelo trabalho e poder.
O agir comunicativo distingue-se, portanto, do agir estratégico pelo fato de uma coordenação de ações bem sucedida não se apoiar sobre a racionalidade orientada para fins dos planos de ação sempre individuais, mas sobre a força racionalmente motivadora de realizações de entendimento, ou seja, sobre uma racionalidade que se manifesta nas condições em que um consenso pode ser alcançado de um modo comunicativo. (Habermas, 2004, p. 85)
Admitindo a crítica pós-modernista da arbitrariedade das palavras, Habermas insiste que ação comunicativa é sim possível (apesar de, em sua teoria, ela colocaria as relações inevitáveis de poder entre parênteses nesse processo). Aproximando-se do pragmatismo epistemológico de Rorty, Habermas apresenta critérios para a construção consensual dos sentidos. Para isso seria necessário o uso da razão comunicativa, cujas condições seriam (apud TEMER e NERY, 2009, p.96):
- Verdade: o enunciado deve ser verdadeiro;
- Legitimidade: respeito ao sistema de normas vigentes;
- Veracidade: a intenção expressa deve coincidir com a intenção do falante.
O DIREITO NO AGIR COMUNICATIVO
Com esses conceitos de ação comunicativa, razão comunicativa e comunidade ideal de comunicação apresentados, entende-se que o direito passa a ser um meio de produção do consenso racional nas sociedades complexas.
A superação do Estado da força pelo Estado do Direito estabelece regras para esse debate. Dessa forma, o direito liga a facticidade (o que ocorre no mundo “real”) à validade (o que deveria ser racionalmente válido). O direito passa a cumprir o papel de guardião e aplicador da ética em uma sociedade democrática.
Entretanto, a ação comunicativa não produz por si só as normas jurídicas ou sociais. Serve principalmente como a matriz de validação dos valores juridicamente tutelados.
Em termos práticos, não só legisladores e jurisprudentes fazem o direito. Formadores de opinião e, se usarmos os conceitos de construção cotidiana de De Certeau, cada interlocutor na sociedade fundamentam o processo decisório aceito em uma sociedade.
No entanto, o poder econômico e político enviesam essa ação comunicativa, mas o meio de lidar com essa interferência é o uso da própria razão comunicativa. Dessa forma, em sociedades democráticas, a ação comunicativa transmuta-se em poder.
A teoria de Habermas contrapõe-se às teorias positivistas e jusnaturalistas em que o direito existe como um sistema independente, com sua própria lógica. Semelhante à neo-retórica, ao sociologismo jurídico e à teoria tridimensional do direito, Habermas acrescenta importância a fatores sociais, no caso fatores de comunicação, no processo e no sustento do ordenamento jurídico. Desse modo, tanto a teoria crítica e quanto as ciências sociais, inclusive o direito, devem-se insistir em adotar um dever-ser orientador.
Por esse processo a ética de Aristóteles e a dialética de Hegel voltam à discussão da filosofia do direito por meio da razão comunicativa. Em uma sociedade plural cujos valores se tornaram fluidos, a redução da hegemonia de um único sistema religioso na maioria das sociedades ocidentais, o direito passa a ser o principal meio organizador da vida social.
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