A falácia genética ou etimológica

susie

“O Brasil nunca vai dar certo porque foi colonizado por bandidos.”

“Não ande de fusca, pois foi inventado pelo governo do Hitler e você estará compactuando com ele.”

“Dizer suicidar-se é errado e redundante, pois o prefixo sui- em latim já significa se.”

Essa falácia lógica – às vezes irrefletida, outras vezes simplesmente pedante – argumenta que a qualidade ou o significado original na fonte afetam seus sentidos e validades subsequentes.

A falácia genética ignora as transformações semânticas. A adaptação humana acha mil e uma utilidades para qualquer coisa além de seu propósito original. Uma garrafa de refrigerante – feita para armazenar a bebida açucarada – pode depois funcionar como cofre de moedas, rolo para massa, peso de porta, arma, recipiente para outros líquidos e grãos; enfim, tudo o que a inventividade venha produzir.

Tal forma de pensamento ilógico pode ter uma interface com argumentos ad hominem. Como no exemplo do fusca, seria irracional rejeitar uma ideia porque foi dita por alguém cuja filiação seja contrária a seus princípios e não pela razoabilidade do argumento. Imagine se um herege dissesse ‘um triângulo tem três lados’ ou ‘não atravesse a rua, pois está vindo um caminhão desgovernado’, seria razoável não acreditar nessa pessoa devido sua crença heterodoxa?

Há situações que a pessoa fonte do argumento é relevante. É o caso de testemunhas e do conflito de interesses, mas são exceções.

Uma forma especial da falácia genética é a falácia etimológica.

Por vezes, a pessoa tenta inferir os significados não pelo contexto, mas pelos valores etimológicos dos morfemas. Por essa lógica, setembro seria o sétimo mês, outubro o oitavo, novembro o nono  e dezembro o décimo. Quem pensa assim ignora que a semântica prega tantas peças que em certas ocasiões uma palavra pode ter seu sentido contrário ao dos morfemas, como no clássico unissex, que não é um único sexo, mas relativo a ambos.

E a lista de proibições pernósticas infundadas continua: “é errado falar meio ambiente, pois meio e ambiente dizem a mesma coisa” ou “política quer dizer coisa pública, portanto é pleonasmo dizer política republicana visto que res publica significa coisa pública. E dizer então política pública…Vixe!”

Além desses exemplos verbais, há a ressignificação de instituições. Como bem já alertava Nietzsche:

A causa da gênese de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva
utilização e inserção em um sistema de finalidades, diferem toto coelo [totalmente]; de que algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova, transformado e redirecionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é superior. A Genealogia da moral.

Tomemos exemplos institucionais da religião e de políticas de identidade.

Tomemos um grupo religioso cristão separatista recusa-se qualquer apelação a não ser “cristã”. Recusa ser chamada protestante, pois “não protesta contra nada”; tampouco é calvinista, pois “não são seguidores de homem algum”; muito menos é pentecostal, pois “pentecostes era uma festa que meramente coincidiu com o derramar do Espírito Santo”. Mas como diz o ditado inglês, “se parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então provavelmente é um pato”.

Outros ativistas, utilizando-se de concepções essencialistas, abominam uma mulher ter um anel de noivado, pois supostamente “a origem do anel de noivado é a venda da noiva”. Ou condenar o uso de adereços comuns por outros grupos étnicos, como no proibir o uso de turbantes por mulheres que não sejam de origem africana, pois supostamente “o turbante deriva-se do vestuário africano”.

A ladainha possui muitas variações, como no caso das datas festivas. “O natal não deve ser comemorado, pois era uma festa pagã”; “comemorar o 1o de maio ou dia das mulheres é errado, pois são datas comunistas” ou “celebrar o dia da independência ou da proclamação da república é errado porque foram golpes de interesse das elites”.

Mencionando ainda a história política das instituições, não há correlação alguma do estado das coisas no Brasil derivar-se de seu passado de colonização com degredados. As pesadas ordenações manuelinas e filipinas mandaram condenados por toda variedade de crimes (e comportamento que hoje seria ridículo), bem como minorias como órfãos, mulheres solteiras sem famílias, cristãos-novos, ciganos, desempregados ou leprosos. Os Estados Unidos, especialmente depois do Transportation Act de 1717 até sua independência em 1776, também recebeu degredados. O mesmo aconteceu na Austrália, fundada como colônia penal. E são países que, em muitos aspectos, deram certos.

E a chatice irracional da falácia genética ou etimológica desfia-se interminavelmente. Infelizmente, é difícil filtrar a informação que nos chega, mas podemos pensar criticamente e rejeitar essas estultícias.


Para conhecer argumentos furados e outras falácias, o Um livro ilustrado de maus argumentos é um começo.

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