A epopeia de Gilgamesh

A eterna busca pelo sentido da vida e a superação da morte são temas desse poema épico, uma das obras mais antigas de literatura. Nessa epopeia, Gilgamesh, o lendário rei de Uruk, na Mesopotâmia (atual Iraque) é o protagonista de vários feitos heroicos.

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Esboço esquemático

Este esboço segue a narrativa da versão-padrão babilônica, em língua acádia. O trecho entre colchetes provavelmente remonta do período neo-babilônico, no século VI a.C. e foi encontrado em 2011 no Curdistão.

Tabuleta I: Proêmio: Gilgamesh é o implacável tirano de Uruk. O povo reclama e os deuses decidem criar um oponente à altura: a deusa Aruru criou do barro Enkidu, um homem feral. O selvagem Enkidu protege as estepes, impedindo a caça e a notícia dele chega a Gilgamesh. O rei de Uruku envia a prostituta sagrada Shamhat para dominá-lo. Seduzido, Enkidu é domesticado.

Tabuleta II: Enkidu chega a Uruk e enfrenta Gilgamesh. Os dois lutam até a exaustão, quando se tornam amigos e planejam uma viagem à floresta de cedro.

Tabuleta III: os anciãos da cidade avisam sobre o monstro Humbaba, o guardião da floresta de cedro. A mãe de Gilgamesh pede a Enkidu e ao deus Shamash que protejam seu filho.

Tabuleta IV: os dois heróis viajam por três dias. Gilgamesh tem pesadelos enquanto descansa. Chegam à floresta de cedro.

Tabuleta V: os heróis encontram e discutem com Humbaba. O monstro suplica por sua vida, mas Gilgamesh o mata. [Versão encontrada em 2011: a floresta de cedro é bem vivaz, com pássaros e macacos fazendo barulho. Enkidu e Humbaba tinham sido amigos. Gilgamesh sente remorso depois de matar Humbaba e destruir a floresta.]

Tabuleta VI: Innana/Ishtar, a deusa do amor, vê Gilgamesh se banhar e sente atraída por ele. Todavia, Gilgamesh a rejeita. Ultrajada, Innana pede vingança a seu pai, o deus Anu. Seu argumento é interessante: abrir a morada dos mortos para que esses voltem e destruam os vivos, um verdadeiro apocalipse zumbi. Anu envia o Touro dos Céus para matar os heróis, mas Gilgamesh o derrota.

Tabuleta VII: A assembleia dos deuses acha que os heróis estão passando dos limites e decidem que um deles deve morrer. Enkidu morre (sem não antes amaldiçoar Shamhat por tê-lo tomar consciência da morte), enquanto Gilgamesh lamenta a morte do amigo.

Tabuleta VIII: em luto, Gilgamesh prepara o funeral do amigo.

Tabuleta IX: atormentado pela perda e ideia da morte, Gilgamesh vai em busca de Ut-Napishtim, o homem que ganhou a imortalidade dos deuses.

Tabuleta X: Gilgamesh alcança a taberna no fim do mundo. A cervejeira Siduri indica o caminho para encontrar Ut-Napishtim. O herói cruza o oceano e encontra Ut-Napishtim. O sábio dá um sermão dos deveres de um rei e mostra a tolice de se preocupar com a imortalidade, pois acaba “matando” o tempo da vida nessa preocupação.

Tabuleta XI: a famosa narrativa mesopotâmica do dilúvio ocorre aqui. Gilgamesh pergunta o segredo da imortalidade a Ut-Napishtim. O sábio, também chamado Atrahasis ou Ziusudra, conta que ganhou a imortalidade dos deuses pelo mérito de sobreviver o dilúvio. Ainda que esse meio não seja mais possível, Ut-Napishtim recomenda uma planta que pode trazer a imortalidade. O desastrado herói encontra a tal planta, mas uma astuta serpente a rouba. Mais sábio, Gilgamesh retorna conformado com a morte a Uruk.

Tabuleta XI: Enkidu descreve o mundo dos mortos.

O herói

Gilgamesh (se pronuncia em português algo próximo de “guilgaméche”) teria sido um rei histórico e lendário. Segundo a lenda, teve um pai humano, o rei-sacerdote Lugalbanda, e uma mãe divina, Ninsum. Apesar de conformar-se com a inevitabilidade da morte, viveu longamente: 126 anos. Historicamente, teria reinado em Uruk em seu período de zênite (entre 2900 aC. e 2500 a.C), quando certamente esta cidade-estado no sul da Suméria era o maior centro urbano do mundo. Ali viviam entre 50 mil e 80 mil residentes em um área relativamente pequena. Seu templo-palácio controlava a política, religião e economia da Mesopotâmia. Na Bíblia, aparece sob o nome de Erech.

Não sabemos muito sobre a vida histórica de Gilgamesh. Mas seu épico já nos é suficiente para inferir que teve uma vida notável. Tanto é que posteriormente Gilgamesh teria sido divinizado, sendo seu culto tanto popular quanto patrocinado pelo estado.

Como proposto pelo mitólogo Joseph Campbell em O Herói de Mil Faces, o arquétipo do herói que sai de sua rotina para enfrentar um desafio e voltar melhor, ocorre em Gilgamesh. Seria o primeiro grande personagem heroico.

O texto

Compostos como contos orais dos sumérios, os feitos de Gilgamesh ganharam forma escrita em caracteres cuneiformes em tabuletas de argila. O épico de Gilgamesh fazia parte do treinamento dos escribas. Talvez por essa razão haja tantas cópias e variações que chegaram até nós. Essas tabuletas foram encontradas nas bibliotecas e escritórios de copistas em Emar, Ugarit, Megiddo e Bogazkoy, cidades antida da Crescente Fértil e da atual Turquia. O exemplar de Megiddo, datado do século XIV a.C., possibilita que os hebreus tivessem conhecimento desse épico há muito tempo antes do exílio babilônico.

Gilgamesh existia em formas variadas. Foram encontrados cinco contos em verso na língua suméria, nos quais o herói é chamado Bilgames. Entre eles, um conto discorre sobre a guerra entre os reis Gilgamesh e Akka para garantir a independência de Uruk em relação à cidade de Kish. Há duas versões da luta entre Gilgamesh e Humbaba. Outros contos relatam com detalhe a luta contra o Touro dos Céus, a descida de Enkidu ao mundo dos mortos (que contém uma versão do conto Inanna e a árvore Huluppu) e a morte de Gilgamesh. Da versão suméria, surgiram versões em elamita, hitita e hurriano, mas foi na língua semítica acádia que a obra ganhou um formato padrão.

Da fase tardia da composição suméria, a obra ganhou apoio dos reis de Ur III, como Ur-Nammu e Shulgi, e refletem a ascenção de Ur e da região babilônica como centro de poder na área. Shulgi de Ur (2029-1982 a.C), sem modéstia, se dizia filho de Lugalbanda e Ninsun e irmão de Gilgamesh.

O escriba e sacerdote (algo inusitado para textos antigos, há um curto prefácio em sua versão) Sin-Leqi-Unninni entre os séculos XIII e X a.C. compilou a versão padrão em acádio. Essa profusão de versões, além de breves menções em outras narrativas e invocações, demonstram que Gilgamesh antecedem os super-heróis da Marvel e DC Comics em popularidade.

Há paralelos entre Gilgamesh e outros épicos e heróis da Antiguidade. Notavelmente, Gilgamesh assemelha-se aos feitos prosaicos (e a perda trágica de um amigo) de Aquiles na Ilíada, às jornadas de Ulisses na Odisseia e de Jasão, às aventuras do igualmente semi-deus Hércules, bem como com a instrospecção poética do heroico rei Davi da Tanakh. O conto de Buluquia em As mil e  uma noites também apresenta semelhanças: um rei que parte em uma jornada com um companheiro em busca de uma planta que lhe dará poderes além da vida (juventude eterna ou imortalidade em algumas versões). Enfrentam serpentes e outros monstros, o companheiro morre e, no fim, o protagonista volta para casa modificado. Algumas variantes do nome Bilgamesh em sumério e hurrita corroboram a teoria que o conto continuou vivo na tradição oral árabe.

O autor romano de expressão grega Cláudio Eliano no século II d.C. em sua Sobre a natureza dos animais (XII: 24) menciona um certo rei caldeu Gilgamos. Ainda bebê, Gilgamos teria sido salvo miraculosamente por uma águia ao ser lançado de uma torre devido à perseguição movida por seu avô ciumento.

Nos manuscritos do Mar Morto, no Livro dos Gigantes (4Q531 Fragmento 1 e 4Q530) o nome Glgmš aparece como um dos gigantes da antiguidade. Na versão dos maniqueístas do Livro dos Gigantes (M12) há alusão do monstro Hobabiš (Humbaba), envolvido no roubo de uma esposa e no genocídio de gigantes e homens.

O comentarista bíblico da Igreja do Oriente, Theodore Bar Konai no século VIII d.C. seria o último a mencionar Gilgamesh antes de sua redescoberta no século XIX. Gilgamesh — Gligmos ou Gmigmos – teria sido um rei mesopotâmico contemporâneo de Abraão.

Embora popular e influente, a epopeia de Gilgamesh ficou esquecida no tempo até que em 1872 foi traduzida. Em 1849, os arqueólogos inglês Austin Henry Layard e iraquiano Ormuzd Rassam descobriram a biblioteca cuneiforme do Rei Assurbanipal na cidade assíria de Nínive. Várias tabuletas de argila foram trazidas ao Museu Britânico, onde um funcionário e assirologista autodidata, George Smith, traduziu e publicou o trecho que falava do dilúvio, despertando a atenção ao paralelismo com a narrativa bíblica. Até os meados do século XX, Gilgamesh atraía mais por essa relação com a história do dilúvio, mas a profundidade do épico todo recolocou-o no cânone mundial.

Em português há algumas versões. Às vezes, é transliterado como Gilgamés. A tradução mais recente, do assirologista da UFGM Jacyntho Lins Brandão, feita diretamente do acádio providencia um minucioso tratamento crítico-textual.

É um clássico que antecede vários gêneros, temas e enredos. Nele há bromance, uma fera domesticada por uma mulher, jornadas de aventuras, luta com monstros, mitologia, disputa entre deuses e humanos, super-heróis e paralelos com a narrativa bíblica.

SAIBA MAIS

AL-RAWI, Farouk N H  e ANDREW, George (2014) ‘Back to the Cedar Forest: The beginning and end of Tablet V of the Standard Babylonian Epic of Gilgameš.’ Journal of Cuneiform Studies, 66. pp. 69-90.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento/Cultrix, 1989.

DAMROSCH, David. The buried book: The loss and rediscovery of the great epic of Gilgamesh. Macmillan, 2007.

DALLEY, Stephanie. “Gilgamesh in the Arabian Nights”. Journal of the Royal Asiatic Society. Third Series, 1.1 [Apr. 1991]: 1-17

HEIDEL, Alexander.The Gilgamesh Epic and Old Testament Parallels. Chicago: University of Chicago Press, 1946.

http://www.mitografias.com.br/2017/09/papo-lendario-168-gilgamesh/

SIN-LEQI-UNNINNI. A epopeia de Gilgamesh. Tradução de C.D. Oliveira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Sin-léqi-unnínni. Ele que o abismo viu: a epopeia de Gilgámesh. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

SIN-LEQI-UNNINNI. Gilgamesh: rei de Uruk. Tradução de P. Tamen. São Paulo: Ars Poetica, 1990.

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