Formas de organização sociopolítica

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Antigos mitos jurídicos viam o estado como uma marca onipresente dos povos “civilizados”, mas no início do século XX esse mito foi desmentido quando antropólogos como E.E.Evans-Pritchard e Pierre Clastres encontraram sociedades que se organizavam muito bem sem o estado.

Mas, quais seriam as formas de organização social alternativas ao estado?

O antropólogo Elman Service (1915–1996), adepto da abordagem do materialismo cultural, cruzou informações da arqueologia e da etnologia com uma análise material das diferentes sociedades em relação aos seus ambientes. Com esses dados, apresentou uma tipologia das organizações sociais que correspondiam às estratégias de adaptação econômica ao ambiente.

Para Service (1962) os seres humanos e organizavam em bandos, tribos, chefaturas ou estados conforme a população cresce e o espaço disponível para uso econômico diminui. Essa gradiente político tem um ar evolucionista, não por menos, lembremos que o materialismo cultural também é chamado de neoevolucionismo ou evolucionismo multilinear. Service argumentava que em uma perspectiva macro as sociedades humanas tiveram que crescer em complexidade política para adequar-se às pressões demográficas, acidentes da história, inovações tecnológicas e intempéries ecológicas.

Bando

O bando é uma organização formada por pequenos grupos entre 25 a 50 pessoas eminentemente baseada no parentesco, ligadas por um antepassado comum ou casamento. Foi a organização social mais comum dos homo sapiens desde a modernidade comportamental ou simbólica (50.000 anos antes do presente). Prevalente entre caçadores-coletores, cuja mobilidade alta (nomadismo) possibilitou a propagação da espécie pelos continentes. A reciprocidade é um dos valores orientadores e meio de troca econômica.

São politicamente igualitários, com chefes de caça ou coleta provisórios e líderes religiosos não especialistas, como por exemplo, os xamãs. Fora do núcleo nuclear, um representante pode expressar os interesses de seu núcleo diante de outros membros do bando. A organização judicial tende-se ser baseada na conformidade das normas, com a busca de equilíbrio entre as partes.

Atualmente quase todas as sociedades de bandos foram incorporadas aos territórios controlados por estados. Há excepcionalidades, como os Índios Isolados do Rio Envira na Amazônia oriental ou os sentineleses na Baía de Bengala.

Tribos

Organização social baseada em linhagens ou clãs, com fracas instituições políticas separadas dos indivíduos. As tribos possuem economias em formas não intensivas de produção, como a horticultura, a agricultura de coivara ou o pastoralismo de pequenos rebanhos. Vivem em aldeamentos semipermanentes, entre 100 a 1000 pessoas.  Conforme a terra se exaure, todo o grupo migra para novas frentes. A estratificação se deve principalmente por gênero, com acentuada divisão sexual do trabalho. A autoridade funciona principalmente por persuasão. Os povos de línguas tupi-guarani viviam em sua maior parte nessa forma de organização social, migrando do centro do Brasil para o sul e litoral e completando um périplo da região costeira para as margens norte da bacia Amazônica. Essas migrações foram acompanhadas por visões de pajés e direcionada na busca da Terra-sem-males.

Chefaturas

Também chamados de cacicados ou chefias, a consciência de pertencimento transcende às aldeias locais, sendo uma forma de organização intermediária entre a tribo e o estado. Há ligações entre diferentes redes baseadas em identidade de parentesco, ascendência comum (ou imaginada), coorte (grupos de idade), sodalidade (sociedades voluntárias), moeties, fatrias, clãs, gens ou outras formas de alianças. Todavia, as linhagens possuem maior peso na estratificação social. Geralmente um grupo pessoas ocupa posições políticas ou religiosas de modo permanente, ficando livres dos trabalhos de subsistência, acentuando-se a estratificação social. O poder passa a ser centralizado. A confederação dos tamoios (1554-1567) a teria sido uma transição de organização tribal para chefatura. Outra instância de chefatura no Brasil foi o Quilombo dos Palmares. Na Bíblia, o período dos Juízes seria um típico regime de chefatura.

A agricultura e pastoralismo intensivo, além de trocas mais intensivas (principalmente por redistribuição) permitem sustentar uma população maior, de mil a algumas dezenas de milhar de pessoas.

Estados

O estado caracteriza-se pela existência de uma estrutura permanente de governo ou burocracia. Outra característica dos estados é a existência da estratificação social e econômica que escalona e separa os detentores do poder da população comum em uma distribuição piramidal. Mesmo em países democráticos, a parcela da população com poder de impor uma decisão difere-se do povo. Entre essa elite e as massas desprovidas de poder estão os burocratas, militares, intelectuais, líderes religiosos, empresários, técnicos altamente qualificados e profissionais liberais exercendo diferentes formas de poder e legitimação. Há a existência de classes ou castas e a identificação com o estado depende em ser súdito, etnicidade (para o estado nacional) ou cidadania. Os estados comportam uma economia de mercado atendendo uma população que variam desde dezenas de milhar até bilhões de pessoas.

A coerção passa ser instrumento de poder. Como disse Weber em A política como vocação, o “Estado é uma comunidade humana que se atribui (com êxito) o monopólio legítimo da violência física, nos limites de um território definido”.

O estado arcaico surgiu com a vida urbana no final da revolução neolítica. Coincide com a invenção de alguma forma de escrita ou contabilidade (como os quipus), dependência no trabalho forçado e na existência de poderio militar. Foram típicos a pólis grega, os estados hidráulicos (nas antigas Mesopotâmia, Egito, Índia e China), as civilizações andinas e o México central. Já o estado moderno é expresso pela clássica soma da população permanente, território definido e poder soberano.

Hoje é quase impossível achar um pedaço de terra sem que haja algum Estado reclamando-o para si. Mas a organização social em Estado é recente na história humana. Se for considerar Portugal o primeiro estado nacional moderno, teria começado em 1385 com a revolução de Avis. Esse modelo de organização social somente se consolidaria na Europa a partir da Paz de Westfália (1648) e daí se espalharia pelo mundo pelo colonialismo.

Algumas observações

Apesar de haver um contínuo de complexidade entre esses tipos de organização social, não havia pretensão de considerar a forma mais complexa – o estado – como a mais evoluída. Há várias situações na história de um povo passar de um estado para chefatura, de tribo para bandos. A mais recente foi na Somália, quando a falência do estado somali deu lugar a chefaturas.

O fim do Império Romano do Ocidente no século IV resultou na fragmentação de várias chefaturas, embora chamadas de reinos, como a dos francos, visigodos, lombardos, borgonheses, ostrogodos e vândalos até a reorganização estatal a partir do período Carolíngio. Ainda que o modelo de estado era feudal.

Os awá provavelmente viviam em organização social de tribo, com aldeamentos semipermanentes e agricultura não intensiva no Baixo Tocantins. A incursão de fazendeiros, mineradores e madeireiros em suas terras levaram à fuga e quase extinção desse povo, com cerca de uma centena contatados no final dos anos 1970, vivendo como caçador-coletores e com organização social de bando.

Antes de Service, Meyer Fortes and Edward Evans-Pritchard (1940) já tinham esboçado um esquema classificatório para a organização política das sociedades africanas ao sul do Sahara. Nessa classificação propuseram uma análise sincrônica. Embora se possa inferir que ao longo da evolução humana tiveram prevalências de um tipo sobre outros, a obra desencorajava as especulações típicas sobre a origem da organização social como fizeram os iluministas e os antropólogos evolucionistas. Para diluir preconceitos, os autores fizeram correlações “fracas” entre os tipos de organização social e visão de propriedade e economia. Para Fortes e Evans-Pritchard, na África havia:

  1. Sociedades de bando ligadas por parentesco, com subsistência baseadas na caça-coleta, com maior mobilidade e sem noção de propriedade territorial, como os San.
  2. Sociedades linhageiras formadas por federações de grupos de descendência unilinear, com posse de um segmento territorial ligado a cada subgrupo. Geralmente seriam pastoralistas, como os nuer e os tallensi.
  3.  Sociedade de estados territoriais, com o parentesco e linhagem organizando somente as relações domésticas. Os reinos e chefaturas dos tswanas, baKongo, os emirados da costa do nordeste da África seriam exemplos, com a economia combinando a agricultura, o pastoralismo e o mercado.

Como se pode ver, não há uma correspondência necessária entre a forma de organização social com a economia. Chefaturas indígenas da costa oeste canadense e noroeste dos Estados Unidos foram marcadas pela caça e coleta até o começo do século XX. Tampouco há uma necessária correspondência entre nomadismo e organização social. As hordas da Ásia Central (tártaros, mongóis e turcos) constituíram estados nômades.

Outras críticas são pertinentes ao esquema de Service, mas tipologia de organização social permite uma análise ampla na relação entre diferentes povos, bem como conhecer as formas alternativas de direito além da monolatria pelo direito estatal.

Saiba mais

CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Tradução de Theo Santiago. São Paulo, Cosac-Naify, 2003.

EVANS-PRITCHARD, Edward E. E. “The Structure of Stateless Society”. In Raymond Boudon & Mohamed Cherkaoui (eds.). Central Currents in Social Theory. Londres: Sage, 2000. pp. 6–5.

FORTES, Meyer; EVANS-PRITCHARD, Edward E. African Political Systems. Londres: Oxford University Press, 1940.

FRIED, Morton H. On the evolution of social stratificiation and the state. Indianapolis: Bobbs-Merrill. 1960.

FRIED, Morton H. “The evolution of political society an essay in political anthropology”. Random House Studies in Anthropology, AS 7. New York: Random House, 1967.

RENFREW, Colin. Archaeology: Theories, Methods and Practice by Colin Renfrew. Londres:  Thames and Hudson, 1996.

SERVICE, Elman R. Primitive Social Organization. New York: Random House, 1962.

WEBER, Max. “A política como vocação”. In Ciência e política. São Paulo: Cultrix, 1985 [1919].

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