Abstração é criar um modelo ideal abstrato que afaste uma ideia da realidade, assim a protegendo de eventuais críticas por ser dissonante com a lógica ou com evidência externa.

Um argumento se torna ideologia (em sentido amplo) quando a própria ideia passa a ser defendida separada de suas bases referenciais.
Imagine o seguinte diálogo.
“Rosquinhas combinam com café. Todo mundo sabe disso.”
“Hmmm…gosto é bem subjetivo. Não sei se todos concordam com isso”
“Óbvio que sim. Faça uma enquete.”
“Pois bem, fiz. Nem todo mundo concorda. A enquete retornou que 40% preferem com café, 20% com chá e 20% com achocolatado”.
“A rosquinha ideal só existe com café. As outras combinações são apenas desvios do ideal”.
Com as falácias de mover as traves, do escocês de verdade e petição de princípios, o rosquinha-com-café produz uma abstração irrefutável, inverificável e não falseável.
Morre aí qualquer possibilidade de entendimento. Uma perspectiva crítica, consciente de onde esteja situada, contextualizada, em um diálogo entre o emic e o etic, seria a resposta a essa falácia abstracionista. Haveria ao menos a possibilidade de avançar em conhecimento.
Uma ideologia abstrata é protegida de evidências externas por sua própria natureza. Um grupo sectário sob um cerrado escrutínio tenta preservar sua ideologia por vários mecanismos. Um deles é a abstração. Assim, as evidências externas contraditórias à ideologia do grupo pode motivar a construção de sistemas altamente abstratos. Pela abstração, a coerência interna em conjunto de pressupostos dados, tácitos e aceitos passam a ser mais importantes que seus referentes reais.
Para abstrair basta juntar algumas falácias e truques cognitivos. Um deles é a ressignificação. Com essa técnica pega-se termos e conceitos e passam a dar o sentido almejado. Fizeram isso com o conceito de “liberdade” na Declaração de Independência dos Estados Unidos, na qual o termo “obviamente” não se aplicava a mulheres, indígenas e aos escravizados. Outra técnica é a escolha conveniente. Em um dado universo de evidências, significados e processos, o manipulador cuidadosamente conectar os pontos que construirão o conceito abstrato. Mutios modelos microeconômicos, desde os neoclássicos até os austríacos, abusam disso com varinha de condão “ceteris paribus”.
Teóricos da conspiração amam empregar a abstração com a falácia de mover as traves. A teoria da conspiração da ameaça vermelha ilustra isso. Nos inquéritos do Macarthismo, uma vez que uma pessoa era listada como suspeita toda ausência de evidências era prova de sua participação secreta na conspiração comunista e toda evidência contrária passava a ser insuficiente porque, afinal, forjar álibis era o que os conspiradores faziam. O modelo abstrato de um grupo secreto agindo coordenadamente para destruir instituições ou valores abstratos (“liberdade”, “civilização ocidental” ou “família cristã”) ficava a salvo. E um modelo irrefudável vinha a calhar para exatamente violar os usufrutos desses valores. O público esquecia rapidamente que perseguidos políticos e famílias multi-étnicas eram pessoas de carne e osso.
A abstração passa a definir o conteúdo de uma comunidade interpretativa e os limites para excluir os críticos. Com isso, torna-se fácil inutilizar o argumento de uma pessoa fora dessa comunidade apelando para cosmovisão, necessidade de conhecimento a posteriori, experiências, situação, praxeologia, perspectivismo, lugar de fala, mindset ou outro mecanismo de iluminação. E frequentemente esses próprios conceitos são distorcidos, abstraídos para servir não a um refinamento argumentativo, mas exatamente para obscurecer.
A crítica dirigida por uma ideologia política ou religiosa dogmaticamente sustentada não é pensamento crítico. Há uma grande diferença entre demandar uma base educacional para ter pontos comuns para se discutir um assunto e limitar a discussão somente aos que já aceitaram os pressupostos e conclusões de uma comunidade interpretativa. A hermenêutica da suspeita tem razão de desconfiar de “ortodoxias” acríticas.
O consenso forjado ajuda a criar um senso de comunidade para se proteger tanto o “Nós” dos “Outros” quanto contra a lógica e a evidência. A validade de um argumento passa a ser pelo pertencimento à comunidade. E a Associação para o Avanço do Café com Rosquinha prova que a ideologia certa.
O irônico que a abstração pode se mover de um lado para o outro do posicionamento do argumentador. Pode ser totalmente “positivista” com uma racionalidade matemática para esconder as limitações do modelo. É o que acontece com muitos modelos neoclássicos em economia. Pode ser totalmente “situado” ao exigir uma gama restritíssima de intersecções para se ter a legitimidade de ao menos argumentar. É parte do discurso de ativistas que só querem ouvir a partir de um único lugar de fala ou de aderentes de teologias gnósticas que somente aceitam argumentar com quem compartilhe o mesmo conjunto de pressupostos.
E o debate fica, por vezes, acirrado dentro da própria comunidade. A disputa pelos mínimos detalhes do argumento legitimiza as premissas iniciais sem demandar pensamento crítico. Daí a disputa entre os comedores de rosquinha de coco com os fanáticos por rosquinhas de canela sobre qual rosquinha deva acompanhar o café. A falsa dicotomia dá a falsa sensação de que as bases são indisputáveis.
Vários conceitos — muitos deles legítimos se contextualizados com propriedade — são abstraídos e manipulados: justiça, liberdade, natureza, racionalidade. Outros conceitos são feitos abstrações demonizadas conformea conveniências: os “revolucionários”, os “utópicos”, o “feminismo”, o “comunismo”, o “globalismo” e outros espantalhos.
Uma vez idealizado um modelo, é fácil confundir — frequentemente com um arbítrio desvairado — mapa com território, representante e representado. A abstração passa a ser estereótipo para avaliar tudo e todos.
Aos não iniciados, tratam só com o olhar condescendente de “não entendem, coitadinhos”. E com a aprovação mútua, vivem felizes em sua redoma alienada. Ao menos na redoma há café com rosquinhas.
SAIBA MAIS
Ghiselin, Brewster. The Creative Process. New American Library: New York, NY, USA, 1952. Obra pioneira que trata do pensamento processual. Registra a agência na atividade criativa. A abstração é um processo interno, criativo, ativo e subjetivo.
Nescolarde-Selva, Josué Antonio, José-Luis Usó-Doménech, and Hugh Gash. “What are ideological systems?.” Systems 5, no. 1 (2017): 21. Uma descrição operacional das ideologias como um sistema.
Ribeiro, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017. Mostra como a situação social afeta a percepção das experiências e possibilidade de expressá-las.
Tweed, Thomas A. “On moving across: Translocative religion and the interpreter’s position.” Journal of the American Academy of Religion 70, no. 2 (2002): 253-277. Oferece um interessante contraste entre a posição supralocativa (“positivista”) e locativa (“situada”), por fim, discorre sobre uma posição translocativa.
VEJA TAMBÉM
Brilhante. Gostava de o publicar no meu blogue com o teu permiso.
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Ficarei honrado. 😉
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