Esse breve ensaio do antropólogo britânico Ernest Gellner (1925—1995), originalmente uma palestra dada em Cambridge em 1992, explicitava os diferentes modos de interpretar a realidade. Gellner propôs uma tipologia de três correntes epistemológicas, as quais denominam relativistas, fundamentalistas e o neologismo “puritanos do iluminismo”.
O autor inicia seu ensaio aludindo à peça de Jean-Paul Sartre Huis clos [Entre quatro paredes]. Na peça, os personagens não podem fugir ou renunciar à tormenta. Assim seria os modos de apreensão da verdade. Nem os relativistas, os fundamentalistas ou os puritanos do iluminismo conseguem prevalecer um sobre os outros, nem são completamente dominados. É uma repetição do jogo “pedra, papel e tesoura”.
- Relativistas: tipicamente encontrados nas ciências humanas e sociais. Repudiam a ideia de uma verdade única, mas defendem a virtude e igualdade das visões assim como a igualdade entre os homens. Trata-se de uma igualdade superficial e formal sem fé no conteúdo. A contradição seria aceitar visões que negam uma terceira visão, ao mesmo tempo em que consideram essa terceira visão como válida.
- Fundamentalistas: a verdade importa e é cognoscível. Essa visão é menos apelativa às sociedades educadas. A mensagem da verdade é aceita de forma literal e seriamente, senão não haveria meios de servir como guia ou orientação.
- Puritanos do iluminismo: apregoam a certeza em uma verdade única como o fundamentalista, mas com a tolerância de um relativista. Todavia, rejeitam a pretensão de possuir a verdade. A base epistemológica dos puritanos do iluminismo são as prescrições processuais de como investigar o mundo, resumida nessas premissas:
- Qualquer ideia, dado ou indagação são igualmente válidos;
- Alegações cognitivas competem entre si, como também fazem com os dados;
- A validação da verdade não pode ser de forma circular, ou seja, auto-referencial;
- O resultado é pragmaticamente validado, seu uso torna a verdade aceitável.
Apesar de Gellner se revele um adepto dessa última visão popperiana, não mede as críticas a esse modo de pensamento. Aponta que os puritanos do iluminismo são fracos por utilizarem abstrações, argumentos tênues e uma distância do mundo terreno. Isso causa menor interesse nas massas e dificuldades diante de crises. Enquanto isso, os fundamentalistas e relativistas conseguem propor um mundo calmo e habitável com suas visões sobre a verdade.
Gellner cita a linguagem duplipensar [Doublethink] do romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de G.Orwell como o discurso não do totalitarismo — como representado nessa ficção —, mas do discurso liberal: alia-se a convicção à tolerância. Tendo em mente que o duplipensar é usar-se de ambiguidades antitéticas (pleonasmo intencional), tal discurso esconde a verdade nessa détente.
A aceitação social desse compromisso epistemológico permite uma pessoa lidar com diferentes fatos.
A remoção racionalizante de preconceitos supersticiosos teria sido um projeto do iluminismo para um governo da verdade. Sua ideologia exigia que não somente se tratassem imparcialmente homens e provas, mas suplantar esses atributos do Antigo Regime:
Antigo Regime | Liberal |
Supersticioso | Iluminista |
Opressivo | Livre |
Falsidade | Verdade |
Dogmatismo | Tolerante |
[Substância] | [Processo] |
Todavia, o reino da razão como busca religião secular da razão iniciada na Revolução Francesa acabaria duzentos anos depois [implicitamente, a Queda do Muro de Berlim]. Renova-se assim a pretensão de equilíbrio entre as três posturas epistemológicas. O futuro não será fundado em uma revelação secular, mas na relação ambígua, instável, contrafeita entre fé, indiferença e seriedade.
Parafraseando a conclusão de Geller, “a situação triangular seria uma benção se puder equilibrar entre as opções sem pressionar as demais”.
Esse resumo reduz um já curto texto. Vale pena ler o original “The Uniqueness of Truth”, publicado em 1992 como “Squaring the Ménage à trois” no Times Literary Supllement N.4.661 de 1992. Foi traduzido e publicado no Brasil como “O caráter único da verdade” na Antropologia e Política: Revoluções no Bosque Sagrado: Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
Gellner retomaria essa tipologia posteriormente em seu Postmodernism, Reason and Religion (Londres: Routledge, 1992), referindo suas três posições epistemológicas como pós-moderna ou relativista, religiosa e racional-iluminista.
Analogamente a Geller, o sociólogo do conhecimento e teólogo Peter Berger, junto com o sociólogo e filósofo holandês Anton Zijederveld escreveram um livro (In Praise of Doubt. New York: Harper One, 2009) buscando a via média (a qual chamam de pluralismo) entre o fundamentalismo (a postura incompromissível que se detém certeza) e o relativismo (a posição que relativiza a possibilidade do conhecimento). A proposta deles para o pluralismo seria “posso estar errado ou certo, mas é isso que por enquanto sei”, ao tempo que reconhece o direito alheio de pensar diferentemente.
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