O ataque às sedes dos três poderes da União revela o quanto nossa organização social como democracia ainda é incipiente e frágil. No entanto, não vejo agora um momento para caças-a-bruxas, mas tempo para ponderação e busca ativa pela paz política.
Mas para reconstruir qualquer ruína, antes é preciso um diagnóstico que levante gargalos, danos e pontos de ameaças estruturais.
A escalada de violência política em contexto eleitoral é alarmante. Tivemos uma história até estável de processos eleitorais. Mas asssassinatos, brigas familiares, uso do aparato de Estado para suprimir o exercício do voto alcançou proporções que causam uma anomia. E lembramos que até no caos tem interesses e meios de ganhar dinheiro forçando a instabilidade.
Não se trata de um evento isolado. Em uma perspectiva macro, resulta de um processo ideológico para a destruição das instituições. Miram o Estado democrático de Direito, a confiança no conhecimento científico, os relacionamentos familiares, a diversidade humana, o conforto da espiritualidade das religiões, o usufruto seguro de bens de consumo, ecossistemas sustentáveis, o processo de enculturação via sistemas educacionais e o acesso público à saúde.
Dentre as instituições sociais atacadas, tomemos como exemplo a religião. Metodistas nos EUA e os Sikhs na Índia passaram por cismas irremediáveis. A Congregação Cristã no Brasil, histórica denominação que rejeitava a política partidária, lançou uma circular espalhando pânico moral mediante a teoria de conspiração do marxismo cultural. Por fim, em uma de suas casas de oração resultou em um tiro contra um fiel que pedia culto a Deus no período anterior às eleições.
E a apropriação simbólica para fins políticos continua para além das camisetas de futebol e símbolos nacionais. Elementos e práticas religiosas também são ressignificadas. Muitos se veêm como cruzados, outros como sem ideologias, mas sendo meros “cidadãos de bem”.
Essa hidra recebe vários nomes: capitalismo selvagem, neoliberalismo, neopopulismo, neofascismo, nova direita, extrema direita, altright, trumpismo, bolsonarismo, putinismo, chavismo, orbanismo, dutertismo, erdoğanismo, QAnon, nacionalismo, conservadorismo, e outras encarnações. Para ser justo, boa parte dessas etiquetas também são aplicáveis a grupos de pessoas com um compromentimento sincero com uma coexistência plural. Adicionalmente, há vertentes homônimas — como os conservadores nos países nórdicos com os quais sou mais familiar — que tem ojeriza a tudo isso. Por fim, unidades analíticas sob o nome “fascismo” ou “capitalismo” são muito genéricas para explicar essas tendências recentes.
Depois desse breve diagnóstico, é hora de focar na reparação.
Há de desenvolver uma empatia pelas pessoas que, de alguma forma ou outra, participaram, apoiaram ou foram convivente com esses movimentos. A humanidade delas não pode ser negada. Ainda que entre esssas pessoas haja instâncias de patologização e transformação de suas ideologias em Novos Movimentos Religioso, não pode haver demonizações. Deve-se antes reconhecer e ser tratado como um fenômeno político, ainda que com todas suas ramificações em outras áreas da vida.
Como parte da humanização do Outro, deve-se reconhecer os anseios legítimos de muitos desses participantes. Anelam por uma comunhão com Deus, pertença a uma pátria e um convívio sob proteção da família. A aspiração a uma paz espiritual, identidade social (e ser tratado como um indivíduo e cidadão) e o agasalho de uma comunidade de afeto são legítimos.
A responsabilização moral, civil e criminal de todos os atos ameaçadores ou danosos deve ser efetivada. A reprovação social não deve ser esquecida. No entanto, é hora de se pensar em reabilitação e em justiça restaurativa. Caso contrário, essa hidra se alimentará com o sentimento de privação relativa e do desejo de ser tratado como sujeito e não categoria.
Ainda que o convívio com o Outro passe a ser cada vez mais insuportável, é momento de abrir portas abertas ao diálogos. É tempo de ouvir mais e criar empatia. É necessário fortalecer espaços seguros para a autorreflexão crítica e criar instituições para atender quem quer escapar desse redemoinho.
De um lado bom (e acredite, há lado bom nisso), há um avanço pela participação popular nas causas comuns. São dores de crescimento da sociedade brasileira rumo à democracia. Em um país cujas grandes mudanças vieram de cima para baixo, os ataques e a indignação são para a democracia ritos de passagem de uma abstração para uma realidade de fato. Portanto, esperemos que nas próximas décadas tenhamos índices e percepções concretas de uma vida democrática.

O ataque às sedes dos três poderes da União revela o quanto nossa organização social como democracia ainda é incipiente e frágil. No entanto, não vejo agora um momento para caças-a-bruxas, mas tempo para ponderação e busca ativa pela paz política.
É isto, sem mais nem menos.
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