Afinal, o que é fenomenologia?

Sabe aquelas coisas que você conhece muito bem, mas não consegue explicar? Tipo o sabor de uma fruta, a lembrança da cor vermelha, a sensação de uma experiência religiosa ou o carinho por uma pessoa amada? Podem parecer coisas impossíveis de se comunicar. Porém, a fenomenologia discorda: todos os fenômenos são potencialmente descritíveis e compreensíveis por outras pessoas.

Movimento proposto pelo filósofo alemão Edmund Husserl (1859—1938), a fenomenologia traduz os mais íntimos processos de conhecimento e da emoção de modo que outros sujeitos consigam simpatizar com as mesmas percepções.

A fenomenologia abarca coisas diversas. O termo pode indicar um movimento filosófico, uma disciplina que investiga a experiência, um paradigma científico e um método de pesquisa qualitativo.

Esse conjunto relacionado sob a designação de fenomenologia teve ramificações em várias áreas, principalmente como um programa de pesquisa nas humanidades e nas ciências sociais por influência de Alfred Schütz (1899 —1959). Ainda teve um impacto significativo na psicologia e na psiquiatria. Em todas essas áreas, o enfoque em fenômenos afetou concepções de realidade (ontologia), de meios de apreensão do conhecimento (epistemologia) além da justificação da investigação social (metodologia).

Afinal, o que é fenomenologia?

A fenomenologia agrega um conjunto de pressupostos que centralizam na análise da consciência de como os fenômenos são percebidos.

Utilizando a antiga metáfora da caverna, o foco da fenomenologia não seria nos objetos que projetam as sombras, mas como os indivíduos percebem essas projeções. Em outras palavras, os fenômenos não seriam os objetos em si, mas as experiências. Contudo, quanto à experiência, o termo fenômeno refere-se a duas acepções.

1.       O fenômeno pode ser a experiência individual comparada com suas próprias experiências anteriores (acepção de Husserl e Merleau-Ponty).

2.       O fenômeno também seria a experiência em contraste com seu contexto (acepção de Heidegger e Ricoeur).

Esse foco no fenômeno ampliou a capacidade explicativa científica para além do fenomenismo – a redução da compreensão do mundo somente aos objetos que fossem “objetivamente” verificáveis, mensuráveis e percebidos. Contrário ao fenomenismo, a fenomenologia valoriza a subjetividade como conhecimento cientificamente válido e confiável.

Nessa separação entre o fenômeno e o Ser, a verdade proposicional de um conjunto de crenças passa a não ter importância, pois essa disciplina descreve perspectivas pessoais.

Para a fenomenologia, a realidade percebida não existe separada da pessoa. Entretanto, não se trata de um idealismo subjetivo, pois constata um universo de significados compartilhados e experiências emergentes. Ou seja, o significado e a intencionalidade existem além do sujeito individual.

A abordagem fenomenológica investiga a natureza e significado da realidade percebida mediante a experiência ou a consciência. No entanto, suas generalizações são baseadas em fenômenos particulares, não em essências abstratas e universais. A essência na fenomenologia não é fenomenista ou reducionista, mas foca no que é estruturado, percebido e característico de fenômenos de variados graus de complexidade. Assim, essência na fenomenologia não é ideal, mas sentidos essenciais.

Fenômenos em foco

Referente a sua epistemologia, a pesquisa fenomenológica não propõe normatividade (aliás, convida a suspender julgamento de valores), tampouco visa encontrar correlações e causalidades. Antes, é um projeto descritivo, no qual o ponto de vista individual é analisado com base em estruturas de intencionalidade, percepção, memória, imaginação, pensamento, emoção, desejo, volição, agência, corporalidade, atividade social e ação corporificada. Desse modo, o resultado não é a percepção idiossincrática de um fenômeno, mas essência – aqui entendida como os sentidos fundamentais compartilhados na experiência vivida pelos indivíduos e dotados com estruturas internas invariáveis.

As essências seriam explicáveis em seus próprios termos e independentes de paradigmas externos.

O objetivo da fenomenologia (tanto a inquirição filosófica quanto o método de pesquisa) é descrever de modo rico e denso as experiências do “mundo vivido”. Este mundo vivido ou mundo da vida (Lebenswelt) consiste nas percepções antes da reflexão crítica ou teórica pelos sujeitos, incluindo todos os preconceitos, as coisas tacitamente aceitas e as categorias tidas como naturais. Essa abordagem rejeitam os pressupostos da racionalidade cartesiana da primazia daquilo que for apreensível pela razão dedutiva.

Ao suspender as opiniões pré-estabelecidas ou colocá-las entre colchetes, seria possível chegar a uma única descrição essencial de um fenômeno.

Essa descrição possibilita descobrir a relação entre as estruturas essenciais de um ato (noesis) e as entidades correspondentes (noema). Nessa relação, a intencionalidade seria o processo direcionando o sujeito ao objeto, permitindo encarar as estruturas últimas da consciência. Desse modo, a distinção subjetivo e objetivo perde importância, embora predomine o primeiro.

Ainda que em cada cabeça haja uma sentença, as experiências são compartilhadas por intersubjectividade. Se sentimos calafrios quando os protagonistas em um filme de terror estão em apuros é porque compartilhamos um universo de processos mentais com os quais simpatizamos com os pensamentos e emoções alheias.

Ao descrever esses fenômenos, a pesquisa fenomenológica possibilita retornar às experiências automatizadas, relembrar sentidos esquecidos ou conceitualizar novas maneiras de se ver o mundo.

Desenvolvimento da Fenomenologia

Como um programa de pesquisa e um movimento filosófico, a fenomenologia deve sua origem ao trabalho de Edmund Husserl. Este pensador inicialmente treinado em matemática e lógica, direcionou seus interesses para filosofia da mente e para a justificação filosófica da psicologia. Escreveu obras como Investigações lógicas (1900-1901); Lógica formal e transcendental (1929); Meditações Cartesianas (1931).

Husserl colaborou com Frege na busca por um rigor na filosofia, mas sem reduzi-la aos métodos das ciências naturais. Assim, a fenomenologia é irmã mais velha da filosofia analítica e antecessora da hermenêutica filosófica. Ao considerar os fenômenos como soma dos pensamentos (algo positivo) e da intencionalidade, evitou o pirronismo, o relativismo e o “psicologismo”, a redução de todos os problemas conceituais a uma mecânica psicológica.

Com uma terminologia difícil e confusa, Husserl iniciou a fenomenologia transcendental criticando os dualismos cartesiano (mente e corpo), kantiano (fenômeno e númeno) e hegeliano (o absoluto e o realizável). A explicação de fenômenos naturais pelas ciências deixavam muitos pressupostos sem explicação, entre eles a experiências dos sujeitos. Ao invés disso, buscou a verdade fenomenológica, rejeitando que fora dos indivíduos existisse algo que fosse compreensível. Desse modo, as descrições concretas individuais passariam a um nível transcendental, embora rejeitando localizar os fenômenos em categorias pré-estabelecidas.

Crítica

As críticas à fenomenologia revolvem ao paradoxo de ser muito empírica para ser filosófica e muito vaga para ser científica.

Em uma crítica de circularidade, a fenomenologia pressupõe um horizonte no qual se manifesta a identidade e a diferença. A diferença ou alteridade permite que possamos perceber as coisas, por exemplo, essas letras são perceptíveis porque estão em contraste e se diferenciam de um pano de fundo de outra cor. Como nenhum fenômeno existe em um vácuo, a própria diferenciação parece um processo circular: ocorre em qual pano de fundo?

Na crítica ao método científico, vários fenomenologistas cometem o erro de abrir espaços indevidos ao fundamentalismo, a um niilismo pós-moderno e ao obscurantismo anti-ciência quando o que fora mirado, na verdade, seria o cientificismo.

O método fenomenológico

Durante a pesquisa, o objetivo é retratar a percepção consciente dos sujeitos e depois descrever as estruturas que emergem reduzidas em essências. Como método de pesquisa qualitativo, a fenomenologia é indutiva, indivualista e analítica. As técnicas de coleta de dados geralmente são as típicas dos métodos qualitativos, como entrevistas semi-estruturadas, entrevistas aprofundadas, diários e discussões em grupos de foco. Na fase de análise que um método distintivamente fenomenológico se distingue, entre eles pela aplicação da Análise Interpretativa Fenomenológica (Interpretative phenomenological analysis, IPA) ou outro método estruturado.

Diante dos dados, o pesquisador deve suspender (bracketing) os vieses individuais mediante a aceitação dos fenômenos como reportados. A epochê, a suspensão de juízo, é uma trégua e a assunção da plausibilidade de qualquer fenômeno conforme percebido pelos seus sujeitos.

Este “entendimento ingênuo”, por exemplo, um informante que diz dançar todas as manhãs com um hipopótamo vestido de tutu é a base para a análise. Não interessa a factualidade do fenômeno.

Em seguida, o texto transcrito das notas da coleta de dados são separados em categorias (coding), abstraídos em temas. Os temas e categorias resultantes são organizados em uma estrutura que descreve melhor o fenômeno. Essa divisão em temas e categorias permite a comparação com outros informantes e a literatura.

Outro foco da análise pode ser em metáforas e analogias empregadas na conceptualização dos fenómenos. É perguntar o que lembra o gosto de uma fruta, qual o sentimento uma pessoa evoca ou quais as expectativas quando vai realizar uma performance pública.

O foco pode ser na intencionalidade, na comunicação, nas coisas significantes aos sujeitos, nos atos noéticos (intencionalidade da consciência, como nas crenças e desejos) e objetos noemáticos (os resultados dos atos noéticos, como aquilo que é crido e desejado).

A síntese integra as essências estudadas. Para cada fenômeno investigado, é possível que surjam diferentes ontologias, mas validados por uma crítica hermenêutica. O resultado é uma descrição rica dos fenômenos, aumento da empatia e intersubjetividade e a entrada no mundo da vida (Lebenswelt).

Uma forma de conceitualizar essa metodologia foi proposta por Gabriel Marcel. O método fenomenológico propõe a aquisição do conhecimento científico em duas fases. Inicialmente, a reflexão primária seria uma quebra da unidade da experiência. Os fenômenos são percebidos como uma totalidade pelo sujeito como, por exemplo, ao escutar uma música ou ver um mosaico. Assim, para ter uma compreensão científica do fenômeno é necessário fazer uma separação do sujeito do mundo. Imagine-se concentrando-se no rítmo ou timbre de uma música ou no pontilhismo de uma pintura. Por último, a reflexão secundária recupera a unidade da experiência original. É uma recordação. É olhar a pintura ou escutar uma música já ciente de seus elementos de composição.

O método fenomenológico influenciou e em parte é similar a etnografia, a etnometodologia e a teoria fundamentada (Grounded Theory).

Legados

O movimento causou uma virada radical no modo de se fazer filosofia, bem numa época em que a excessiva confiança em uma visão de mundo mecanicista. Essa confiança, típica do positivismo do final do século XIX e início do XX, colocava muitas esperanças no progresso e reduzia o ser humano a  um amontoado de matéria biológica a ser controlado por processos tecnológicos. Ao demonstrar que havia algo que nos simpatizamos e nos reconhecemos nos outros, a fenomenologia destacou o lado humano da realidade.

O sucessor de Husserl Martin Heidegger (1889–1976) que situou historicamente os fenômenos e abriu caminhos para uma compreensão hermenêutica deles. Por sua vez, Heidegger, influenciou a fenomenologia hermenêutica de Hans-Georg Gadamer (1900–2002), Emmanuel Levinas (1906–1995), Jean-Paul Sartre (1905–1980), Maurice Merleau-Ponty (1908–1961) e Jacques Derrida (1930–2004). Entretanto, muitos desses autores recusavam (e criticavam) a fenomenologia transcendental de Husserl.

O movimento teve seu auge nos anos 1930 e meados dos 1940, quando deu lugar ao existencialismo, ao estruturalismo e depois à teoria crítica, à hermenêutica filosófica. Com a mediação de Alfred Schütz, a fenomenologia foi a base para etnometodologia de Harold Garfinkel, o interacionismo simbólico de Erving Goffman e o construtivismo social de Berger e Luckmann. Em campos psicoterapêuticos, influenciou os trabalhos de Ronald Laing e Ludwig Binswanger. A partir dessa época, outros influenciados incluem Paul Ricoeur, Max van Manen na pedagogia, a fenomenologia realista do jusfilósofo Adolf Reinach. As teorias e políticas existenciais de Hannah Arendt (1906–1975) e Simone de Beauvoir (1945-1986) também receberam doses do pensamento de Husserl.

Em ciências biológicas e na teoria da complexidade, resultou na fenomenologia experimental e neurofenomenologia de Francisco Varela (1946–2001).

Teólogos e cientistas da religião como Rudolf Otto, Paul Tillich, Karl Jaspers, Max Scheler, Gerardus van der Leeuw, Ninian Smart, Mircea Eliade e o papa João Paulo II encontraram respaldo no método fenomenológico para discutir a religião de modo relevante. Como consequência, a fenomenologia da religião permite discutir questões de crenças (e do sobrenatural) sem as limitações dos métodos positivistas.

* * *

A fenomenologia foi o primeiro paradigma seriamente a contestar a dominância de um modelo positivista de produzir conhecimento. Desde sua concepção por Husserl, foi amplamente modificada e adaptada para diferentes áreas. Ainda que tenha uma terminologia obscura, constitui um relevante método de registrar como fenômenos são intersubjetivamente vividos.

SAIBA MAIS

Berrios, G. E. (1989). What  is  phenomenology? A  review. Journal of the Royal Society of Medicine, 82, 425-428.

Farber, M. (1967). Phenomenology and existence: Toward a philosophy within nature. New York: Harper Torchbooks.

Langdridge, D. (2007). Phenomenological psychology: Theory, research and methods. London: Pearson.

Laverty, S. M. (2003). Hermeneutic phenomenology and phenomenology: A comparison of historical and methodological considerations. International Journal of Qualitative Methods, 2(3), 21–35.

Merleau-Ponty, M. (1962). Phenomenology of perception. London: Routledge & Kegan Paul.

van Manen, M. (1997). Researching lived experience: Human science for an action sensitive pedagogy (2nd ed.). Toronto: The Althouse Press.

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