Enuma Elish: o épico babilônico da criação

Um dos mais belos e antigos mitos da criação de deuses e do mundo registrado, o Enuma Elish[1] foi o grande épico nacional da cidade de Babel ou Babilônia.

O poema retrata a criação pela batalha cósmica contra o caos (Chaoskampf), criação por comando divino e pela ação divina, embora o primeiro motivo literário seja predominante.

Era recitado durante o festival de Ano Novo, o festival mais importante do calendário cívico e religioso dessa metrópole mesopotâmica.

Marduk luta com Tiamat
Marduk enfrenta Tiamat

Sinopse de Enuma Elish

[Tabuleta 1 – A criação dos deuses a partir das águas do Abismo e do Caos primevos.]

Na época em que nenhum deus ainda existia nem nada tinha nome, havia dois seres divinos, o masculino Apsu, as águas do abismo, e a feminina Tiamat, as águas salgadas do caos. Apsu e Tiamat misturaram suas águas e delas nasceram os deuses em pares, os anunnaki. Anu foi o deus primogênito e depois nasceu Ea, o deus das águas doces que irriga as lavouras. Todos respeitavam Ea por sua grande inteligência e força.

As gerações mais jovens de deuses festejavam, mas faziam muito barulho quando se divertiam. E Tiamat, mãe de todos os deuses, reclamou do barulho com Apsu. Apsu decidiu tomar alguma atitude junto de seu anjo Mummu, mas Ea soube dos planos.

Ea com uma música encantou Apsu e seu anjo, fazendo-os adormecerem. Depois de matá-los, transformou o cadáver em habitação. Ea casou-se com Damkina e o casal tiveram Marduk, um belo rapaz de quatro olhos e quatro orelhas e de cuja boca sai fogo.

Ainda Tiamat continuava viva e com muita raiva por toda a barulheira. Os deuses fizeram ventos e ondas das marés, o que aprofundou a ira da mãe primordial. Tiamat construiu um exército de deuses e demônios que incluíam uma cobra com chifres, um dragão, um cão raivoso, um homem meio-peixe e um híbrido touro e homem. Seu general Kingu, seria seu consorte e co-regente, recebeu a tábua dos destinos, a qual tornava seus decretos irresistíveis.

[Tabuleta 2 – A guerra contra Tiamat e a ascendência de Marduk.]

Os deuses ouviram falar do grande e aterrorizante exército de Tiamat e culparam Ea pela encrenca. Ea enfrentou as forças duas vezes, mas recuou. Anu se envergonhou da covardia de seu filho e pediu ajuda a Marduk, seu neto, o qual impõe suas condições: quer ser o deus supremo.

[Tabuleta 3 – Banquete dos deuses.]

Anshar, um dos deuses do céu e pai de Anu, consulta os deuses que, surpresa, surpresa, fazem outra festa. Depois de muita cerveja, decidem sujeitar-se a Marduk.

Marduk se armou com seu arco, rede e maça e partiu em sua carruagem de guerra

[Tabuleta 4 – Marduk luta com Tiamat.]

Nomeado rei dos deuses, eles constroem a sede real de Marduk. Com suas palavras, Marduk cria coisas.

O agora deus supremo armou-se com seu arco, rede e maça e partiu em sua carruagem de guerra. Seu corpo se transforma em fogo e municia-se de trovões.

Marduk enfrenta Tiamat, a qual assume forma de dragão, matando-a. Marduk faz parte superior do corpo dela o céu; da metade inferior, a terra.

[Tabuleta 5 – Marduk organiza os deuses. Parte dessa tabuleta está perdida.]

Marduk distribui as funções dos deuses, estabelecendo as correspondência dos deuses nas constelações. O dia e a noite são criados, bem como o sol a lua, as nuvens, a chuva, o Tigre e o Eufrates e seus respectivos deuses os governam.

A tábua dos destinos fica com Anu.

[Tabuleta 6– Marduk molda humanos.]

Com argila e sangue de Kingu Marduk cria os humanos para servir os deuses.

Os deuses criam o palácio-templo de Marduk em Bab-el (portão para os deuses ou Babilônia) e celebram um banquete em honra ao deus supremo.

[Tabuleta 7 – títulos de louvor a Marduk.]

Louvor a Marduk entoando seus 50 títulos.

Recepção e interpretações

As tabuletas da versão-padrão remontam do século VII a.C., encontradas na biblioteca do rei assírio Assurbanipal (668-627 a.C.). Contudo, supõe-se que o texto fora fixado na segunda dinastia acadiana de Isin, na época de Nabucodonosor I (1124-1103 a.C.). As sete tabuletas corresponderiam a sete cantos que originalmente teriam 1.100 versos. A primeira versão contemporânea do texto foi publicada em 1876 pelo célebre estudioso das literaturas cuneiformes, George Smith.

O Enuma Elish é só mais uma entre as teogonias e cosmogonias mesopotâmicas. Os povos mesopotâmicos aparentemente não se preocupavam com as diferentes versões da origem de seus deuses e de seu mundo. O prólogo sumério de Gilgamesh, Ekidu e o Mundo dos Mortos apresenta outra versão: originalmente, existia apenas Nammu, o mar primevo. Nammu deu à luz An, o céu, e Ki, a terra. Da junção de An e nasceu luz Enlil. Outras versões sumérias, acadianas, assírias, elamitas e hurritas também apresentam variantes. E havia mitos de criação (etiológicos) para tudo: até mesmo para um verme que corrói os dentes (BRANDÃO, 2013). Considerar os mitos literalmente é algo bem recente na escala do tempo, quer como evemerismo, quer como atribuir funções de história ou relato científico às cosmogonias e teogonias. Antes, tais textos são melhores lidos por seus aspectos funcionais.

O erudito bíblico Nahum Sarna (1966) vê quatro funções centrais do Enuma Elish.

  • Teogonia: relatar a história da origem dos deuses.
  • Cosmologia: explicar os fenômenos cósmicos de como operam a terra, o céu, os astros. Ao espelhar a ordem cósmica, desempenha uma função social e política que legitima a estrutura da sociedade babilônica. Assim, a posição dos humanos e dos representantes divinos (realeza, sacerdotes e burocratas dos templos) estão determinadas. O rei babilônico é paralelo a Marduk e toda a pirâmide social divina corresponde à terrestre.
  • Política: explicar teologicamente a ascensão de Babilônia.
  • Culto: dar o componente narrativo aos rituais da religião mesopotâmica, principalmente associados aos festivais de ano novo na primavera. O conflito entre Tiamat (tanto o caos amorfo quanto o dragão das águas indomáveis) e Marduk simboliza o conflito entre o caos e a ordem. Este um conflito perpétuo é dramatizado a cada ano. O ciclo das estações reproduzem o domínio temporário de Tiamat no outono e inverno, com as enchentes e tempestades. No final, a cada primavera, a ordem e a fertilidade vital retornam.

Esses motivos literários de criação se repetem em vários outros povos. Há os motivos do casamento de seres divinos emergente das águas primevas, do Chaoskampf ou a batalha contra as águas revoltas (ou monstros) e da formação artesanal das criaturas. Entre os gregos, há uma teogonia similar, quiçá com uma ligação etimológica entre Oceano e Apsû, Thétis e Tiamat. Vários desses recursos literários encontram paralelos na Bíblia. Tais coincidências foram interpretadas como resultantes desde um difusionismo panbabilônico até a existência de arquétipos universais inconscientes dos mitos. Hoje, atribui-se essa semelhança mais a um ambiente (milieu) comum e trocas culturais de recursos narrativos que a uma influência direta. Há sim adaptações, por exemplo, os assírios recontaram essa teogonia, mas tendo Ashur no lugar de de Marduk. Os temas literários circulavam, mas ganhavam expressões locais. (TALON, 2005).

NOTAS

[1] Também se grafa Enûma Eliš. O título vem do incipit em acadiano “quando no alto…” ou “quando nos céus…”

SAIBA MAIS

BRANDÃO, Jacyntho Lins. No princípio era a água. Rev. Ufmg, Belo Horizonte, v. 20, n.2, p. 22-41, jul./dez. 2013.

DALLEY, Stephanie. Myths from Mesopotamia: Creation, the Flood Gilgamesh and others. Oxford, New York: Oxford University Press, 1989.

SARNA, Nahum M. Understanding Genesis: Heritage of Biblical Israel. New York: Schocken, 1966.

TALON, Philippe. Enuma Elish and the Transmission of Babylonian Cosmology to the West. In: WHITING Jr, Robert McCray, Jr. (Ed.). Mythology and Mythologies: Methodological Approaches to Intercultural Influences (Procedings of the Second Annual Symposium of the Assyrian and Babylonian Intellectual Heritage Project). Helsinki: University of Helsinki Neo-Assyrian Text Corpus Project, 2001. p. 265-277.

TALON, Philippe. The standard Babylonian creation myth Enuma Elish. Introduction, Cuneiform Text, Transliteration, and Sign List with a Translation and Glossary in French. Helsinki: University of Helsinki Neo-Assyrian Text Corpus Project, 2005.

TEXTO EM INGLÊS

TEXTO EM PORTUGUÊS

A epopeia de Gilgamesh outro grande épico mesopotâmico.

Como citar esse texto no formato ABNT:

Citação com autor incluído no texto: Alves (2020)

Citação com autor não incluído no texto: (ALVES, 2020)

Na referência:

ALVES, Leonardo Marcondes. “Enuma Elish: o épico babilônico da criação”. Ensaios e Notas, 2020. Disponível em: https://ensaiosenotas.com/2020/06/18/enuma-elish-o-epico-babilonico-da-criacao Acesso em: 28 mar. 2020.

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