Modos de subsistência: agricultura

Uma das grandes transformações da presença humana na Terra foi a agricultura. Como instituição social, agrega recursos humanos para a transformação drástica do ambiente para a produção de alimentos, algo que a distingue de outros modos de subsistência como a caça-coleta, a horticultura, o pastoralismo e a pesca. O excedente de produção e de mão-de-obra permitiu a emergência de outras instituições culturais, como o Estado, a religião institucionalizada, a ciência e a educação especializada.

Ainda que hoje praticamente a maior parte da população dependa da produção de alimentos por outros, o modo de subsistência das sociedades industriais – aquelas com maior aplicação de mecanização e biotecnologia  –  distingue-se das sociedades agrárias tratadas aqui.

Não há um conjunto de características uniformes ou a mesma história de origem e desenvolvimento da agricultura. Contudo, há alguns traços comuns a várias sociedades agricultoras:

  1. Se as limitações do ambiente e do clima restringiram as primeiras sociedades agrícolas, também o ser humano encontrou meios de gerenciá-las.
  2. Uso extensivo de terra limpa para o cultivo permanente ou em rotação. Isso distingue a agricultura da horticultura dos roçados, pois implica na remoção da cobertura florestal (com raras exceções, como a agricultura da Nova Guiné e do silvopastoralismo).
  3. Alocação maior de recursos para um rol menor de produtos.
  4. Mecanismos institucionalizados de circulação dos produtos e recursos, normalmente por redistribuição e mercado.

agricultura

História da Agricultura

Embora pareça meio óbvio que a agricultura seja uma diferença de escala em relação à horticultura, ainda não são claros os motivos que levaram à sua emergência quase simultânea (em uma escala geológica) e de forma independente em várias partes do mundo.

Outro problema é que muitos povos caçadores-coletores possuem práticas e conhecimentos que possibilitam o cultivo, quer em roçados, quer na agricultura, mas não a desenvolvem.  O etnógrafo Karl Pelzer registra como a população indígena da Península de Malaca, os semanag, mantinha uma subsistência de caça e coleta, mas quando extraíam um tubérculo deixam a ponta para a planta brotar novamente. No entanto, não demonstravam interesse em ocupar o território para a horticultura ou a agricultura.

Nos anos 1920 W. G. Childe propôs que houve uma “revolução neolítica” no Oriente Médio e áreas circundantes, surgindo sociedades autossuficientes na produção de alimentos. As transformações climáticas que resultaram na seca e a escassez de mantimentos para a caça e coleta estimularam a sedentarização e a produção de alimentos em oásis. Mais tarde, segundo L. Binford, o crescimento demográfico forçou a transição para a economia produtiva. Para coordenar essas atividades, passou-se do neolítico à sociedade de Estado.

Esse modelo parecia funcionar bem para explicar as sociedades hidráulicas (Egito, Mesopotâmia, Vale do Indo, China e Andes), mas não explica o surgimento da agricultura em áreas de florestas úmidas (Nova Guiné, América Central) e regiões temperadas (sociedades sem Estado até a Idade do Ferro na Europa; Ásia Central). Além do mais, há sociedades sedentárias urbanas (como Göbekli Tepe) ou de vilas (Noroeste do Pacífico canadense) que se mantiveram caçadoras-coletoras. Por fim, as transformações levaram, por vezes, milênios, o que as impossibilitam de serem caracterizadas como revoluções.

Atualmente, a teoria da “revolução de amplo espectro” fatores sociais e ecológicos, principalmente exposta por K. Flannery, postula que a origem da agricultura aparece como resposta às crises na economia tradicional de caçadores-coletores e a necessidade de garantir um sistema de subsistência em uma nova situação ecológica.

A agricultura permitiu a domesticação de plantas e animais e combinou diferentes recursos para ter um fornecimento estável de alimentos. Os grãos de cereais demonstraram serem eficientes de acumulação de alimentos, pela sua durabilidade, fonte rápida de energia, fácil transformação, possibilidade de transporte, consumo retardado.

Cultivos principais nas primeiras sociedades agrícolas

  • Oriente Médio: trigo, cevada e centeio;
  • China e sudeste asiático: arroz, milhete;
  • América Central: milho, feijão;
  • África sul do Sahel: painço, sorgo;
  • Andes: tubérculos, grãos (quinoa) e, especialmente, a batata;
  • Terras baixas da América do Sul: mandioca;
  • Papua-Nova Guiné: taro, banana;
  • Golfo da Guiné ao Camarões: inhame, feijão e palmeiras oleaginosas.

Quer pelas migrações, pela expansão da fronteira agrícola, pela guerra e pelo comércio, a agricultura irradiou de seus núcleos originários. Contudo, em algumas regiões (a atual Tailândia, os Andes) não ocorreu uma difusão. Nessa ambientação a novos terrenos apareceram as diferenças entre sistemas intensivos e extensivos da exploração da terra.

A agricultura foi o primeiro modo de subsistência de larga escala a coexistir com outros. Na África central, caçadores-coletores twas conviveram lado-a-lado dos pastoralistas tutsis e dos agricultores hutus até que as segregações colonialistas criaram animosidades étnicas. 

Em áreas agrícolas também há a combinação de alguns elementos do pastoralismo. Animais de carga, tração ou fonte de alimento foram domesticados e constituem o fornecimento mais rapidamente disponível da proteína consumida.

Impactos socioculturais da agricultura

Tecnologias influenciadas pela agricultura

  1. Cultivos com controle de enchentes e irrigação;
  2. Tração animal ou uso de animais de carga;
  3. Ferramentas padronizadas, evoluindo no fabrico de ferramentas de metais;
  4. Arado em algumas regiões
  5. Adaptação às variações do ambiente, o caso da variação de cultura conforme a altitude praticada pelos incas;
  6. Registros da produção (escrita, ábaco, nós, talhas);
  7. Construção de moradias e armazéns permanentes;
  8. Tecelagem e produção de cestos;
  9. Cerâmica.

Mudanças sociais acarretadas pela agricultura

  1. Aumento populacional;
  2. Excesso de mão-de-obra;
  3. Profissões especialistas;
    • construtores;
    • metalúrgicos;
    • tecelões;
    • cuidadores de animais;
    • médicos, terapeutas e curandeiros;
    • administradores e burocratas;
    • sacerdotes;
    • guardas e guerreiros;
  4. Vida urbana e campesinato;
    • local de concentração dos excedentes agrícolas e de poder;
    • centros com monumentos;
    • locais de trocas, estocagem e redistribuição;
    • articulação, não necessariamente coordenação, da agricultura;
  5. Crises agrícolas;
  6. Paradoxo de fome e segurança alimentar;
  7. Desigualdades;
  8. Instabilidade sociais e políticas.

Transformações ideológicas

  1. Cultos de fertilidade;
  2. Desenvolvimento rápido da astronomia e sistemas de contagem de tempo;
  3. Conhecimentos protocientíficos na zoologia, veterinária, agronomia, geografia e podologia;
  4. Sistemas de registros para a fixação e transmissão de informação, contabilizando atividades econômicas (quipus, escrita, ábaco, numeramento);
  5. Crédito e débito;
  6. Estratificação social;
  7. Propriedade privada da terra e outros meios de produção (acumulação “primitiva”).

Transformações políticas: o Estado

Após alguns séculos de aparecimento das sociedades agrícolas surge o Estado. São três teorias clássicas para o surgimento do Estado. A primeira, a teoria hidráulica de Karl Wittfogel postula que a coordenação do trabalho para conter as cheias, secas, construção de barragens e gestão de propriedade demandou uma organização social que abrigasse grandes contigentes populacionais.

Segundo a teoria da circunscrição de Robert Carneiro, os limites das áreas de terras aráveis, circunscritas pelas condições geográficas, somadas à pressão demográfica influenciaram os conflitos bélicos demandando a origem do Estado.

Já outras teorias defendem que o excedente da produção agrícola e a especialização trabalho resultaram em redes complexas de comércio mediado por organização social supra-local: o Estado. Defendem essa teoria Henry Wright e Gregory Johnson.

Como em outras teorias, há exceções em sua generalização. Contudo, os fatores extra-humanos para a agricultura, como controlar as secas e enchentes, determinaram a religião, a tecnologia, a política, a ciência e a arte

Com o Estado surgem a tributação quer de parte da produção ou pelo trabalho forçado, ocorre a redistribuição via silos dos templos-estados, também surge o imperialismo e a extração colonial.

Alternativamente ao Estado, sociedades linhageiras africanas, a Europa feudal, o Japão durante o período dos xoguns, em períodos de fragmentação política da Índia e da China, se organizaram em chefaturas. Chefes locais, eles mesmos vinculados à agricultura, assumiam os papéis de protetores e redistribuidores dos agricultores sob suas suseranias. Na Papua-Nova Guiné, excepcionalmente, a agricultura desenvolveu entre sociedades tribais e mesmo de bando, com maior horizontalidade, circulação de bens e serviços por reciprocidade, autoridade por persuasão (Big Men).

Até a Revolução Industrial (a Grande Transformação chamada por Karl Polanyi) nos séculos XVIII em diante, a agricultura foi a principal fonte de alimentos e de materiais crus (fibras vegetais). Com a privatização do campo, a mecanização das práticas agrícolas, o uso intensivo de corretivos e fertilizantes do solo, a demanda pela mão-de-obra caiu e os excedentes de produção cresceram. As sociedades agrícolas passaram aos modos de subsistência industrializados.

SAIBA MAIS

GEERTZ, Clifford. Agricultural Involution: the Processes of Ecological Change in Indonesia. University of California Press, 1969.

LENSKI, Gerhard. Ecological-Evolutionary Theory: Principles and Applications. Boulder: Paradigm, 2006.

MAZOYER, Marcel; ROUDART, Laurence. História da Agricultura Mundial: do Neolítico à crise contemporânea. São Paulo: Editora da UNESP, 2008.

PELZER, Karl. Pioneer settlement in the Asiatic tropics.  New York: Institute of Pacific Relations, 1945.

SMITH, Bruce. The Emergence of Agriculture. New York: Freeman, 1999.

VASEY, Daniel E.  An Ecological History of Agriculture, 10,000 B.C.–10,000 A.D. Ames: Iowa State University Press, 1992.

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