Mais um tijolo na parede

Todos nós já experimentamos a futilidade de tentar mudar uma convicção forte de alguém, especialmente se a pessoa convicta tiver feito algum investimento em sua crença.

Estamos familiarizados com a variedade de defesas engenhosas com as quais as pessoas protegem suas convicções, conseguindo mantê-las ilesas durante os ataques mais devastadores. Mas a desenvoltura do homem vai além de simplesmente proteger uma crença.

Suponha que um indivíduo acredite em algo de todo o coração. Suponha ainda que ele tenha um compromisso com essa crença e que ele tenha tomado ações irrevogáveis por causa disso. Finalmente, suponha que lhe seja apresentado evidências inequívocas e inegáveis de que sua crença está errada: o que vai acontecer?

O indivíduo frequentemente emergirá, não apenas inabalável, mas ainda mais convencido da verdade de suas crenças do que nunca.

Na verdade, ele pode até mostrar um novo fervor em convencer e converter outras pessoas ao seu ponto de vista.

— Festinger, 1956.

Esse trecho introdutório do trabalho clássico do psicólogo ressoa bem para descrever o mundo desde 2000. Se antes raciocínio científico deficiente, crenças políticas e religiosas daninhas a outrem e superstições ficavam circunscritos a indivíduos mal-ajustados à sociedade ou grupos marginalizados, a internet agregou e catalisou essas ideias.

Convencer — no sentido de etimológico de “vencermos juntos” — quem já decidiu irredutivelmente abraçar crenças improváveis parece uma perda de tempo. E é. No entanto, para garantir um mínimo de coexistência pacífica, produtiva e afetiva como sociedade ou família em redes sociais e festas de final de ano, alguns pontos comuns devem ser buscados.

Apresento um ponto que, pela experiência ou pelo acompanhamento constante da literatura acadêmica sobre o tema, acho proveitoso para lidar com pessoas caras a nós e que tenha se envolvido com essas crenças: não tratar o negacionista com condescendência.

As primeiras abordagens sobre os motivos de pessoas acreditarem tenazmente em inverdades especularam que devia ter algo errado com essas pessoas. Seu raciocínio científico ou seria desinformado, ou com má metodologia, ou com inferências defeituosas. Popper foi um dos que pensavam assim.

Entretanto, a adesão de pessoas educadas e até bem informadas negam essa explicação. Talvez a dificuldade de processar conhecimento científico contribui, mas isoladamente não seria responsável pela dimensão social do negacionismo da realidade.

Outras abordagens, fundadas na psicologia e nas ciências da cognição, apontam para fenômenos de pareidolia, enxergar parâmetros onde inexistem relações. Isso seria comum visto a dificuldade cognitiva de discernir entre agência e estrutura ocorrendo em qualquer pessoa. Mesmo que sejam reações cotidianas, a persistência de crenças contrárias às evidências demonstram que não se trata de uma mera ilusão, mas novamente algo social.

Há abordagens que patologizam a crença em teorias conspiratórias enquanto outras simpatizam com os teóricos da conspiração por suas privações epistemológicas e desejo de exercer agência em um mundo sufocante.

Aqui não discuto crenças fundamentais subjacentes que formam a ontologia e epistemologia de uma comunidade interpretativa. Todo sistema de pensamento coerente vai ter suas pontas soltas (Gödel que o diga). Mas se tratam de processos interpretativos na outra ponta: diante das evidências que podiam ser usadas, mas são rejeitadas.

É compreensível que para muitos sem nunca ter tido acesso ao polo sul, a um laboratório de microbiologia ou aos átrios do poder tenha de fazer uma escolha de fé. Para essas pessoas, por mais educadas ou poderosas que sejam, é matéria de crença escolher entre a esfericidade da Terra ou terraplanismo. Para elas, seria matéria de fé aceitar que existem pessoas diferentes ou aceitar que as diferenças foram forjadas por uma elite globalista comunista. Ou ainda, escolher entre crer na eficácia da vacina ou que vacinas sejam chips feitos com células de fetos abortados. Ainda mais, eleger grupos dispostos a negociar em um regime democrático ou depositar a fé em messianismo políticos populistas.

Ironias das ironias, os desejosos pela “verdade” conspiratória acabam eles mesmos sendo enganados e, cegamente, contribuído para conspirações reais — aquelas quadrilhas de produção industrial, bem financiada e coordenada de fake news. Recentemente, o jurista Ronaldo Lemos chamou à atenção que o termo fake news é enganoso. Esse comportamento inautêntico coordenado tem comando e funcionários como redatores, programadores, agitadores e gestores de redes de robôs e perfis falsos. Tudo isso para o lucro econômico e político de seletos atores. Depois, o tiozão irado do zap repassa coisas que ressoam com suas crenças sem dar a mínima quanto à veracidade. Seu papel de consumidor de mentiras, no entanto, afeta vidas para pior. O caso é sério.

Não há uma solução para casos individuais ou sociais para mitigar os efeitos dessas crenças. Entretanto, respostas humanamente orientadas dão esperanças.

Diante dessas pessoas, das quais muitas temos relações afetivas, a compaixão e a empatia são os melhores caminhos para convencer — no sentido etimológico. Escutar e compreender seus temores são mais eficazes que despejar um caminhão de evidências contrárias. Demonstrar os riscos e efeitos das crenças nas teorias conspiratórias em seu próprio círculo social é mais tocante que demonstrar números destoantes. Levar à sério a pessoa, sem ridicularizá-la, constrói ainda mais uma confiança epistemológica. Convidar uma pessoa a participar da produção do conhecimento ou do processo político, seja pela simples fiscalização ponta-a-ponta de um compra pública em sites de licitação é um modo de desenvolver a agência.

Manter canais abertos é importante. Em nossa sociedade neotribal na qual as pessoas se aproximam por grupos de afinidade e consumo ao redor do mundo, as bolhas onde fermentam essas mentiras perniciosas são autônomas. Obviamente ninguém quer trazer para seu trabalho ou família uma pessoa que apoia atentados e genocídios, mas socializar sem entreter por confrontos essas teorias (a controvérsia é vital para a manutenção dessas crenças) garante uma ocasião oportuna para a libertação dessas prisões da mente.

Outro remédio é incentivar a leitura. A imaginação, o exercício ativo de conectar ideias e a compreensão ampla das realidades ajudam a desenvolver empatia, desmistificar preconceitos e entender processos complexos. No entanto, os teóricos da conspiração e pseudociência também produzem livros (e muito!). O foco, então, é ler junto os clássicos, aquelas obras que são um campo comum para seus interlocutores. Compartilhar palavras também é compartilhar humanidade.

SAIBA MAIS

Leon Festinger, Henry W. Riecken, Stanley Schachter. When Prophecy Fails: A Social and Psychological Study of a Modern Group that Predicted the Destruction of the World. New York: Harper and Row, 1956.

Ih…não deu: dissonância cognitiva

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4 comentários em “Mais um tijolo na parede

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  1. Outro excelente artigo. Não resisto à tentação de o traduzir, embora em regra não traduza do português para asturiano.

    No entanto, faz-me uma pausa para pensar no facto de algumas pessoas muito instruídas academicamente apresentarem teorias estranhas. Ou filósofos com mentes podres. Ou mesmo a minha base ideária, quem me diz que sou justo?

    Só para o caso de ter reduzido a minha ética/moral/filosofia ao mínimo, de modo a não me meter em problemas e reduzir o meu guião de vida minimalisticamente (como acabei de publicar num fio de Reddit):

    A vida é um sistema binário: vida/morte, on/off, 0/1. A morte não é nada. 0 x qualquer número é 0.

    Portanto, qualquer coisa que promova a vida é boa. Porque é bom, é moral.
    Qualquer coisa que sirva para dificultar a vida é má. Porque é mau, é imoral.

    E esta é a base simples da existência única e irrepetível de cada vida na terra.

    Parai de acreditar em histórias que foram inventadas para oprimir e controlar pessoas simples e ignorantes há milénios, porque o que elas fazem é OBSTACULAR a vossa vida.

    Curtido por 1 pessoa

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