O Mito de Erra e os Sete Demônios

Explicações sobre o mal, especialmente as pestes e guerras, que nos aflige por vezes tomam formas de mitos. Os neobabilônicos (século VIII a.C.) racionalizaram o caos e a peste que varreram sua imponente cidade com o mito do deus Erra. É também conhecido como epopeia ou épico de Erra.

Em cinco tabuletas, o escriba-sacerdote Kabti-ilani-Marduk, filho de Dabibl, do templo de Marduk na Babilônia, escreveu essa versão. Reivindica no colofão que simplesmente transcreveu um sonho revelatório do próprio deus Erra.

O épico inicia com um proêmio invocatório. O deus da violência, guerra e pestilência Erra — também chamado de Irra ou Nergal — está dormindo junto de sua esposa, a deusa do submundo Mamitu. O casal é guardado por seu conselheiro Išum e pelos Sete agentes de morte e destruição. São os ilū Sebittu, Sebettu ou Sebetti.

Como personagens, os Sebettu variaram em caráter, genealogia e papel em diferentes mitos neo-sumérios, acadianos, neo-assírios e babilônicos. Entrentanto, no mito de Erra, esses demônios malignos descendem do deus do céu, An, mas isso não os impede de ajudar Erra, o deus das pragas (Konstantopoulos 2015). Como os vampiros, os Sebettu comem carne e sangue humanos. Vistos como mau agouros, eles cobrem o caminho da Lua, causando eclipses e na astronomia babilônica foram identificados com as Plêiades. Seus opostos são os Sete benévolos, que nasceram de Enmescharra, um deus ancião e inócuo do submundo. Aparecem de 2100 aC a 300 aC em vários gêneros textuais, como encantamentos, épicos, inscrições reais e hinos divinos.

Tradicionalmente, os sebettu são identificados como os vingadores de Ezequiel 9 (Bodi, 1991). Outras possíveis alusões bíblicas seriam as sete pragas do Egito (Salmos 78:44-51; 105:28-36; cf. Apo 16) e os Quatro Cavaleiros do Apocalipse 6:2-8 (cf. Eze 14:21; Zc 1:8-17; 6:1-8). Entretanto, no épico de Erra os sebettu aparecem em conjunto, sem atribuição de nome ou personalidade individuais.

Já sobre o conselheiro e guerreiro Išum há mais informações. Ele é o guardião noturno das ruas. É uma entidade protetora. Quando os Sebettu convidam Erra para destruir a humanidade, Išum tenta infrutiferamente dissuadi-lo. Marduk, o patrono da Babilônia, cede temporariamente seu trono a Erra quando sai dos muros da cidade para visitar seu pai Ea no Abismo (Abzu). Na ausência de Marduk está implícito o exílio dos Sete Sábios (Apkallu), os homens-peixes e heróis civilizatórios, relegados ao Abismo.

A violência de Erra finalmente o desperta. Enquanto Marduk está ausente (tendo sido convencido por Erra a ir ao Abzu para que suas insígnias fossem purificadas por Ea), Erra, incitado pelos Sebettu, tem o caminho livre. Ele inicia então sua terrível campanha de destruição. O caos, a peste e a guerra varrem a Babilônia e as terras vizinhas, atingindo indiscriminadamente justos e injustos.

As tabuletas seguintes (II-IV) descrevem longos debates entre o furioso Erra e seu conselheiro Išum, que tenta desesperadamente argumentar e conter a carnificina.

Finalmente, na Tabuleta V, Išum encontra uma maneira de apaziguar Erra. Ele primeiro elogia a força incomparável e o poder assustador do deus da guerra (reconhecendo, como diz na Tabuleta IV:3, “Você mudou sua divindade e se fez como um homem”), mas depois, habilmente, direciona a fúria restante de Erra para longe da Babilônia, incitando-o a destruir os inimigos externos da cidade.

Placado pelos elogios e pela perspectiva de canalizar sua violência contra os adversários, Erra se acalma. Ele então assume um papel restaurador: decreta o fim da destruição dentro de suas terras, ordena a restauração de Babilônia e dos santuários, e promete paz e prosperidade futuras para a cidade e para aqueles que o honrarem (e possuírem cópias do poema). Erra retorna ao seu próprio templo/trono. Com a ordem e a paz restabelecidas sob a nova garantia de Erra, a autoridade de Marduk sobre Babilônia é implicitamente restaurada, e a humanidade é salva da aniquilação total. Uma oração final de louvor a Erra e Išum, e de bênção protetora para quem possuir o texto, encerra a narrativa.

Cheia de paralelismos e metáforas, o Mito de Erra permanece uma obra de nicho. Não é conhecida fora dos círculos acadêmicos especializados. Sua original publicação de 1876 ganhou radicais reinterpretações quando novas tabuletas foram revisadas no século XX, a mais recente por Taylor (2017). Era tão importante para os babilônios que trinta e seis cópias do Mito de Erra foram encontradas, mais abundantes que o Épico de Gilgamesh. Supõem-se que tinha valor apotropaico, ou seja, dava proteção contra males diversos.

O épico de Erra é fascinante por um detalhe na história do livro. Como mencionado, o escriba Kabti-ilani-Marduk conta no colofão como compôs o texto. O poema foi-lhe revelado durante um sonho por Erra e o escriba diz que pela manhã recitou-o sem deixar uma linha fora. Entretanto, fraseologia e versões anteriores indicam que algumas formas do texto já estavam em circulação por um tempo. A história do livro na Mesopotâmia pôs os trilhos iniciais para toda as atividades autorais e editoriais no mundo posterior.

SAIBA MAIS

Bispo, Manuela – Erra/Isum: contributo para a análise do divino, na Babilónia, à luz do poema de Erra. Cadmo. Nº 20 (2010) . DOI http://dx.doi.org/10.14195/0871-9527_20_15

Bodi, Daniel. The book of Ezekiel and the poem of Erra. Freiburg, Switzerland / Göttingen, Germany: Universitätsverlag / Vandenhoeck Ruprech, 1991. DOI https://doi.org/10.5167/uzh-152074

Cagni, Luigi. L’epopea di Erra. Studi semitici. Roma: Istituto di studi del Vicino Oriente, 1969.

Konstantopoulos, Gina V. They are Seven: Demons and Monsters in the Mesopotamian Textual and Artistic Tradition. Tese de doutorado, Universidade do Michigan, 2015.

Taylor, Kynthia. The Erra Song: A Religious, Literary, and Comparative Analysis. Doctoral dissertation, Harvard University, Graduate School of Arts & Sciences, 2017. Contém uma reconstrução.

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