Emily Martin (1991) provocativamente demonstrou o quanto os fatos das ciências naturais estão longe de serem neutros. No imaginário científico e popular, os espermatozóides agressivamente correm para controlar um óvulo passivo à espera de ser fecundado. Considerando que a fecundação ocorre de um modo mais nuanceado que essa caricatura, seria a ciência neutra quanto ao gênero?

Quando nos anos 1970 muitas mulheres na academia perceberam a baixa inserção feminina em pesquisa e educação superior surgiram vários questionamentos. Logo, constataram uma prevalência de vieses na produção científica produzida por homens e barreiras institucionais contra essa inserção feminina. Inicialmente, essa crítica propôs uma epistemologia feminista. Mais tarde, essa abordagem ampliou e dela emergiu um verdadeiro corpo de teorias, metodologias, posições éticas e orientações normativas. Esse corpo de conhecimento é referido frequentemente como metodologias feministas.
Atualmente há três vertentes que discutem a produção de conhecimento com metodologias feministas (Neitz 2014). Embora concebidas para compreender a produção de conhecimento nas ciências sociais, esses modelos são transferíveis em outras áreas, quer científicas, quer de conhecimentos diversos.
Empiricismo Feminista: correção de vieses
Com base em pressupostos do positivismo (e pós-positivismo) de que há verdades externas apreensíveis com grande grau de objetividade, feministas empiricistas argumentam contra vieses masculinos na ciência. A objetividade da pesquisa seria em parte contaminada por interesses e vieses de raça, classe e gênero dos pesquisadores ou das amostras populacionais. O papel da metodologia feminista seria contrabalancear esses vieses.
Essa abordagem é popular em ciências da saúde. Estudos de anatomia e fisiologia tendem a ser baseados no corpo masculino adulto. Em resposta, feministas empiricistas iniciaram estudos aprofundados em outras populações.
Em uma nova formulação, teóricas feministas dessa abordagem incorporam críticas de outras perspectivas, mas mantém paradigmas do feminismo liberal, pós-positivista ou escolha racional.
Pesquisa consciente do lugar de fala (standpoint research): balanço dos vieses
Essa abordagem de pesquisa consciente da perspectiva é chamada standpoint research, frequentemente traduzida como lugar de fala. Essa abordagem pressupõe a existência de um mundo material independente do sujeito. Entretanto, integra pressupostos sobre a construção social dos sujeitos e da inescapabilidade de seus vieses. Certo modo, situa-se em modelos de realidade social em intersecção entre agência e estrutura, considerando também as interações simbólicas.
Para balancear essa parcialidade, essa abordagem desenvolve condições de empatia e afeto para compreender os outros e o mundo. Isso levou a aproveitar perspectivas pós-coloniais e de outras minorias de forma crítica. A melhor pesquisa seria aquela multivocal, com pesquisadores sendo transparentes sobre suas próprias posições, em diálogo com várias perspectivas.
Feminismo Pós-moderno e construcionismo radical: questionamento dos vieses
Parte do pressuposto de que o conhecimento é construído socialmente. Desse modo, não cabe às ciências descobrir a verdade no mundo, mas contribuir criticamente à produção de conhecimento consciente de que esse mesmo conhecimento é produzido e comunicado através da linguagem e cultura.
Metodologicamente, o exercício de desconstruir significados embutidos em teorias existentes e categorias passa a ser central. Categorias como “cultura, natureza, ciência, mulher, patriarcado, machismo” são alguns exemplos de tópicos discutidos. Aqui, a deconstrução passa a ser um modo de inferência — equiparado a dedução, indução e abdução — retirando camadas de construções sociais das categorias utilizadas para a análise das realidades sociais.
Essas abordagens levou em conta críticas acerca da própria epistemologia feminista. Considera os vieses do conhecimento feito por mulheres situadas em posições privilegiadas.
O conhecimento é um texto, e não há interpretação privilegiada. Invoca também uma maior humildade acadêmica, considerando que o conhecimento produzido pelos pesquisadores não possuir necessariamente mais autoridade do que o conhecimento de pessoas comuns, mas operando em arcabouços e condições distintas.
ALGUMAS DAS CONTRIBUIÇÕES DAS METODOLOGIAS FEMINISTAS
- Correções de vieses causados por “cegueira de gênero”;
- Confirmação da existência de modos distintos de pensar (epistemologias);
- Interdisciplinariedade e transgressões de categorias arbitrárias na produção de conhecimento;
- Humanização da pesquisa tanto na relação com sujeitos e no impacto dos resultados;
- Equilíbrio crítico entre pesquisa e ativismo;
- Questionamentos de generalizações universalizantes tacitamente presumidas;
- Legitimação de outras perspectivas marginais na produção científica;
- Consciência de posicionalidade e reflexividade;
- Afirmação da corporalidade;
- Correlação entre violência, desigualdes, discriminação e outras intersectionalidades.
- Atenção quanto às diferenças e poder em várias situações além de feminilidade e gênero.
SAIBA MAIS
Collins, Patricia Hill. 1990. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment. Boston: Unwin Hyman.
Martin, Emily. “The egg and the sperm: How science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles.” Signs: Journal of Women in Culture and Society 16.3 (1991): 485-501.
England, Paula, ed. 1993. Theory on Gender / Feminism on Theory. New York: Aldine de Gruyter.
Neitz, Mary Jo. “Feminist Methodologies”. In Michael Stausberg and Steven Engler (eds.) The Routledge Handbook of Research Methods in the Study of Religion, 2014. pp. 54-67.
Ortner, Sherry B. “Making Gender: Toward a Feminist, Minority, Postcolonial, Subaltern, etc., Theory of Practice”, in Sherry B. Ortner Making Gender: The Politics and Erotics of Culture. Boston: Beacon Press, 1996, pp. 1–20.
Ortner, Sherry B. “Is female to male as nature is to culture?.” Feminist studies 1.2 (1972): 5-31.
Ribeiro, Djamila. Lugar de fala. Pólen, 2019.
Rosaldo, Michelle Zimbalist; Lamphere, Louis, Bamberger, Joan Woman, culture, and society. Stanford University Press, 1974.
Rubin, Gayle; Reiter, Rayna R. Toward an anthropology of women. 1975.
Smith, Dorothy E. The conceptual practices of power: A feminist sociology of knowledge. University of Toronto Press, 1990.
VEJA TAMBÉM
Essencial a leitura desse texto! Precisamos falar sobre assunto e dialogar com a sociedade. Também falo sobre mulheres e feminismo. Confere meu blog 🙂
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É um dano variado e enorme ignorar a produção do conhecimento por mais da metade da população. Esse diálogo sobre feminismo e mulheres é crucial. Já estou seguindo seu blog.
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