O Salmo 137, Camões e a Ópera Nabuco

 Junto aos rios da Babilônia nos assentamos e choramos, lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros, que há no meio dela, penduramos as nossas harpas.  Porquanto aqueles que nos levaram cativos nos pediam uma canção; e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: Cantai-nos um dos cânticos de Sião.

 Mas como entoaremos o cântico do Senhor em terra estranha? Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha destra da sua destreza. Apegue-se-me a língua ao paladar se me não lembrar de ti, se não preferir Jerusalém à minha maior alegria.

Lembra-te, Senhor, dos filhos de Edom no dia de Jerusalém, porque diziam: Arrasai-a, arrasai-a, até aos seus alicerces.  Ah! Filha da Babilônia, que vais ser assolada! Feliz aquele que te retribuir consoante nos fizeste a nós!  Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras! Salmo 137

No ano 586 a.C., depois de um cerco longo e doloroso caiu Jerusalém, então a capital do reino hebreu de Judá. Os invasores caldeus levaram os israelitas cativos para a Babilônia e às margens do Tigre e do Eufrates os prisioneiros lamentaram seu destino.

Em meio a destruição, há a convocação de continuar a vida, como feita pelo profeta Jeremias:

Edificai casas e habitai-as; plantai jardins e comei o seu fruto.  Tomai mulheres e gerai filhos e filhas; tomai mulheres para vossos filhos e dai vossas filhas a maridos, para que tenham filhos e filhas; multiplicai-vos ali e não vos diminuais. Procurai a paz da cidade para onde vos fiz transportar; e orai por ela ao Senhor, porque, na sua paz, vós tereis paz. Jeremias 29:5-7.

Iniciando com a dominação de Nabucodonosor, por mais 40 anos ficaram os hebreus cativos até o édito de Ciro.

Único entre os salmos, essa lamento universaliza as dores da condição de oprimidos. Embora o êxodo e o exílio babilônico marcam o judaísmo, especialmente pela vivência como minoria em diáspora por mais de dois milênios, é um grito de desespero cabível a qualquer grupo humano. Foi com essas palavras que ativistas negros norte-americanos enfrentaram a opressão e conquistaram as igualdades civis nos anos 1960.

Esse salmo é aludido em várias representações artísticas. Os jamaicanos Brent Dowe e Trevor McNaughton,  da banda The Melodians, compuseram a canção Rivers of Babylon para expressar o sentimento de opressão da diáspora africana nas Américas. O sentimento de exílio e grito contra os opressores aparecem também em Camões e Verdi.

Luís Vaz de Camões (1524— 1579) em seu soneto “Cá nesta Babilónia” e a “Redondilhas de Babel e Sião” anteviam a condição de diáspora dos lusitanos e da dominação espanhola então eminente.

Cá nesta Babilónia
Cá nesta Babilónia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá, onde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá, onde o mal se afina, o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;

Cá, neste labirinto, onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vão
Às portas da Cobiça e da Vileza;

Cá, neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
–Camões. Soneto CXXIV

Inspirada nesse salmo, a ópera Nabucco (1842) de Giuseppe Verdi (1813-1901) retrata um grito patriótico dos italianos durante o Risorgimento e é ambientada nesse episódio do exílio babilônico. Implicitamente, havia uma mensagem de protesto pela dominação estrangeira, principalmente austríaca, sobre a Itália. Seu coro dos escravos hebreus entrou para a história por seu valor estético quanto pelo seu conteúdo político.

Va, pensiero, sull’ali dorate Vá, pensamento, sobre as asas douradas
Va, ti posa sui clivi, sui colli Vá, e pousa sobre as encostas e as colinas
Ove olezzano tepide e molli Onde os ares são tépidos e macios
L’aure doci, del suolo natal! Com a doce fragrância do solo natal!
Del giordano le rive saluta Saúda as margens do Jordão
Di sionne le torri atterrate E as torres abatidas do Sião.
Oh, mia patria si belle perduta Oh, minha pátria tão bela e perdida!
Oh, membranza si cara e fatal! Oh lembrança tão cara e fatal!
Arpa d’or dei fatidici vati Harpa dourada de desígnios fatídicos,
Perche muta dal salince pendi? Porque você chora a ausência da terra querida?
Le memorie nel petto raccendi Reacende a memória no nosso peito,
Ci favella del tempo che fu! Fale-nos do tempo que passou!
O simile di solima ai fati Lembra-nos o destino de Jerusalém.
Traggi un suono di crudo lamento Traga-nos um ar de lamentação triste,
O t’ispiri il signore un concento Ou o que o senhor te inspire harmonias
Che ne infonda al partire virtu! Isso pode dar a virtude de sofrer!
Che ne infonda al partire virtu! Isso pode dar a virtude de sofrer!
Che ne infonda al partire virtu! Isso pode dar a virtude de sofrer!
Al partire virtu! Para suportar o nosso sofrimento

Quem quiser ler a redondilha mais extensa de Camóes, segue abaixo:

Sôbolos rios que vão
Por Babylonia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nella passei.
Alli o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E tudo bem comparado,
Babylonia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Alli lembranças contentes
N’alma se representárão;
E minhas cousas ausentes
Se fizerão tão presentes,
Como se nunca passárão.
Alli, despois d’acordado,
Co’o rosto banhado em ágoa,
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não he gôsto, mas he mágoa

E vi que todos os danos
Se causavão das mudanças,
E as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo ás esperanças.
Alli vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura;
O mal quão depressa vem;
E quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.

Vi aquillo que mais val
Qu’então s’entende melhor,
Quando mais perdido for:
Vi ao bem succeder mal,
E ao mal muito peor.
E vi com muito trabalho
Comprar arrependimento:
Vi nenhum contentamento;
E vejo-me a mi, qu’espalho
Tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas ágoas
Com que banho este papel:
Bem parece ser cruel
Variedade de mágoas,
E confusão de Babel.
Como homem, que por exemplo
Dos trances em que se achou,
Despois que a guerra deixou,
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou:

Assi, despois qu’assentei
Que tudo o tempo gastava,
Da tristeza que tomei,
Nos salgueiros pendurei
Os orgãos com que cantava.
Aquelle instrumento ledo
Deixei da vida passada,
Dizendo: Musica amada,
Deixo-vos neste arvoredo
Á memoria consagrada.

Frauta minha, que tangendo
Os montes fazieis vir
Par’onde estaveis, correndo;
E as ágoas, que hião descendo,
Tornavão logo a subir;
Jamais vos não ouvirão
Os tigres, que s’amansavão;
E as ovelhas, que pastavão,
Das hervas se fartarão,
Que por vos ouvir deixavão.

Ja não fareis docemente
Em rosas tornar abrolhos
Na ribeira florecente;
Nem poreis freio á corrente,
E mais se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
Nem podereis ja trazer
Atraz vós a fonte pura;
Pois não pudestes mover
Desconcertos da ventura.

Ficareis offerecida
Á Fama, que sempre vela,
Frauta de mi tão querida;
Porque mudando-se a vida,
Se mudão os gostos della.
Acha a tenra mocidade
Prazeres accommodados;
E logo a maior idade
Ja sente por pouquidade
Aquelles gostos passados.

Hum gôsto, que hoje s’alcança,
Á manhãa ja o não vejo:
Assi nos traz a mudança
D’esperança em esperança,
E de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
Qu’esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
Que quanto da vida passa
Está recitando a morte!

Mas deixar nesta espessura
O canto da mocidade:
Não cuide a gente futura
Que será obra da idade
O que he fôrça da ventura.
Qu’idade, tempo, e espanto
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mi puderão tanto,
Que, postoque deixo o canto,
A causa delle deixasse.

Mas em tristezas e nojos,
Em gôsto e contentamento;
Por sol, por neve, por vento,
Tendré presente á los ojos
Por quien muero tan contento.
Orgãos e frauta deixava,
Despôjo meu tão querido,
No salgueiro que alli’stava,
Que para tropheo ficava
De quem me tinha vencido.

Mas lembranças da affeição
Que alli captivo me tinha,
Me perguntárão então,
Qu’era da musica minha,
Que eu cantava em Sião?
Que foi daquelle cantar,
Das gentes tão celebrado?
Porque o deixava de usar,
Pois sempre ajuda a passar
Qualquer trabalho passado?

Canta o caminhante ledo
No caminho trabalhoso
Por entre o espêsso arvoredo;
E de noite o temeroso
Cantando refreia o medo.
Canta o preso docemente,
Os duros grilhões tocando;
Canta o segador contente;
E o trabalhador, cantando,
O trabalho menos sente.

Eu qu’estas cousas senti
N’alma de mágoas tão cheia,
Como dirá, respondi,
Quem alheio está de si
Doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
Quem em chôro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
Canta por menos cansar,
Eu só descansos engeito.

Que não parece razão,
Nem sería cousa idonia,
Por abrandar a paixão
Que cantasse em Babylonia
As cantigas de Sião.
Que quando a muita graveza
De saudade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes morra de tristeza,
Que por abrandá-la cante.

Que se o fino pensamento
Só na tristeza consiste,
Não tenho medo ao tormento:
Que morrer de puro triste,
Que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
O que passo, e passei ja,
Nem menos o escreverei;
Porque a penna cansará,
E eu não descansarei.

Que se vida tão pequena
S’accrescenta em terra estranha;
E se Amor assi o ordena,
Razão he que canse a penna
D’escrever pena tamanha.
Porém, se para assentar
O que sente o coração,
A penna ja me cansar,
Não canse para voar
A memoria em Sião.

Terra bem-aventurada,
Se por algum movimento
D’alma me fores tirada,
Minha penna seja dada
A perpétuo esquecimento.
A pena deste destêrro,
Qu’eu mais desejo esculpida
Em pedra, ou em duro ferro,
Essa nunca seja ouvida,
Em castigo de meu êrro.

E se eu cantar quizer
Em Babylonia sujeito,
Hierusalem, sem te ver,
A voz, quando a mover,
Se me congele no peito;
A minha lingua se apegue
Ás fauces, pois te perdi,
S’em quanto viver assi
Houver tempo, em que te negue,
Ou que m’esqueça de ti.

Mas ó tu, terra de glória.
S’eu nunca vi tua essencia,
Como me lembras na ausencia?
Não me lembras na memoria,
Senão na reminiscencia:
Que a alma he taboa rasa,
Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina,
Que vôa da propria casa,
E sobe á patria divina.

Não he logo a saudade
Das terras onde nasceo
A carne, mas he do Ceo,
Daquella santa Cidade,
Donde est’alma descendeo.
E aquella humana figura,
Que cá me póde alterar,
Não he quem se ha de buscar;
He raio da formosura,
Que só se deve d’amar.

Que os olhos, e a luz que ateia
O fogo que cá sujeita,
Não do sol, nem da candeia,
He sombra daquella ideia,
Qu’em Deos está mais perfeita.
E os que cá me captivárão,
São poderosos affeitos
Qu’os corações tẽe sujeitos;
Sophistas, que m’ensinárão
Maos caminhos por direitos.

Destes o mando tyrano
M’obriga com desatino
A cantar ao som do dano
Cantares d’amor profano,
Por versos d’amor divino.
Mas eu, lustrado co’o santo
Raio, na terra de dor,
De confusões e d’espanto
Como hei de cantar o canto,
Que só se deve ao Senhor?

Tanto póde o beneficio
Da graça que dá saude,
Que ordena que a vida mude:
E o qu’eu tomei por vício,
Me faz grao para a virtude;
E faz qu’este natural
Amor, que tanto se préza,
Suba da sombra ao real,
Da particular belleza
Para a belleza geral.

Fique logo pendurada
A frauta com que tangi,
Ó Hierusalem sagrada,
E tome a lyra dourada
Para só cantar de ti;
Não captivo e ferrolhado
Na Babylonia infernal,
Mas dos vicios desatado,
E cá desta a ti levado,
Patria minha natural.

E s’eu mais der a cerviz
A mundanos accidentes,
Duros, tyrannos e urgentes,
Risque-se quanto ja fiz
Do grão livro dos viventes.
E, tomando ja na mão
A lyra santa e capaz
D’outra mais alta invenção,
Calle-se esta confusão,
Cante-se a visão de paz.

Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este accento santo,
Mova-se no mundo espanto;
Que do que ja mal cantei
A palinodia ja canto.
A vós só me quero ir,
Senhor, e grão Capitão
Da alta tôrre de Sião,
Á qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão.

No grão dia singular,
Que na lyra em douto som
Hierusalem celebrar,
Lembrae-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom.
Aquelles que tintos vão
No pobre sangue innocente,
Soberbos co’o poder vão,
Arrazá-los igualmente:
Conheção que humanos são.

E aquelle poder tão duro
Dos affectos com que venho,
Qu’encendem alma e engenho;
Que ja m’entrárão o muro
Do livre arbitrio que tenho;
Estes, que tão furiosos
Gritando vem a escalar-me,
Maos espiritos damnosos,
Que querem como forçosos
Do alicerce derribar-me;

Derribae-os, fiquem sós,
De fôrças fracos, imbelles;
Porque não podemos nós,
Nem com elles ir a vós,
Nem sem vós tirar-nos delles.
Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão,
Se vós, santo Capitão,
Nesta minha Fortaleza
Não puzerdes guarnição.

E tu, ó carne, qu’encantas,
Filha de Babel tão feia,
Toda de miseria cheia,
Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia;
Beato só póde ser
Quem co’a ajuda celeste
Contra ti prevalecer,
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste:

Quem com disciplina crua
Se fere mais que huma vez;
Cuja alma, de vicios nua,
Faz nodas na carne sua,
Que ja a carne n’alma fez.
E beato quem tomar
Seus pensamentos recentes,
E em nascendo os affogar,
Por não virem a parar
Em vicios graves e urgentes:
Quem com elles logo der
Na pedra do furor santo,
E batendo os desfizer
Na Pedra, que veio a ser
Emfim cabeça do canto:
Quem logo, quando imagina
Nos vicios da carne má,
Os pensamentos declina
Áquella Carne divina,
Que na Cruz esteve ja.

Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visibil,
Quanto ao homem for possibil,
Passar logo entendimento
Para o mundo intelligibil;
Alli achará alegria
Em tudo perfeita, e cheia
De tão suave harmonia,
Que nem por pouca recreia,
Nem por sobeja enfastia.

Alli verá tão profundo
Mysterio na summa Alteza,
Que, vencida a natureza,
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
Minha patria singular,
Se só com te imaginar,
Tanto sobe o entendimento,
Que fara se em ti se achar?

Ditoso quem se partir
Para ti, terra excellente,
Tão justo e tão penitente,
Que despois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!

Todas as citações da Bíblia foram da versão João Ferreira de Almeida, Revista e Corrigida, 2009.

 

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