Mito, mitologia e lenda: saiba a diferença

No cotidiano os termos mito, mitologia e lenda são usados sem muitos critérios. Mas, basta uma discussão acirrada sobre política, religião ou literatura que aparecem como uma premissa importante em um argumento. No entanto, poucos se atentam a essa distinção. O uso errado desses conceitos é mítico, ou seria legendário? Saiba mais sobre os conceitos de mito, mitologia e lenda na antropologia, filosofia e ciências da religião.

Mito, mitologia e lenda

O Mito

O Mito é uma forma narrativa, há quem diga mitopoética, de representar a realidade. Essa narrativa pode ser sagrada e servir como paradigma para simbolizar as crenças e valores de um determinado grupo. Grandes exemplos são o mito de Gilgamesh e o modelo da passagem de universo denso em um ponto finito para um atual universo em expansão, mais facilmente compreendido em sua forma narrativa (mítica) do Big Bang.

Há uma espécie de mito etiológico que explica a origem das coisas: a origem do cosmos, de uma planta, de um conhecimento, de um povo, de um costume ou relação social, tais como os papéis de gênero.

mitos fundantes, como o propagado pelas companhias de tecnologia no Vale do Silício de que tiveram origens em garagens e bombaram devido à genialidade de seus fundadores.

Alguns mitos remontam a tempos imemoráveis. São mitos sobre povos desaparecidos. Outros mitos apontam para o futuro: os mitos escatológicos antecipam a destruição das coisas ou o reínicio dos ciclos. Mitos justificam a dominação de um grupo por outro. Mitos podem normalizar o porquê somos a melhor nação do mundo. Os mitos explicam as transformações e a ordem estática da vida e do mundo.

Embora o termo mito tenha sido associado à mentira, como modo de organizar o pensamento e representar a realidade é um gênero neutro. Em outras palavras, o mito pode ser usado para representar algo não correspondente ou incoerente com a realidade bem como pode ligar os pontos reais em uma trama narrativa.

Mitologia

Falar que mitologia é um termo com problemas de proporções míticas é um trocadilho sem graça, mas acurado. Um sentido comum refere-se a um corpus de mitos como a mitologia nórdica, a mitologia egípcia, a mitologia indiana, etc. Para comuplicar, corpus de mitos modernos também são chamados de mythos (assim mesmo, com essa ortografia). Temos os mythos de Star Wars, o Cthulhu Mythos, o universo da Turma da Mônica.

Mitologia também é o estudo sistemático dos mitos. Como os mitos são mediadores entre o sagrado e o profano, entre o coletivo e o indivíduo, entre a ordem cósmica e as expectativas atuais, a concatenação entre os diversos mitos ganham um status de importância. Assim, a mitologia seria também a metanarrativa que integra os diversos mitos de modo que seja relevante para uma socidade ou um grupo restrito. O estudo da mitologia foi aprofundado por algumas escolas de pensamento. É central para algumas correntes da antropologia (principalmente o estruturalismo), da psicologia (em abordagens psicanalíticas ou afins), dos estudos da religião e dos estudos literários.

A lenda

A lenda é uma estória sobre um lugar ou uma pessoa, geralmente relacionados com feitos extraordinários. Enquanto a fábula possui seu próprio espaço e tempo ou realidade, a lenda toma lugar neste mundo. Embora pressuponha alguma dose historicidade, é algo despreocupado. É mais folclore e curiosidade, sem ter o peso do mito para estruturar a relação entre os seres e explicar a realidade em termos de sacralidade.

A lenda do brado retumbante de d. Pedro proclamando a Independência às margens do Ipiranga povoa o imaginário popular. Mas a história é bem diferente e ninguém liga pela acuracidade do relato. O fato que, independente da narrativa, o Brasil continua como um país independente.

Relacionado com a lenda temos o evemerismo. Evêmero era um escrito grego do século IV a.C. que via nos mitos e mitologias um relato exagerado acerca de pessoas comuns, atribuíndo-lhes caráter divino. O evemerismo é a mitificação de um personagem histórico ou a historicização de um personagem mítico. É uma interpretação que confunde historicidade com veracidade, bem como veracidade com facticidade.

Sobreposições

Há ocasiões quando as fronteiras de uma lenda, mito e mitologia são borrados. Tomando o exemplo de Gilgamesh, temos um mito na forma da epopeia dos feitos do herói, uma mitologia na relação entre deuses ou personificações de fenômenos e a realidade humana, a lenda que acumula estórias sobre um suposto rei histórico da Mesopotâmia. Ainda podemos fazer leituras evemeristas, tentar mitificar as aventuras do rei Uruk.

De modo contrário, há processos de demitologização. Uma redução de conteúdos míticos em benefício de outras formas de narrativas ou organização do pensamento. O teólogo Rudolf Bultmann (1884–1976) dedicou-se a retirar camadas míticas (e lendárias) dos textos do Novo Testamento para apresentar uma mensagem cristã filtrada de elementos sobrenaturais para torná-la palatável às necessidades existenciais do chhamado “homem moderno” dos meados do século XX.

Hoje é sabido, por exemplo, que a Bíblia contém fragmentos míticos (imagem de YHWH cavalgando sobre as nuvens) e alguns raros eventos mitológicos (a metanarrariva de Deus e Satã discutindo uma interferência na vida de Jó). Mas, no geral, é uma crítica e redução monoteísta da mitologia dos povos politeístas circundantes. Deus não aparece na Bíblia sujeito às limitações de espaço, tempo e paixão como outros deuses.

Ironias das ironias, as escolas sobre mito e ritual que predominaram no século XX hoje são substituídas por perspectivas que consideram a mitologia para além de seus elementos religiosos ou sagrados. A prova disso aparece em um concurso para explicar a complicada teoria do campo de Higgs com uma estorinha. Não dá para saber que isso é uma demitologização dos estudos da mitologia ou uma mitificação de narrativas seculares.

Mythos e logos

Um esclarecimento para dissipar um mito. Nos meados do século XX popularizou-se a teoria do filólogo alemão Wilhelm Nestle (1865-1959) de que Grécia antiga surgiu a distinção de duas formas distintas de pensar e adquirir conhecimento. Uma forma seria mythos, que se baseava na narrativa e no conhecimento popular, e o outra forma seria o logos, o conhecimento oriundo da análise racional. Os gregos teriam passado de explicações de fenômenos a partir das atividade dos deuses para explicações racionais e naturalística na filosofia e na matemática. Esse reducionismo consegue estar errado de muitas formas em proporções lendárias.

Pensadores pré-socráticos já explicavam fenômenos com modos priomordialmente racionais. Inversamente, obras máximas da filosofia grega, como A República de Platão, emprega amplamente a narrativa mythos para argumentar. Sem contar o avanço dos registros antropológicos demonstranto tanto em sociedades tecnologicamente mais simples quanto em sociedades complexas coexistem o pensamento racional e o mítico. No entanto, ainda persiste esse mito fundante nos manuais introdutório da disciplina de filosofia.

Uma palavra final

Há autores e escolas que tratam esses termos com outros significados. Também, muitos conceitos mudaram nos últimos 40 anos. Por isso, é bom tentar deduzir sobre o quê se está falando.

SAIBA MAIS

Cho, Paul K.-K.  Myth, History, and Metaphor in the Hebrew Bible. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.

Dundes, Alan, ed. Sacred narrative: Readings in the theory of myth. Univ of California Press, 1984.

Eliade, Mircea. Myth and Reality. Tradução de Willard R. Trask. New York: Harper & Row, 1963.

Fowler, Robert L. “Mythos and logos.” The Journal of Hellenic Studies 131 (2011): 45-66.

Lévi-Strauss, Claude. Myth and Meaning. New York: Schocken Books, 1978.

Veyne, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos?: Ensaio sobre a imaginação constituinte. São Paulo: Unesp, 2014.

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