Populismo de direita ou de esquerda: qual é o pior?

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O populismo não é uma ideologia política, é antes uma estratégia[1]. Ao alimentar medos e anseios, líderes populistas reduzem as populações a uma massa politicamente amorfa. Fica pronta para apoiar os interesses desses manipuladores. O populismo, sendo multiforme, não respeita o espectro (imaginário, por sinal) de direita-esquerda.

Trata-se de um conceito difícil de se delinear que, às vezes, se confunde com a demagogia, a condução retórica das massas. O demagogo, para H.L. Mencken (1926), seria alguém que “prega doutrinas as quais ele sabe não serem verdades para pessoas as quais ele sabe que são idiotas”[2]. A demagogia fundamenta-se no carisma, enquanto populistas não tão carismáticos utilizam de outros meios para alcançar e se manter no poder. Foram os casos de Maduro e Cristina Kitchner que, apesar de não tão populares quanto seus antecessores, mantiveram um discurso populista. A demagogia pode existir tanto na democracia quanto em regimes totalitários. Hitler, Mussolini e Mao Tsé-Tung foram demagogos em regimes autoritários. Já o populismo é um mal presente na democracia.

Na antiga democracia ateniense, o demagogo Pisístrato (605 – 527 a. C.) aproveitou-se da instabilidade interna para escalar e permanecer no poder. Fez guerras, apelou para comoção religiosa, simulou um atentado contra si e distribuiu terras em troca de apoio – tudo isso praticamente dentro da legalidade. Com essas manobras populistas quase fundou uma dinastia.

Nas democracias modernas a expansão do sufrágio levou ao surgimento do populismo. Isso resulta de os detentores do poder de outrora passar a disputar votos populares para a continuidade dos privilégios do butim político. Foi assim que o esquema político do Tammany Hall dominou o cenário de Nova Iorque entre 1870 e a I Guerra Mundial, com políticas ambíguas e cabides de empregos para os novos cidadãos, especialmente imigrantes irlandeses e veteranos da Guerra Civil. No Brasil, enquanto o voto era censitário de jure (no Império) e de fato (na República Velha), havia demagogia, mas não populismo. Com o aumento do colégio eleitoral brasileiro pela admissão do voto do analfabeto (então, a maioria da população) e das mulheres, o populismo nasceu no país.

Em alguns aspectos o populismo se confunde com a demagogia. Tanto o populismo e quanto a demagogia possuem elementos comuns. Ambos empregam dicotomias “nós versus os outros”, “tradição versus progresso”, “a nova política versus a velha política” e “voltemos aos tempos de glória”.

O populista e o demagogo utilizam dessa retórica divisiva com uma roupagem de santidade. Obviamente, o salvador da pátria está do lado certo da história e é a encarnação da moral e dos bons costumes. Com essa imagem cuidadosamente cultivada por publicitários e propagandistas, prega contra as mazelas e a corrupção do grupo oponente, mas com um esmero para ocultar seus próprios defeitos. Esse raciocínio binário reduz a complexidade das discussões políticas e mina qualquer chance de debate. A menos que xingar de petralhas e coxinhas seja considerado um debate produtivo.

Nesses discursos populistas, a política de identidade presta um serviço crucial, pois é preciso identificar os legítimos detentores dos direitos ameaçados. Ora os outros são as potências estrangeiras, os imigrantes, os judeus, os hakkas, os ciganos, os muçulmanos, os católicos, os protestantes, os hindus, os homossexuais, os indígenas, os maçons, as elites, os beneficiários de ações afirmativas, os dependentes de programas sociais ou qualquer que seja um alvo fácil. Em outros momentos, o Nós são o povo, os trabalhadores, os cristãos, os judeus, os muçulmanos, os hindus, os pobres, as classes médias, os negros e outras categorias socialmente imaginadas. Quem é não importa. Basta ter um bode expiatório para o sucesso do populismo.

O populismo só dá certo porque há pessoas dispostas a acreditar nele como saída viável. A tese de Francisco Wefford[3] ainda demonstra estar em vigor. Wefford (1978) argumentou que o populismo se enraizou no Brasil a partir de 1945 porque barganhava a promessa de pleno emprego com a manutenção do status quo das classes políticas. No Brasil de hoje, tanto a situação e a oposição nada fazem ou nada falam para fazer mudanças estruturais que acabem com as desigualdades e com a corrupção. Programas sociais são remediais, mas sustenta uma plutocracia que só é rica pela íntima relação com o Estado. E os pobres, esses continuarão pobres, ainda que com iPhones e bolsas de valores irrisórios. Operações policiais contra corrupção são paliativas que simplesmente trocarão as peças para outros entrarem no tabuleiro com o mesmo jogo.

Outra perspectiva, a de Otávio Ianni (1986)[4], vê o populismo como a promessa do progresso enquanto se amarram aos valores tradicionais. Foi assim o surgimento do populismo no Brasil. E continua do mesmo modo: quem escuta os bolsonaros da vida, acha que o país vive uma guerra civil contra a “família tradicional” enquanto o outro campo leva a acreditar que está sob a ameaça de uma caça às bruxas do estilo ugandense aos gays — ainda que a violência contra minorias sejam reais e em curso. Porém, como alertava Hanna Arendt, a liberdade e os direitos humanos devem ser sempre vigiados.

E não existe coisa melhor para diluir algum tema relevante do que ofuscá-lo com polêmicas ad nauseam. Enfadaram o público com os temas da globalização e ecologia nos anos 1990 e racismo nos anos 2000 até cansarem de pensar. Hoje, inexiste um consenso assentado das necessidades prementes desses tópicos e poucos avanços foram alcançados em questões étnicas e ambientais. Pouco há de propostas justificadas para esses temas traduzidas em políticas públicas sérias que formem bandeiras consolidadas que valham a pena defender. Ao invés disso, pautas pontuais diluem questões estruturais. Agora, na mesma diluição ofuscante, o debate sobre ampliação ou restrição de direitos LGBT tomam conta da agenda populista. Desse modo desviam a atenção pública da discussão de assuntos que deveriam ser prioritários como uma prevenção da criminalidade — especialmente de crimes de colarinho branco e de políticos, cujos impactos seriam mais danosos. Enquanto isso, minorias passam a ser alvo de violência como bodes expiatórios.

Sempre acharão novos tópicos de apelo popular. É a política moldada pelos programas de auditório e policiais de TV. É a política ditada pelos institutos de pesquisas. Quer mais segurança? Reduzam-se a maioridade penal, mas não discutam a ressocialização do apenado. Estão descontentes com a política de renda? Cortam-se imposto de renda dos “pobres” e taxam-se os mais “ricos”, mas não cortam as mamatas públicas dos ricos nem prestam contas para onde vai o dinheiro arrecadado. Quer salvar a economia? Mexam aqui, ali nas políticas de créditos, fiscais e monetária, mas nada de realizarem uma auditoria cidadã das contas públicas.

Os tópicos dessa retórica populista não são inerentes a um ou outro polo do espectro político. Enquanto no Brasil tentam vender a imagem que o ativismo pró-escolha seja inerente ao “esquerdismo”, na Nicarágua Daniel Ortega defende uma agenda anti-aborto em nome da proteção da mulher diante das pressões dos patrões capitalistas.

É uma questão inócua reduzir o espectro político a dois polos. Mas é isso que o populismo faz. E populismo é acreditar que só seria possível essa dicotomia.

A quem interessa uma participação política democrática e sincera, o ideal é não ficar em nenhum lado dos campos populistas, mas cobrar políticas concretas e questionar se a postura defendida seria a melhor para o país. Basta perguntar aos partidários do Partido Ecológico Nacional e do Partido da Mulher Brasileira quais são as metas, o orçamento e os meios de efetivação de suas políticas ambientais e femininas para verificar se são populistas.

O populismo brasileiro obliterou tanto as questões que afetam a vida comum que nem mesmo é questionado e os principais partidos fogem de seus compromissos. Quem poderia dizer quais eram as propostas de políticas externas de Dilma e Aécio nas eleições de 2014?

O populismo não é um luxo brasileiro. A Argentina trocou o peronismo dos Kirchners por um populismo de direita de Macri, cujo lema é “Pobreza Cero” e sua promessa é demitir os marajás do funcionalismo público (já escutei essas histórias antes). Os EUA estão divididos entre a nova política, Trump contra Sanders, ou o velho filme, um Clinton contra um Bush — mas em comum todos apelam para alguma forma de populismo. Na Finlândia, o populista de direita Partido dos Finlandeses de Timo Soini passou a fazer parte da coalizão desde que se tornou o segundo maior partido no parlamento em 2015 com uma retórica anti-estrangeiros. Na Suécia, os Democratas Suecos de Jimmie Åkesson, ainda que pequenos, fazem barulhos e emperram o governo com questões polêmicas de políticas xenófobas e anti-União Europeia. A Frente Nacional na França, o Ukip no Reino Unido e a AfD na Alemanha estão cada vez mais expressivos alimentando o medo. A Itália já experimentou os anos Berlusconi e uma nova onda está por vir. Na Índia, o nacionalismo hindu do BJP ganha força mediante o combate a inimigos imaginários. Em um passado não tão distante, o movimento baath nos países árabes, advogando uma política externa nacionalista “não alinhada” e uma visão secularizada do islã, levou a regimes cada vez mais ditatoriais, além de abrir lacunas para o extremismo religioso. Como se vê, o populismo não é bom em nenhum canto do espectro político.

É impossível dizer qual é pior. O populismo praticado por udenistas ou varguistas foi pernicioso como ainda é o praticado pelos populistas para fazer uma “nova política” nem de centro, esquerda ou direita, diga-se Kassab e Marina Silva. Nem vale a pena mencionar o caso do PSDB ou do PT…


[1] Bobbio et al. apresentam bem a dificuldade de definir o populismo:

DEFINIÇÕES DO POPULISMO. — Podemos definir como populistas as fórmulas políticas cuja fonte principal de inspiração e termo constante de referência é o povo, considerado como agregado social homogêneo e como exclusivo depositário de valores positivos, específicos e permanentes. Alguém disse que o Populismo não é uma doutrina precisa, mas uma “síndrome”. O Populismo não conta efetivamente com uma elaboração teórica orgânica e sistemática. Muitas vezes ele está mais latente do que teoricamente explícito. Como denominação se amolda facilmente, de resto, a doutrinas e a fórmulas diversamente articuladas e aparentemente divergentes, mas unidas no mesmo núcleo essencial, da referência recorrente ao tema central, da oposição encarniçada a doutrinas e fórmulas de diversa derivação. As definições do Populismo se ressentem da ambigüidade conceptual que o próprio termo envolve. Para Peter Wills, Populismo é “todo o credo e movimento baseado nesta premissa principal: a virtude reside no povo autêntico que constitui a maioria esmagadora e nas suas tradições coletivas” (Wills em Ionescu-Gellner, 1971); para Lloyd Fallers, o Populismo é uma ideologia segundo a qual “a legitimidade reside no povo” (Fallers, 1964); para Peter Worsley, ele é “a ideologia da pequena gente do campo ameaçada pela aliança entre o capital industrial e o capital financeiro” (Worsley, 1964); para Edward Shils, o Populismo “se baseia em dois princípios fundamentais: o da supremacia da vontade do povo e o da relação direta entre povo e leadership” (Shils, 1954).  BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO Gianfranco.  Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 980.

[2] MENCKEN, Henry Louis. Notes on Democracy. Londres: Jonathan Cape, 1926, p. 111. Este livro é uma denúncia satírica das falhas da democracia e dos perigos da demagogia. É comparável ao Mediocracia de José Ingenieros ou A revolução dos bichos de Orwell.

[3] WEFFORT, Francisco C. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

[4] IANNI, Otavio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

SAIBA MAIS

Um credo apolítico são conselhos da era patrística de não firmar alianças a blocos políticos (isso não significa ser despolitizado) e uma reflexão sobre as vantagens de os eleitores aderirem ao princípio do voto secreto.

George Washington: Sobre os Partidos Políticos um conselho sobre os perigos do faccionalismo em um regime eleitoral.

José Ingenieros: Mediocracia os riscos de uma oclocracia guiada por homens medíocres.

Democracia sem heróis razões simples para não acreditar em messias populistas.

Como citar esse texto no formato ABNT:

Citação com autor incluído no texto: Alves (2016)

Citação com autor não incluído no texto: (ALVES, 2016)

Referência:

ALVES, Leonardo Marcondes. Populismo de direita ou de esquerda: qual é o pior? Ensaios e Notas, 2015. Disponível em: https://wp.me/pHDzN-t6 . Acesso em: 20 jul. 2020.

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