O conceito de narcisismo das pequenas diferenças, originalmente proposto por Sigmund Freud, revela uma tendência fascinante em vivermos em rixa com quem se parece conosco.
As pessoas tenderiam a exibir maior sensibilidade, esnobismo e conflito em relação àqueles que têm grande semelhança social. O narcisismo das pequenas diferenças alimenta as controvérsias triviais dentro de grupos semelhantes. Biscoito ou bolacha? Coxinha ou mortadela? Flamenguista e Fluminense? Batista maoísta mizo ou batista maoísta naga? Essas tretas Freud explica.

O narcisismo das pequenas diferenças
A essência do Narcisismo das Pequenas Diferenças
Freud observou que comunidades ou grupos com fortes semelhanças e características compartilhadas são propensos a se envolver em rixas constantes e ridicularizar uns aos outros.
Surpreendentemente, esses conflitos não são direcionados para aqueles que são muito diferentes. Antes, o alvo do ódio direciona-se para aqueles que carregam semelhanças impressionantes. Classe social, filiação religiosa, preferência política, gosto estético, ser fãs dos mesmos esportes e outros traços. Os mínimos detalhes de diferenciação tornam-se gatilhos significativos, levando à mesquinhez e crueldade dentro desses grupos.
A dinâmica das controvérsias triviais
O narcisismo das pequenas diferenças ilumina os processos psicológicos subjacentes a esses conflitos. Um fator chave é a necessidade humana de identidade e um sentimento de pertença. Dentro de grupos semelhantes, os indivíduos se esforçam para estabelecer seu espaço único e afirmar sua individualidade. Diferenças triviais servem como um meio para solidificar uma auto-identidade clara e delinear limites em um mundo que de outra forma poderia ser ambíguo.
A necessidade de se sentir heróico obriga a defender questões aparentemente cruciais contra pessoas que ameaçam corromper a verdade ou violar os limites de uma coisa sacrossanta.
Além disso, os conflitos decorrentes de pequenas diferenças validam a importância e o significado de cada um. Ao defender questões aparentemente cruciais contra indivíduos semelhantes, um senso de propósito é reforçado. Assim, é um modo de validar as próprias crenças e verdades comuns entre os conflituosos. A própria semelhança da outra pessoa intensifica a percepção dela como uma ameaça potencial, capaz de corromper ou deturpar sua identidade e crenças.
Ainda, as picuinhas também servem para forjar alianças. O conteúdo em discórdia pode não ser lá importante, mas quem está do seu lado na trincheira é. Ao odiar algo ou alguém em comum, o indivíduo reforça seu sentimento de pertença.
As rixas também validam os pressupostos tidos em comum em grupos opostos. Um conservador e um progressista discutindo políticas públicas acirradamente sequer cogitam que há alternativas à dicotomia direita-esquerda.
Há outra funcionalidade nessas mesquinhezas. Anton Blok (1998), numa reavaliação do tema, nota que Bourdieu postulou que a identidade social está na diferença. Assim, a diferença é afirmada contra o que está mais próximo, o que representa a maior ameaça. Além disso, o autor observa que Louis Dumont documentou como hierarquia e grandes diferenças contribuem para relativa estabilidade e paz da ampla sociedade. Mas, aqui vale lembrar que sempre há risco de escaladas de violências decorrentes da polarização.
Exemplos da vida real
O narcisismo das pequenas diferenças desempenhou um papel significativo nos conflitos humanos ao longo da história. E isso ocorre em várias áreas, como se vê:
- Facções políticas: Os partidos políticos, unidos por ideologias compartilhadas, muitas vezes se envolvem em debates ferozes sobre pequenas diferenças políticas. Subgrupos dentro dos partidos podem discutir apaixonadamente sobre interpretações diferenciadas de questões específicas, às vezes levando a divisões internas e grupos dissidentes.
- Denominações religiosas: Dentro de uma religião em particular, diferentes denominações podem ter crenças centrais semelhantes, mas se envolver em disputas contínuas sobre variações teológicas menores. Essas divergências podem se transformar em conflitos significativos, resultando em cismas e na formação de novos grupos religiosos.
- Disciplinas Acadêmicas: Áreas de estudo semelhantes na academia vivem intensos debates sobre pequenas diferenças teóricas ou metodológicas. Escolas de pensamentos emergem em disciplinas intimamente relacionadas. Seus defensores podem se envolver em rivalidades e batalhas intelectuais, centradas em interpretações sutis ou abordagens de pesquisa contrastantes.
- Movimentos Artísticos: Artistas e entusiastas pertencentes ao mesmo movimento artístico podem se envolver em discussões contenciosas e argumentos sobre variações sutis na técnica, assunto ou filosofia artística.
- Adeptos da psicanálise: Ironicamente, o sectarismo entre freudianos ortodoxos, junguianos, lacanianos, kleinianos e outros parace não terminar.
Ponderação
O conceito do narcisismo das pequenas diferenças lança luz sobre a peculiar dinâmica do conflito dentro de grupos semelhantes. Ao se fixar em distinções triviais, os indivíduos e as comunidades muitas vezes se envolvem em disputas que parecem insignificantes para quem está de fora.
O narcisismo das pequenas diferenças traz à consciência que muito de nossas vítimas são amigos, parentes ou conhecidos.
Compreender esse fenômeno psicológico pode promover empatia, tolerância e uma perspectiva mais ampla, reduzindo a magnitude dos conflitos enraizados em diferenças triviais. Reconhecer a presença universal do narcisismo das pequenas diferenças é um passo crucial para construir relacionamentos harmoniosos e promover a unidade em meio à diversidade.
Sem contar que para o observador externo o grande conflito só é grandemente ridículo. Afinal, todo mundo sabe que nem é biscoito ou bolacha, mas rosquinhas.
SAIBA MAIS
Blok, A. (1998). The Narcissism of Minor Differences. European Journal of Social Theory, 1(1), 33–56. https://doi.org/10.1177/136843198001001004
Freud, S. (1991). Group Psychology and the Analysis of the Ego [1921]. In A. Dickson (Ed.), The Penguin Freud Library (Vol. 12, pp. 91-178). (J. Strachey, Trans. & Ed.). Harmondsworth, England: Penguin Books.
Este post, claro, com as devidas referências e créditos, vão para a sala de aula, para introduzir o tema identidades individual e social.
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Sinto feliz em contribuir com meu grão de sal.
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👍
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Muito interessante, me parece descrever bem o problema entre radicais e moderados de um mesmo movimento. Além de ilustrar como a frase do Golbery “segurem seus radicais e nós seguramos os nossos” é muito mais difícil do que parece.
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É similar à teoria da ferradura. Os opostos mais radicais mais se assemelham à medida em que se odeiam.
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