A inutilidade das contendas

O silêncio é a única resposta que devemos dar aos tolos. Porque onde a ignorância fala, a inteligência não dá palpites. Pe. Fábio de Melo

ponto de vista 6 9

A sinistra figura que nas vilas medievais conclamava os aldeões à caça dos judeus, das bruxas e dos albigenses ganhou poder com a mídia de massa. Gutenberg sequer imaginaria que seu invento em menos de um século resultaria na panfletagem que propagaram as cruéis guerras religiosas dos séculos XVI e XVII. Sequer imaginaria que a panfletagem agora deu lugar aos vídeos em redes sociais virtuais do pundit que meneia a cabeça segurando a câmera trêmula falando com uma assertividade impressionante sobre coisas que dificilmente compreende. E intima o oponente – real ou espantalho – ao debate.

Como no chavão, em uma guerra a primeira vítima sempre é a verdade.

Chamo de discussão sisifosiana aquela não vale a pena entrar, pois o argumento é tão esdrúxulo que seria pretensioso educar o debatedor da pré-escola à universidade em poucos minutos. Nessas discussões as premissas, as operações lógicas e as conclusões – sempre apresentadas sob a aura de fatos – são tão fantasiosas que pertencem ao mundo de Alice.

Entrar em discussões acaloradas em cada controvérsia que pululam a todo minuto é insano a qualquer um que tenha razão.

O primeiro motivo é a provocação infundada. A retórica do polemista geralmente é pobre: antes baseada no canal e no “é verdade porque eu quero” que em uma avaliação crítica de fatos. Para substanciar seu ponto de vista apresenta contra-argumentos: se a Terra é redonda, por que não andamos inclinados visto que somente no polo norte estaríamos em pé sobre o planeta? A cena de fundo – uma multidão em uma manifestação política, uma estante cheia de livros ou bens luxuosos – serve para vindicar a verdade do proponente. A mensagem que ele quer passar é “não discordem de mim, pois tenho apoio das massas, tenho leitura ou tenho grana e você nada disso tem”.

Outro motivo é o desinteresse pela verdade. A preocupação maior é desacreditar o oponente, mesmo que o outro esteja certo.

Infelizmente são poucos os seres que honestamente estão abertos ao convencimento em seu sentido etimológico. Convencer vem de “vencer junto”.

Volta e meia esses polêmicos adoram trocar uns beliscões entre si, inflando assim o número de seguidores. Por sua vez, os seguidores gabam-se de seu abestalhado favorito dizendo “oh, fulano humilhou sicrano nesse vídeo. Vixe! Esse meme refutou beltrano”. Mas hipocritamente silenciam quando a resposta contundente os atinge.

O número crescente de sicofantas é necessário tanto para aplaudir o controversista quanto para ser a infantaria de ataque a quem pensa ou se comporta diferentemente. Para eles, o mundo só tem duas categorias: os que pensam iguais a eles e os que não. Chamam de isentões quem percebe a complexidade além do preto no branco, classificando-os como inimigos enquanto louvam mutuamente sua turminha, mesmo quando suas teses são equívocas. Seguem marchando firme em um perigoso pântano da certeza infundada.

Ataques ad hominem alimentam essa disputa. Não basta a ideia alheia estar errada, é necessário apresentar os podres (reais, imaginários, diminutos ou grandes) da pessoa. As acusações recíprocas crescem em uma escalada autodestrutiva. (Como se o erro alheio os fizessem certos). É necessário inflamar os ânimos para destruir os outros – sempre apresentados de forma caricatural e animalesca.

A incapacidade de compreender o próximo também é somada à incapacidade de compreender fenômenos complexos. Platão, conforme a lenda, proibia quem não soubesse geometria de estudar em sua escola, talvez para evitar picuinhas com quem não tem a mínima noção de um método (a matemática e a geometria) para reduzir a complexidade em modelos e linguagens inteligíveis as quais são essas disciplinas. Que se dirá do pessoal de humanas incapaz de operar uma planilha de cálculo, mas arrisca afirmar certezas categóricas? Há quem argumente que seu método é qualitativo e que não precisa de ‘positivismos’, mas se perde ao fazer uma simples análise FOFA. Por que não há debatedores de internet se exaltando para calcular a carga de uma ponte?

Como mencionado, matérias expressas pela linguagem matemática são relativamente simples. Ainda que os processos matemáticos sejam penosos, engenheiros conseguem debater cálculos, melhores meios e viabilidade de seus projetos sem a interferência de seus objetos de estudos. Já fenômenos humanos – a política, a economia, a religião, a cultura, o direito e o convívio social – são mais intricados de se analisar. Afinal, qualquer ser humano tem seu direito à opinião. Apesar dessa complexidade, há caminhões de ‘especialistas’ dispostos a darem a última palavra acerca desses fenômenos humanos.

Se com os educados, por vezes, é difícil entabular uma discussão produtiva, imagine discutir com quem utiliza a mesma fórmula monocausal para explicar desde o 7×1 até a guerra na Síria.

Espero que conceitos básicos de biologia, da matemática e dos fenômenos sociais sejam internalizados na mentalidade geral em um tempo próximo. Enquanto isso, serão discussões sisifosianas de arrancar cabelos temas como evolução das espécies, políticas econômicas ou direitos humanos com quem não consiga reconhecer as organelas de uma célula, esboçar um gráfico de elasticidade ou diferenciar entre igualdade, equidade e isonomia.

Embora creia ser vital a disseminação popular da ciência e das humanidades (razão suficiente para blogar e trabalhar com editoração científica), pois muito dos frutos de séculos de estudos ainda não chegaram à vida cotidiana, passei a admitir que não seja pernóstico o refúgio de pesquisadores em torres de marfim.

Certa vez, perguntei a um pesquisador –  autoridade líder a respeito de um eminente pensador medieval – sobre uma questão histórica das ideias do tal escolástico. Educadamente respondeu que essa não era a área dele, pois estudava o aspecto formal das ideias do pensador. Ofereceu-me emprestado uma tese de um colega que abordava essa perspectiva histórica. Em vez de especular hipóteses que em seu entendimento não fruiria em resposta satisfatória ao seu interlocutor, aderiu à inteligência do silêncio. Esse silêncio elegante contrapõe-se ao barulho incômodo do bater das panelas precipitadas dos amantes da polêmica.

A serenidade diante da provocação de modo algum indica inépcia para sustentar um argumento. O ponderado pode simplesmente ter conhecimento o bastante para não considerar sério o apelo desinformado do provocador.

De modo geral, os polemistas empregam jargões e conceitos científicos de modo distorcidos, para fomentar sua própria autoridade. Fazem um uso convenientemente parcial do conhecimento científico de modo assistemático, enviesado e impróprio.

Às vezes o polemista tem sim alguma boa base, mas a apresenta de forma circense mais para entreter que ilustrar seu público. Geralmente a ideia é tão boa quanto original, mas a parte boa não é original e a original não é boa, para parafrasear Samuel Johnson.

Nesse esquema, lançam um livro cheio de obviedades como se fossem a última descoberta do mundo. Nesses livros atacam seus oponentes: “a academia”, o “estamento burocrático”, “a medicina alopática”, “a história oficial” e outros termos reificados tão concretos quanto o éter luminífero. Tratam os oponentes não como sujeitos prontos ao diálogos, mas como obtusos por não verem essas platitudes. Quando certamente os integrantes desses grupos tiveram um contato crítico com a questão no primeiro ano de sua educação formal.  É o revisionista que grita sobre um detalhe que “a historiografia quer esconder” e o povão aplaude, enquanto o fato já era sabido e pacífico entre os historiadores por décadas, mas nem o polemista nem seu séquito se preocupam em triangular com outras fontes.

Os pundits repetem os mantras de que sabiam mais que os professores quando estiveram nos bancos escolares e de que o “sistema” educacional persegue as mentes brilhantes que não conseguem emburrecer. Essas narrativas será importante para distinguir entre nós e eles, dando um sentimento de ser especial, criando um vínculo de solidariedade entre seus séquitos que se veem sitiados no mundo.

Assim, moldam a realidade a sua visão, denunciando tudo da realidade que fuja ao modelo imaginado.

O célebre conceito de Isaiah Berlin do porco-espinho — o especialista que vê tudo sob a ótica de uma grande ideia — e da raposa — o multifacetado conhecedor que não vê pareidolias nas coisas — é empregado pelo psicólogo Daniel Kahneman para criticar os excessos dos debates dos porcos-espinhos.

Porcos-espinhos “sabem uma grande verdade” e têm uma teoria sobre o mundo; eles explicam eventos particulares dentre de uma estrutura coerente, ficam eriçados de impaciência com quem não enxerga as coisas da mesma maneira que eles e são confiantes em seus prognósticos. Também se mostram especialmente relutantes em admitir um erro (…). São cheios de opiniões e segurança, e esse é exatamente o motivo pelo qual os produtores de TV adoram vê-los em seus programas. Dois porcos espinhos em lados diferentes de uma questão, um atacando as ideias imbecis do outro, dão uma boa mesa redonda.

Por vezes esses visionários detém títulos acadêmicos e são autores publicados via revisão por pares. Mas gastam pouco tempo discutindo coisas das áreas nas quais se dedicaram à pesquisa, antes aproveitam das credenciais para validar disparates marginais. Para piorar, não distinguem entre conhecimento científico e cientificismo. Tratam a ciência como substância, não como processo ou adjetivo, para desmerecer todos seus integrantes. Mas, enquanto o conhecimento científico é aberto à revisão ou contestação, as doutrinas dos polemistas além de não serem replicáveis, refutáveis ou verificáveis, tendem ao risível: confundem relação com causa, mapa com território, agência com estrutura, evidência anedótica com generalização.

Tipicamente trocam os pés pelas mãos ao usarem os processos de dedução, indução e abdução. Tomando o problema indutivo como exemplo, geralmente selecionam um valor aberrante para “provar” que os 99% dos dados em uma série estão errado, quando o contrário seria tentar explicar a anomalia do ponto fora da curva. Tentam fazer da exceção a regra e vice-versa.

Ninguém domina todos campos do saber, mas podemos depender em autoridade para aquilo que não dominamos. Se para mim é difícil compreender equações transdecimais  ou como a luz pode ser partícula e onda ao mesmo tempo, não tenho muito recurso a não ser depender de uma autoridade ou de fé. Argumentar baseado em um especialista, como o “mestre disse” era o que colocava um ponto final nas intermináveis discussões escolásticas. Para um livre-pensador, aceitar a palavra de uma autoridade como legítima somente por seu testemunho seria ato de lesa-majestade. Mas para se viver é preciso fazer concessões, mesmo que operacionais.

Tenho de aceitar o bisturi que me opera, o cálculo do engenheiro que fez a ponte, o testemunho do historiador que examinou exaustivamente todas as fontes primárias de um evento e as contrastou com os debates correntes de sua área. Mesmo que alguns desses profissionais estejam equivocados (ou ajam de má-fé) deve-se aceitá-los até que se apresente outro contra-argumento convincente ou evidências colhidas com métodos equiparáveis ou superiores. Caso não concorde com suas autoridades, devo então passar pelas mesmas experiências que os tornam especialistas: ler os mesmos livros, formar-me nos mesmos cursos, replicar os mesmos experimentos, usar os mesmos métodos e teorias. Tinha razão John Henrik Clarke ao dizer que “só debato com meus iguais. Todos os outros, eu ensino”. Uma variante deveria ser apreciada: “só debato com meus iguais. Com todos os outros com mais conhecimento, eu aprendo”. Isso não é renunciar ao pensamento crítico.

O mesmo deveria valer para polemistas. Em artigos de revistas, em mesas de bar ou nas páginas de blogs abundam opiniões de comentaristas que fazem afirmações categóricas em assuntos dos quais não possuem a mínima noção. Para eles, relatos anedotais no Facebook ou Twitter seriam fontes suficientes e mais crível que os outros canais. Todos tem uma opinião infundada sobre política, religião, ciência. Assim, esses polemistas, por não entenderem a criatura, atacam o criador. Partem para a difamação, berros chulos, intrusão da privacidade, clichês como “você não deve ter lido direito isso”, “vai estudar” ou “já refutei” – tudo conforme pede a falácia ad hominem. Basta ler os quatro primeiros resultados do Google para se tornar um erudito.

Tanto a leitura superficial que ignora a linguagem metafórica quanto a leitura rápida e imponderada dos polemistas tem algo em comum: letramento deficitário. A eles sobram dois remédios: ou ler melhor ou seguir a proposição de Wittgenstein “Naquilo que se não sabe falar, fique-se em silêncio.” O inverso disso é verdade “sobre aquilo que a pessoa não quer entender, fique-se em silêncio”.  Não se trata de bloquear qualquer chance ao diálogo. Os canais de comunicação abertos e a boa-vontade de interagir com qualquer um que honestamente esteja disposto a dialogar devem ser constante. Mas é questão de sanidade seguir o conselho do abolicionista William Lloyd Garrison: “Com pessoas razoáveis, argumentarei; com pessoas humanas, eu implorarei; mas aos tiranos não darei trégua, nem desperdiçarei argumentos onde certamente se perderão”.

Por esses motivos é bom policiar-se e evitar contendas infindáveis. Debater somente com interlocutores inteligentes, pacíficos e humildes seria o ideal, porém vivemos em um mundo dominado por uma urgência. A denúncia de Martin Luther King, Jr. de que o silêncio dos justos alimenta a maldade dos ímpios é cada vez mais premente. Diante disso, a quem não quer o desgaste de uma acirrada batalha de insultos, instrua.

SAIBA MAIS

BESTMAN,  Catherine; GUSTERSON,  Hugh (eds.). Why America’s Top Pundits Are Wrong:  Anthropologists Talk Back.  Berkeley: UCPress, 2005.

GOTTLIEB, Alma. Is History Over? How Can Power be Soft? Ask Ulf Hannerz.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. Tradução Cássio de Arantes Leite. Rio de. Janeiro: Objetiva, 2012.

LISBOA, Victor. Você é uma raposa ou um porco-espinho? Ano-Zero. Ensaio que demonstra a serenidade de ser ‘raposa’ frente aos conflitos dos ‘porcos-espinhos’, os quais precisam de seus antagonistas para terem voz.

11 comentários em “A inutilidade das contendas

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  1. “Se lhe ocorrer um argumento brilhante, uma réplica vitoriosa que mude o rumo da conversa, não ceda à tentação de brilhar, mantenha o silêncio; as pessoas finas verão sua inteligência nos seus próprios olhos. Você terá tempo de se mostrar inteligente quando for bispo.” Stendhal. A cartuxa de Parma.

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