Popper: Teoria social da conspiração

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A fim de esclarecer meu ponto de vista, descreverei de forma breve uma teoria amplamente difundida, mas que resume o que considero o oposto do verdadeiro objetivo das ciências sociais. Chamo-a de teoria social da conspiração.  É a visão de que a explicação de um fenômeno social consiste na descoberta dos homens ou dos grupos interessados na ocorrência desse fenômeno (às vezes é um interesse oculto que primeiro deve ser revelado), e que planejaram e conspiram para efetivá-lo.

Essa concepção dos objetivos das ciências sociais surge, sem dúvida, da teoria equivocada de que tudo que aconteça na sociedade — especialmente acontecimentos como a guerra, o desemprego, a pobreza, a escassez, o que as pessoas geralmente não gostam — seja resultado do desígnio direto por alguns indivíduos ou grupos poderosos. Essa teoria é amplamente difundida. É mais antiga do que o historicismo (que, como mostra sua forma teísta primitiva, é um derivado da teoria da conspiração). Em suas formas modernas é —  como o historicismo moderno e certa atitude moderna em relação às “leis naturais” — um resultado típico da secularização de uma superstição religiosa. A crença nos deuses homéricos, cujas conspirações explicam a história da Guerra de Troia, desapareceu. Os deuses foram abandonados, mas seus lugares foram preenchidos por homens ou grupos poderosos — grupos de pressão sinistros, cuja maldade é responsável por todos os males de que sofremos — como os Sábios de Sião, ou os monopolistas, ou os capitalistas ou os imperialistas.

Não desejo sugerir que tais conspirações nunca acontecem. Pelo contrário, são fenômenos sociais típicos. Eles se tornam importantes, por exemplo, sempre que as pessoas que acreditam na teoria da conspiração chegam ao poder. E as pessoas as quais sinceramente acreditam que sabem como fazer o paraíso na Terra são as mais propensas a adotar a teoria da conspiração e a se envolver em uma contra-conspiração contra conspiradores não existentes. Pois a única explicação de seu fracasso em produzir seu céu é a intenção maligna do Diabo, que tem um interesse especial no inferno.

Tramam-se cabais, não há como negar. Mas o fato impressionante é que, apesar de sua ocorrência, refuta a teoria da conspiração deve-se ao fato de que poucas dessas conspirações chegam a um fim bem-sucedido. Os conspiradores raramente consumam suas conspirações.

[Um traço importante da teoria da conspiração da sociedade é o de que vai encorajar conspirações efetivas. No entanto, uma análise crítica vem mostrar que as conspirações dificilmente alcançam os seus intentos. Lenine, que defendeu a teoria da conspiração, era um conspirador. Mussolini e Hitler também. Todavia, os propósitos de Lenine não se concretizaram na Rússia, nem tão pouco os de Mussolini ou de Hitler na Itália ou na Alemanha.

Todos eles foram conspiradores, porque acreditaram, acriticamente, numa teoria da conspiração da sociedade.

É um contributo modesto se bem que não totalmente insignificante para a filosofia, chamar a atenção para os erros da teoria da conspiração da sociedade. Por outro lado, este contributo conduz à descoberta da enorme importância de que se revestem para a sociedade, as consequências involuntárias da atuação do homem assim como sugere que consideremos o papel das ciências sociais teoréticas na explicação dos fenômenos sociais como sendo o do estudo das consequências involuntárias dos nossos atos. (de Em busca de um mundo melhor)]

Por que isso acontece? Por que as realizações diferem tanto das aspirações? Porque é o que geralmente acontece na vida social, com ou sem conspiração. A vida social não é apenas um teste de força entre grupos opostos: é a ação dentro de um quadro mais ou menos resiliente ou frágil de instituições e tradições. E cria, além de qualquer oposição consciente, muitas reações imprevistas neste quadro, algumas até mesmo imprevisíveis.

Tentar analisar essas reações e antecipá-las na medida do possível é, acredito, a principal tarefa das ciências sociais. É a tarefa de analisar as repercussões sociais não intencionais das ações humanas intencionais – essas repercussões, cujo significado é negligenciado tanto pela teoria da conspiração quanto pelo psicologismo, como já foi indicado. Uma ação que procede precisamente de acordo com a intenção não cria um problema para as ciências sociais (exceto que pode haver uma necessidade de explicar por que neste caso particular não ocorreram repercussões involuntárias).

Uma das ações econômicas mais primitivas pode servir de exemplo para tornar clara a ideia de consequências não intencionais de nossas ações. Se um homem deseja urgentemente comprar uma casa, podemos seguramente assumir que ele não deseja aumentar o preço de mercado das casas. Mas o próprio fato de ele aparecer no mercado como um comprador tenderá a aumentar os preços de mercado. E observações análogas valem para o vendedor. Ou tomar um exemplo de um campo muito diferente, se um homem decide fazer um seguro de vida, é improvável que tenha a intenção de incentivar algumas pessoas a investir seu dinheiro em ações de seguros. No entanto, seu ato colabora para isso.

Vemos aqui claramente que nem todas as consequências de nossas ações são consequências pretendidas. Portanto, que a teoria social da conspiração não pode ser verdadeira, pois acarreta na afirmativa de que todos os resultados, mesmos os que não pareçam ser pretendidos por ninguém, sejam os resultados intencionais de ações de pessoas interessada. (de A sociedade e seus inimigos)


Em tempos que renascem teorias da conspiração para achar bodes expiatórios — culpar corporações farmacêuticas para rejeitar vacinas, culpar elites “globalistas” para rejeitar a aproximação dos povos, culpar os direitos humanos para criminosos para rejeitar o devido processo legal, culpar as minorias para rejeitar a isonomia jurídica, culpar iniciativas ambientalistas para rejeitar a existência de fenômenos como o aquecimento global—  esse ensaio de Karl Popper (1902 — 1994)  demonstra o perigo em acreditar nessas teorias, as quais não são inocentes.

O filósofo da ciência e social austro-britânico vivenciou o antissemitismo alimentado por teorias da conspirações propagada por libelos como Os protocolos dos sábios de Sião. Viveu à sobra de regimes totalitários — o nazismo, o fascismo e o comunismo — e da desconfiança de que a ciência poderia levar a humanidade à destruição durante a Guerra Fria.

Para Popper, a febre das teorias da conspiração começa com o declínio da figura de Deus na imaginação ocidental. Todos os desastres e infortúnios eram atribuídos a Deus na Europa pré-moderna. Com o Iluminismo, as desgraças passaram a serem vistas como intervenção de atores humanos. Intrigas da corte, novos grupos sociais como os maçons, grupos religiosos com uma agenda coordenada de militância como os jesuítas, ou simplesmente os “outros” (judeus ou ciganos) puxavam as cordas dos marionetes tendo em vista algo malévolo. É irônico que ao deixarem de crerem em Deus passaram a crer em poderes diabólicos.

A preocupação de Popper com o impacto social, científico e político das teorias de conspiração reflete nas várias versões desse ensaio que serve tanto à filosofia da ciência quanto à filosofia política. É provável que o ensaio tenha sido uma palestra ou aula de Popper e desmantela argumentos do espantalho — criação de inimigos imaginários para refutá-los facilmente. Encontrei-o em sua obra máxima, A sociedade  aberta e seus inimigos e variações em outras duas obras.

POPPER, Karl R. The Open Society and Its Enemies. Londres: Routledge, 1994 [1945], pp. 306-307. Em português A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. v 2 ed. São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1987. Pp.102-104.

POPPER, Karl R. Conjectures and refutations. 4a ed. Londres e Henley: Routledge Kegan Paul, 1972. pp.123-25 Publicada em português como Conjecturas e refutações (O progresso do conhecimento científico). Brasília: Editora da UNB, 1994.

POPPER, Karl R. Em busca de um mundo melhor. Lisboa, Fragmentos, 1989. Pp.162-163)

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