Boatos, lendas urbanas e fake news: institucionalização das incertezas

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♪ Cabelo loiro vai lá em casa passear
Vai, vai cabelo loiro
Vai cabar de me matar ♪

Tonico e Tinoco

O folclorista norte-americano Richard Mercer Dorson (1916 –1981) encontrou evidências que contrariavam as predições dos sociólogos da modernização de que a racionalidade industrial e científica levaria a um desencanto com o mágico e o misterioso. Lendas e mitos seriam relegados às sociedades pré-industriais, “primitivas”. Só que não.

Só para discernir:

  • Lendas urbanas ou contemporâneas: podem ser contos de terror como a loira do banheiro ou o Slender Man. Isso se propaga como praga e com uma aura de veracidade. Como nas lendas das antigas, há um fundo moralizante. Nos exemplos, a moral da história seria “não vá ao banheiro em horário de aula” ou “não ande sozinho nas estradas escuras”.
  • Boatos: podem ser atribuições verdadeiras ou não, mas que circulam em um modelo telefone sem fio, com cada um acrescentando um ponto. A midização das comunicações distribuídas via redes sociais digitais e comunicação instantâneas nos celulares potencializou os boatos. Nem todos os boatos contém lendas urbanas, tampouco são todos notícias falsas, pois podem ser atribuídos a pessoas reais ou eventos verificáveis, mas a dinâmica e características de propagação são semelhantes às lendas urbanas e fake news.
  • Fake news: mentiras deslavadas ou meia-verdades propagadas com fins políticos. Parece que só agora que descobriram a teoria do discurso, a retórica, a narrativa e outros trololós. Os meios institucionais de comunicação sempre venderam sua mensagem com interesses embutidos. A comunicação institucional é um dos principais veículos do poder. Como o exercício da política é motivado principalmente por interesses que não são a verdade, logo a confiabilidade das comunicações institucionais devem ser examinadas criticamente. Como tudo na vida.

Apesar desses três fenômenos, o mundo não caiu em um inferno cognitivo pós-moderno. Há ainda o real e o verdadeiro. Porém, há uma crise de confiança institucional: o Estado é contestado por ancaps, organismos internacionais por teóricos da conspiração anti-globalistas, as ciências da saúde é duvidada por gurus que prometem uma panaceia “natural” contra os interesses da Big pHARMa, as religiões estabelecidas enfrentam cismas e dissidências, a própria física e a astronomia são questionados pelos terraplanistas, o jornalismo foi colocado ao mesmo patamar dos blogueiros, o amadorismo DIY substitui cada vez mais os profissionais. Engraçado que, com toda a corrupção e performance medíocres, o futebol continua a ser uma instituição que ainda inspira fé em seus adeptos.

O próprio termo pós-verdade parece ser uma fake news. O conceito pressupõe uma época quando a verdade era a norma (quando foi isso?). Está mais para um estado edênico que nunca houve. Os antigos faraós já raspavam monumentos para colocarem os nomes deles em obras antigas. A célebre reportagem sobre a fuga de Napoleão de Elba demonstra bem a isenção da imprensa. Entretanto, é admissível considerar que nos últimos anos a mentira se tornou descarada. No Twitter ou nas câmeras vemos gente dizer e desdizer coisas infundadas na maior cara de pau.

Paradoxalmente, com a crise institucional, os três porquinhos — boatos, lendas urbanas e fake news — passaram a ser institucionalizados. Há canais de youtube devotados a eles, grupos de whatsapp, livros, sociedades e encontros de seus crentes. Um sinal da institucionalização é o uso desses institutos para fins políticos. A manipulação das mídias sociais é só um detalhe, pois o conteúdo duvidoso é que possui capacidade de mobilizar eleições, referendos e desestabilizar governos. É algo preocupante, pois é análogo ao uso da propaganda pelos regimes totalitários nos anos 1930.

Segundo o primo de um amigo meu, certo pesquisador francês, um tal de Renard (2007), disse que um carinha chamado Michel-Louis Rouquette propôs uma definição em características desses fenômenos. Podemos definir o boato, as notícias falas e as lendas em quatro características:

1. Instabilidade: as versões mudam conforme se difunde. Escutei de um severo líder religioso no começo dos anos 2000 que uma mãe de família da Grande São Paulo se envolveu em um chat na internet, mandou uma foto dela e depois essa passou a circular em uma montagem pornográfica. Da mesma pessoa escutei por volta de 2007 a mesma história, só que o meio foi o Orkut. Com certeza depois vieram a versões 3.0 do Facebook, 4.0 do Instagram… Agora deve estar se deliciando com os aplicativos que mudam o rosto em vídeos.
2. Implicação: é o que impele as pessoas a propagar o boato, pois de alguma forma nos afetam. Por exemplo, tomar as gororobas verdes como para detoxicar (pronuncia-se detochicar) ou evitar o glúten.
3. Negatividade: salvo os raros boatos laudatórios para políticos ou figuras queridas, ao estilo “Sérgio Reis doa todo seu salário de deputado para o Hospital do Câncer em Barretos”, esses discursos tendem a assassinar caráter, marcas e minar as reputações.
4. Atribuição: alguém disse e, portanto, tenho certeza das minhas fontes. Esse atribuído a alguém muito próximo, mas indisponível. Isso não resiste a uma simples verificação. Para piorar, quando jornais respeitáveis são flagrados com a disseminação antiética de informações, a sensação é que tudo que o “sistema” controla é corrompido.

Eu adicionaria dois elementos relacionados:

5. Comportamento de manada: embora seja uma atitude de solipsismo decidir o que se acreditar, as crenças são comunicadas, ou seja, são sociais. Por indignação uma pessoa reproduz uma frase ultrajante dita por uma sub-celebridade ou por conformidade com os pares rejeita os fatos quando contrários às crenças do grupo de afinidade. Estando pronto o canal de mentes dispostas a seguirem essas modas o fenômeno fica viral.

6. Neotribalismo: a mobilidade; a ruptura de vínculos tradicionais de família, identidade étnica e religião; e a possibilidade de conectar-se com pessoas com interesses afins geraram um neotribalismo. O ser humano é um animal gregário, necessitando a filiação a grupos no qual tenha status e valorização como pessoa. As comunidades imaginadas, mesmo que pequenas (aliás, a intimidade de um pequeno grupo não pode ser subestimado), ao tempo que se conecta com pessoas totalmente diferentes dá certa proteção. Hoje é possível jogar online com colegas de Nairóbi, Helsinki e Rio Branco do Acre. Como no experimento de Asch, por vezes, o indivíduo vai adequar suas expressões e crenças para conformar-se aos ideais do grupo. Assim, a veracidade da trilogia duvidosa não é tão relevante.

As consequências dessa institucionalização são sérias. Em nome da liberdade de expressão, da liberdade de crença, do pluralismo das ideias tornou-se admissível os “alt-facts”. Nessa construção social da realidade, há casos como da menina que esfaqueou a colega porque o Slender Man — um personagem criado e cultivado em fóruns virtuais — mandou. Há desafios tipo baleia azul ou histerias coletivas. O medo tornou-se uma lucrativa commodity.

Embora a organização mitológica ou narrativa da realidade talvez seja um universal e constante humanos, é possível modulá-los para evitar danos. Não seria apregoar um racionalismo científico ocidental como única realidade digna de ser considerada, mas fomentar o senso crítico e a empatia. A consciência de que cada um seja responsável pela mensagem que propala já é um começo.

No auto-deprecatório e propositalmente péssimo filme This is the End (2013) de Seth Rogen, os atores-personagens ironizam o glúten: não sabem o que é, mas deve ser algo ruim. É um exemplo clássico da demonização que as lendas urbanas, boatos e fake news podem causar. Lembro no final dos anos 1990 as lojas naturebas e feirantes japoneses vendiam o seitan como um alimento rico em glúten, essa saudável proteína de origem vegetal, a todos recomendada exceto aos afligidos por doença celíaca. Hoje virou sinônimo de tudo quanto é péssimo. Espero que o próximo glúten seja o boato, as fake news e os “fatos alternativos” e as lendas urbanas perniciosas.

SAIBA MAIS

ANDERSON, Benedict; BOTTMAN, Denise. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Editora 34, 2011.

BRUNVAND, Jan Harold. The vanishing hitchhiker: American urban legends and their meanings. Nova Iorque e Londres: WW Norton & Company, 1981.

DORSON, Richard Mercer. American folklore. Chicago: University of Chicago Press, 1977.

DION, Sylvie “A lenda urbana: um gênero narrativo de grande mobilidade cultural” Boitatá v. 3, n. 6 (2008). http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/article/view/31156

LOPES, Carlos Renato. Em busca do gênero lenda urbana. Linguagem em (Dis)curso, [S.l.], v. 8, n. 2, p. 373-393, out. 2010. ISSN 1982-4017. Disponível em: <http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/394&gt;. Acesso em: 10 ago. 2018.

MAFFESOLI, Michel. A Transfiguração do Político: a tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 1997.

RENARD, Jean-Bruno, Um gênero comunicacional: os boatos e as lendas urbanas. Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, 2007, (Abril-Sin mes). Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=495550188015> ISSN 1415-0549

Como citar esse texto no formato ABNT:

Citação com autor incluído no texto: Alves (2018)

Citação com autor não incluído no texto: (ALVES, 2018)

Referência:

ALVES, Leonardo Marcondes. Boatos, lendas urbanas e fake news: institucionalização das incertezas. Ensaios e Notas, 2018. Disponível em:  https://wp.me/pHDzN-4GD . Acesso em: 20 jul. 2020.

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