
- Memórias de minha vida, quando fui um animal do campo e comia grama; Eu, Nabucodonosor[1], a todos os povos, nações e línguas.
- Não era essa Babilônia, a grande cidade, a maior entre as cidades de todas as nações? E eu, Nabucodonosor, a tinha construído.
- Nenhuma cidade se iguala a Babilônia em notoriedade e nenhum rei foi semelhante a mim na Babilônia em glória da minha majestade.
- Minha casa real foi noticiada até os confins do mundo, e minha sabedoria era como uma linguagem misteriosa, que ninguém entre os sábios poderia explicar.
- E ninguém poderia me dizer o que eu tinha sonhado.
- E a palavra veio a mim que eu deveria ser transformado e tornar-me como um animal que come a grama dos campos, enquanto sete vezes me passou isso.
- Então reuni todos os meus príncipes e seus exércitos e dei ordem para estarem preparados, pois sete vezes me passou isso.
- Mas ninguém ousou abordar a Babilônia, a Grande, e eu disse: “Não é esta a grande Babilônia que eu, Nabucodonosor, construiu”.
- De repente, um grito se ouviu e eu estava mudado, de maneira rápida como uma mulher muda de cor.
- A relva tornou-se a minha comida, o orvalho do céu caiu sobre mim e ninguém sabia quem eu era.
- Mas eu conhecia Babilônia e gritei: “Não é esta Babilônia?” e gritei: “Não é esta Babilônia?” Mas ninguém ouviu meus grunhidos, e não conseguiam entender outra coisa senão um urro de uma besta.
- Meus pensamentos me aterrorizavam, os pensamentos em minha mente, porque a minha boca foi fechada e ninguém podia ouvir outra coisa senão um urro de uma besta.
- E pensei: “Quem é este poderoso? O Senhor, o Senhor, que é como a escuridão da noite e como as profundezas do mar, insondável”.
- Sim, como um sonho, que só ele pode desvendar, a interpretação a qual ele não deu em poder de homem qualquer, quando de repente se depara com alguém e prende-o com seus braços poderosos.
- Ninguém sabe onde este poderoso vive, para que se pudesse apontar e dizer: “eis que lá está o seu trono”; para que se pudesse viajar através da terra, até dizer: “eis aqui os limites de seu domínio”.
- Por que ele não habita além do limite do meu reino, como meu vizinho; nem me circunda, como o mar e as montanhas.
- E nem ele mora no seu templo, porque eu, Nabucodonosor tomei seus vasos de ouro e de prata e assolei seu templo.
- E ninguém sabe nada dele, quem era seu pai e como ele recebeu o poder, ou quem lhe ensinou o segredo de sua força.
- E ele não tem nenhum conselheiro, para que se possa comprar seu segredo com o ouro, ninguém a quem se pode dizer: “Que hei de fazer?”; e ninguém a dizer-lhe: “Que fazes tu?”
- Não possui espiões para esperar a oportunidade, de modo que se possa pegá-lo; pois ele não diz “amanhã”; mas diz “hoje”.
- Porque ele não faz arranjos, como um homem, e seus arranjos poderiam dar ao inimigo alguma trégua, porque diz: “que aconteça!” — e acontece.
- Ele se senta e ainda considera consigo mesmo; não se sabe se ele está presente antes que aconteça.
- Isso foi o que fez contra mim. Ele não mira como o arqueiro, para que se possa fugir de sua flecha; ele fala consigo e isso acontece.
- Em suas mãos, o cérebro do rei é como cera no forno de fusão, e seu peso como o peso de uma pena quando o pesa.
- E, no entanto, não vive sobre a Terra como o grande e poderoso, para que ele pudesse tomar Babilônia de mim e deixar-me manter um pouco, ou para que ele pudesse levar tudo de mim e ser o único poderoso na Babilônia.
- Então pensei comigo nesta solidão de minha mente onde ninguém me conhecia, e os pensamentos em minha mente me aterrorizavam; que lá estava o Senhor.
- Mas quando as sete idades se completaram, tornei-me Nabucodonosor mais uma vez.
- E chamei todos os sábios, para me explicar o mistério do que seja o poder, e como eu me tornara como uma besta dos campos.
- Mas todos prostraram sobre os seus rostos e disseram: “Grande és Nabucodonosor! É imaginação, um pesadelo, quem seria capaz de fazer essas coisas contra ti?”
- Mas a minha raiva estava contra os sábios de toda a terra, e eu os derrubaria em suas estultícias.
- Porque o Senhor, só o Senhor tem poder, como nenhum homem tem, e eu não invejo o seu poder, mas o louvarei e estarei perto dele; pois eu tomei o seu ouro e vasos de prata.
- Babilônia não é mais a grande Babilônia; eu, Nabucodonosor, não mais Nabucodonosor, e os meus exércitos não podem me proteger; pois ninguém pode ver o Senhor e ninguém pode reconhecê-lo.
- Se ele vier; os vigias alertariam em vão, porque eu já seria como um pássaro nas árvores ou um peixe na água, conhecido apenas por outros peixes.
- Portanto não vou ser famoso na Babilônia, mas a cada sétimo ano haverá um banquete na terra,
- Uma grande festa para todas as pessoas, e ela será chamada a Festa da Transformação.
- E um astrônomo será levado pelas ruas e será vestido como um animal, e se levará seus cálculos com ele, rasgados em pedaços, como um feixe de feno.
- E o povo clamará: “o Senhor, o Senhor, o Senhor é poderoso, e sua ação é tão rápida quanto o salto de um grande peixe no mar”.
- Pois meus dias estão contados, e meu domínio passado como uma vigília da noite, e não sei aonde vou;
- Se eu vier para o invisível na distância, onde o poderoso habita, para que possa achar graça em seus olhos;
- Se é ele quem tira o espírito da vida de mim, para que eu me torne como um vestido jogado fora, como os meus antecessores; para que ele se satisfaça comigo.
- Isso tenho eu, Nabucodonosor, dado a conhecer a todos os povos, nações e línguas; e a grande Babilônia cumprirá minha vontade.
— Søren Kierkegaard. Os três estágios no caminho da vida. (1845). Esboçada no diário de Kierkegaard como “Memórias de minha vida por Nabucodonosor, previamente imperador, recentemente um boi. Publicada por Nicolaus Notabene”.
[1] Também se translitera esse nome como Nebucadrezar. A narrativa do livro de Daniel atribui essa humilhação a Nabucodonosor II (630 -562 a.C.). O monarca caldeu conquistou grande parte do Levante, inclusive levando o Reino de Judá cativo, evento retrato na ópera Nabuco de Verdi. O altivo soberano do auge do Império Babilônico teve um sonho, interpretado pelo profeta Daniel (Daniel capítulo 4 narra em 1ª pessoa do sonho de Nabucodonosor) prevendo sua queda a um estado feral e conversão. Aliás, trata-se de uma das primeiras narrativas de conversão, embora não haja corroboração de outras fontes.
Registros históricos apontam para Nabonido (555 – 539 a.C.) como o último monarca babilônico. As Crônicas de Nabonido (descobertas em 1884), as Inscrições de Nabonido em Harran (descobertas publicadas em 1956) e a Oração de Nabonido encontrada nos manuscritos do Mar Morto (4QPrNab) apontam para uma ausência do rei. Nesse período, Nabonido teria ficado em Temã, um oásis no noroeste da Arábia, e seu filho Belsazar (r.550–539 a.C.) permaneceu como regente da Babilônia. Os interesses de Nabonido pela história motivou-o a escavar em busca de artefatos, escrever uma cronologia da história mesopotâmica e construído um museu. Relegando as deidades babilônicas, teria voltado ao culto do deus Sin (Nanna dos sumérios), representado pela lua crescente e tido como o criador de todas as coisas, pai dos céus e chefe dos deuses. É possível que na narrativa dos capítulos 2 a 4 de Daniel houvesse uma combinação das histórias dos dois reis.
Semelhante a Enkidu, o homem feral do épico de Gilgamesh, Nabucodonosor (ou Nabonido) teria vivido no campo como animal, antes de sua restauração. Por fim, após a sua morte, o Império Babilônico sucumbiu aos persas.
Interessante os pensamentos do rei Nabucodonosor, quando O nosso Deus do ceu o fez como um animal.
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