Argonautas do Pacífico ocidental e o Kula

Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Tendo encontrado um lugar para morar no alojamento de algum homem branco — negociante ou missionário — você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar – pois o homem branco esta temporariamente ausente ou, então, não se dispõe a per-der tempo com você. Isso descreve exatamente minha iniciação na pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné. Lembro-me bem das longas visitas que fiz às aldeias durante as primeiras semanas; do sentimento de desespero e desalento após inúmeras tentativas obstinadas mas inúteis para tentar estabelecer contato real com os nativos e deles conseguir material para a minha pesquisa. Passei por fases de grande desânimo, quando então me entregava à leitura de um romance qualquer, exatamente como um homem que, numa crise de depressão e tédio tropical, se entrega à bebida.

Imagine-se entrando pela primeira vez na aldeia, sozinho ou acompanhado de seu guia branco. Alguns dos nativos se reúnem ao seu redor — principalmente quando sentem cheiro de tabaco. Outros, os mais velhos e de maior dignidade,continuam sentados onde estão. Seu guia branco possui uma rotina própria para tratar os nativos; ele não compreende e nem se preocupa muito com a maneira como você, o etnógrafo, terá que aproximar-se deles. A primeira visita o enche da esperança de que, ao voltar sozinho, as coisas lhe serão mais fáceis. Era isso,pelo menos, que eu esperava. (Malinowski, 1976:23)

O antropólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942) registrou com autocomiseração esse texto fundante e martirológico do ofício do etnógrafo. Este ano faz um século da publicação de uma das obras que marcou a antropologia como disciplina autônoma em termos de interesses, métodos, teorias e instituições. Esse texto seria o Argonautas do Pacífico Ocidental (1922) — com o título completo em inglês Argonauts of the Western Pacific: An Account of Native Enterprise and Adventure in the Archipelagoes of Melanesian New Guinea.

O Argonautas do Pacífico Ocidental também é um texto fundante da economia empírica ao retratar o Kula, uma forma de troca cerimonial; realizado por comunidades que habitam um amplo círculo de ilhas na Melanésia.

O círculo do Kula abrange 18 comunidades insulares do arquipélago de Massim. Os participantes viajam às vezes centenas de quilômetros de canoa para trocar objetos com o valor de Kula. Essas pulseiras e e colares de discos de concha vermelhos (veigun ou soulava) são negociados com o norte (circulando pelo sentido horário) e braçadeiras de concha branca (mwali) são negociadas na direção sul (circulando no sentido anti-horário). Se o presente de abertura foi uma pulseira, o presente de encerramento deve ser um colar e vice-versa. A troca de objetos de valor cerimonial Kula também é acompanhada pelo comércio de outros itens paralelos como gimwali (escambo), os quais possuem valor de uso.

Baseado na Ilha de Trobriand, Malinowski questionou sob ponto de vista ocidental, “por que arriscariam tanto para trocar objetos que são quinquilharias?” Sua resposta é funcional em termos de teoria antropológica. Mais tarde, o economista Karl Polanyi empregaria esse livro para argumentar a posição substantivista — que as relações econômicas são racionais dentro de seus sistemas culturais — em antropologia econômica. Mauss, outro intérprete, concebeu a partir disso a distinção entre economias das dádivas e economias de commodities.

Os objetos trocados traziam prestígio, mas não lucro. Uma complexa relação de senioridade, aliança entre anfitriões e visitantes, além de uma rede obrigações resultantes dava ao Kula sua importância. Cada participante está vinculado a dois parceiros trocas. Um é quem dá um colar em troca de uma pulseira e outro que faz a troca inversa. Só que há aspectos negativos. Alguns ficavam com sentimentos que a troca não foi correspondida com igual valor (lembrou do seu último amigo secreto no trabalho?). A viagem em si nos mares das costas da Nova Guiné é perigosa e sujeita à tempestade. Os bens marginais trocados junto do escambos tem utilidade negligenciável para justificar o Kula. Mas o prestígio vale a pena.

Esse comércio entre sociedade de pequena escala contrasta com o comércio internacional resultou em uma enorme redistribuição de riqueza para as nações industrializadas. Ao invés da extração de um surplus — terra, commodities, trabalho barato — o Kula é um exemplo de reciprocidade equilibrada com, na média, um ganho recíproco entre as partes.

SAIBA MAIS

Argonauts of the Western Pacific (1922) Argonautas do Pacífico Ocidental (Abril Cultural, 1978).

Mauss, M. (1925). Ensaio sobre o dom. (ou Ensaio sobre a Dádiva)

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