MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, em Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
Poucas pessoas conseguem ler o Ensaio sobre a Dádiva sem experimentar a gama de emoções descritas por Malebranche ao evocar sua primeira leitura de Descartes: o coração palpitando, a cabeça fervendo e o espírito invadido por uma certeza ainda indefinível, mas imperiosa, de estar diante de um acontecimento decisivo na evolução científica.
Lévi-Strauss, Introdução: 28.
Sabe aquela blusa horrível que sua tia lhe deu de presente de aniversário? Você jura que jamais a usará, mas finge aceitar com polidez. Porém, nas festas de fim de ano, lá está você com a dita blusa — e sente-se obrigado a retribuir o gesto com uma “lembrancinha”.
Não se sinta culpado ou com baixa assertividade. Essa relação de sentimentos, obrigações morais (e vergonha) é um universal cultural e é explicada no clássico Ensaio sobre a Dádiva, escrito por Marcel Mauss.
O AUTOR
O sociólogo e antropólogo Marcel-Israël Mauss (1872–1950), com esse ensaio extenso, firmou-se como um dos consolidadores da antropologia francesa, embora ele próprio nunca tenha realizado trabalho de campo. Afável e erudito, influenciou uma geração de cientistas sociais franceses, fundando em 1925, junto de Lucien Lévy-Bruhl e Paul Rivet, o Institut d’Ethnologie em Paris.
Ciente da importância do rigor metodológico e da análise profunda de dados coletados sistematicamente, Mauss foi nesse instituto o elo entre seu tio e colega Durkheim e antropólogos como Lévi-Strauss, Marcel Griaule, Roger Bastide e Louis Dumont. Durante a ocupação alemã, Mauss foi perseguido por sua origem judaica e pelos ideais socialistas, vindo a falecer pouco tempo após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Seus textos, em sua maioria curtos, foram publicados no L’Année sociologique, periódico do qual foi editor, ao lado de seu tio. Escreveu sobre magia, sacrifício, categorização, técnicas corporais e pessoalidade — temas que se tornariam recorrentes na antropologia e filosofia francesas, especialmente entre funcionalistas e estruturalistas, além de influenciar pensadores como Merleau-Ponty e Bourdieu nas reflexões sobre corpo e habitus.
Algumas de suas obras principais:
- 1898 – Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício (com Henri Hubert)
- 1901 – A sociologia: objeto e método (com Paul Fauconnet)
- 1902 – Algumas formas primitivas de classificação (com Émile Durkheim)
- 1904 – Esboço de uma teoria geral da magia
- 1909 – Sobre a história das religiões (com Henri Hubert)
- 1924 – Relações reais e práticas entre a psicologia e a sociologia
- 1924-1925 – Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas
- 1926 – Efeito físico no indivíduo da ideia de morte sugerida pela coletividade (Austrália, Nova Zelândia)
- 1934 – As técnicas do corpo
- 1938 – Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu”
- 1947 – Manual de Etnografia
- 1950 – Sociologia e Antropologia, coletânea com célebre introdução de Lévi-Strauss ao Ensaio sobre a Dádiva
SINOPSE
Em O Ensaio sobre a Dádiva, ou O Ensaio sobre o Dom, Mauss investiga a “regra de direito e de interesse” que impõe a retribuição nas relações fundadas na troca de presentes, especialmente em sociedades que não utilizam moeda ou mercado impessoalizado. Estabelece, assim, o objeto da antropologia econômica, inquirindo sobre a economia moral das trocas.
Após uma análise comparativa de várias sociedades “arcaicas” da Polinésia, Melanésia e da costa noroeste da América, Mauss conclui que essas trocas de dádivas constituem fatos sociais totais, pois envolvem todos os aspectos do sistema social. Ao transcender o indivíduo, forjam-se alianças de parentesco, políticas, religiosas, econômicas, diplomáticas e jurídicas. Esses fatos sociais totais são tridimensionais: possuem dimensões sociológicas, históricas e biopsicológicas.
Não há presentes desinteressados: os requerimentos implícitos (e, por vezes, explícitos) de dar, receber e retribuir regem essas relações aparentemente voluntárias. Mas como tais requerimentos são impostos e respeitados?
Mauss observou uma analogia com trocas religiosas. Por exemplo, entre os maori, cada objeto possui um hau, um espírito, que, se o objeto emprestado não for devolvido, atormentará o devedor.
Esses fenômenos religiosos se mostraram uma fonte relevante para Mauss. Em um ensaio anterior com Henri Hubert (1898), ele interpretou os sacrifícios religiosos como contratos com o divino. Todavia, o temor religioso, por si só, não explica todas as relações humanas que sustentam a sociedade. O Ensaio sobre o Dom completou esse raciocínio.
Moralmente, a troca seria “uma das rochas humanas sobre as quais estão erigidas nossas sociedades”. A dependência em relação à sociedade impõe ao indivíduo a conformidade nessas relações de troca. O prestígio conquistado pelo doador e a obrigação sentida pelo donatário são consequências dessas trocas, que criam vínculos e sustentam a coesão social.
A análise de Mauss extrapola as abordagens jurídicas (contrato), religiosas (sacrifício) ou econômicas da troca. A soma de obrigações em um sistema de prestações totais mantém a sociedade como um conjunto de relações. Nesse sentido, tanto um livre mercado regulado exclusivamente pela lei da oferta e da procura quanto uma sociedade altruísta baseada em abnegação são utopias: a reprovação social por não participar do jogo das dádivas aliena o indivíduo. A realidade social é constituída por interesses privados e preocupação com os outros, por escolhas e por obrigações.
As formas de troca variam entre sociedades. As sociedades não capitalistas envolviam cada troca em um fato social total: no ato de trocar, ligavam-se pessoas, objetos e instituições. Mauss cita exemplos consagrados da etnologia, como o kula e o potlatch. O primeiro, o kula, é o sistema de trocas registrado na Melanésia — enquanto o potlatch é destruição e doação exagerada feita por prestígio em comunidades de primeiras nações do oeste canadense. Já a lógica capitalista tende a reduzir a troca à racionalidade econômica.
CRÍTICA
Esse ensaio de Mauss foi amplamente discutido por antropólogos, sociólogos e filósofos como Maurice Godelier, Jacques Derrida, Pierre Bourdieu, Karl Polanyi, Kenneth Hart, Marilyn Strathern e Frederick Bailey.
Para Lévi-Strauss, que prefacia a obra, a comparação feita por Mauss baseia-se em uma instituição muito específica, da qual ele infere uma generalização social. Já o antropólogo Alain Testart observa que há dádivas feitas sem expectativa de recompensa, como as esmolas. Contudo, o próprio Mauss antecipou essa crítica, sugerindo que há, nesses casos, o benefício do reconhecimento social, a esperança de reciprocidade em momentos de necessidade, ou ainda o bem-estar subjetivo proporcionado pelo ato de doar.
Na mesma linha, menciona-se que presentes dados por pais aos filhos em aniversários, no Natal ou no Dia das Crianças parecem não demandar retribuição — mas ainda assim mantêm uma lógica social e afetiva.
Uma das críticas mais contundentes vem de Arjun Appadurai (1986), que diferencia as trocas de dádivas das trocas de commodities. Ele questiona a romantização das sociedades pequenas e “intocadas” pela avareza dos interesses econômicos ocidentais.
SAIBA MAIS
Anthrobase: Mauss
Appadurai, Arjun (ed.). The Social Life of Things. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
Martins, Paulo Henrique. “A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 73 (2005). Disponível online: http://rccs.revues.org/954. DOI: 10.4000/rccs.954
Mauss, Marcel. . Essai sur le don. Original em francês.
