Montaigne, humanismo e ensaio

Bem-sucedido em sua carreira, rico, culto, tolerante e proprietário de um chateau idílico no sul da França, Montaigne encontrou o balanço entre respeito às diferenças e a universalidade da natureza humana. Apesar da sua invejável erudição (e ser uma das últimas pessoas notórias a ter o latim como primeira língua), valorizava mais a inquirição livre que as disputas pedantes acerca de mestres pretéritos. Além da grandiosidade de inventar sozinho um gênero literário, sobressaiu como expoente máximo desse gênero, os Ensaios.

029-Peschard-1962

No ano de 1533 nasceu Michel no castelo de Montaigne em uma vinícola entre Bordéus e Périgueux, no sul da França. Seu bisavô Ramon adquiriu o senhorio — a propriedade junto do título de pequena nobreza — em 1477. Apesar das menções laudatórias a seu pai, quase nada o ensaísta registrou de sua mãe, Antoinette de Louppes (Lopez) de Villanueva, também de uma próspera família mercante de Toulouse de origem sefardita que aderira ao protestantismo.

Nessa época judeus ibéricos encontraram refúgio na Gasconha. A comunidade mercante cristã-nova dos arredores de Bordéus usufruíam da tolerância promovida pela nobreza regional. Como ocorre em ambientes de tolerância, ainda que limitada, houve um renascimento cultural. A exemplo, um dos refugiados, o filósofo Francisco Sanches (1550 — 1622) compartilhava com contemporâneo Montaigne o antidogmatismo humanista, interesse comum que refletia na obra de Sanches, cujo título Quod Nihil Scitur é similar ao dito Que sais-je? do pensador bordolês.

O ambiente familiar era erudito e tolerante. O escritor, três irmãos e uma irmã eram católicos enquanto um irmão e duas irmãs aderiram ao protestantismo huguenote. Uma sobrinha, Jeanne de Lestonnac, foi canonizada. Em uma época turbulenta de violência religiosa, a ausência de sectarismo na família era algo notável. E seus ensaios, ceticismo, modéstia e humor autodeprecatório contrastavam (e ajudaram a demolir) com as certezas de uma França polarizada politicamente por razões religiosas.

Ao contrário de O burguês ridículo de Molière, a família Eyquem de Montaigne não se constituía em arrivistas ignorantes. Seu pai Pierre Eyquem (1495 — 1568), ainda que pertencente à nascente burguesia enriquecida com o comércio de vinho e peixe, aspirava à ascensão social mediante o serviço público, além de valer-se da aquisição dos modos e da educação aristocráticos. Pierre participou da campanha italiana do rei Francisco I, onde ficou impressionado pelo Renascimento e decidiu proporcionar ao primogênito uma educação humanista.

No ensaio Sobre a educação das crianças (I.26), Montaigne retrata sua educação: iniciada em latim com um tutor alemão que não falava francês. Somente aos seis anos começou a aprender o francês e o dialeto de Périgueux. Antecipando a moda de fazer crianças escutar Mozart, o jovem Michel era despertado com músicas suaves. Apesar desses cuidados com a instrução, Pierre garantiu que não estragassem o menino: seus padrinhos foram camponeses locais com quem o jovem Michel passou a infância. Após sua educação doméstica, estudou no Collège de Guyenne em Bordéus e Direito, provavelmente em Toulouse.

No Collège de Guyenne, instituição de artes liberais fundada nos moldes humanistas e seculares como o Collège de France, era dirigida pelo célebre pedagogo lusitano André de Gouveia (1497—1548). Apesar do estímulo ao livre pensamento que o Collège propiciava, com ampla adoção do humanismo erasmiano, Montaigne relembraria suas experiências nele como tediosas, ainda que considerasse Gouveia o maior diretor escolar que conhecera.

Ingressou no serviço público jovem. Entre 1554 e 1557 ocupou um assento no Cour des Aides, um tribunal administrativo do fisco de Périgueux, cargo prebendário comprado por seu pai. Sua carreira no serviço público prosperou. Seu próximo cargo foi o de juiz do Parlamento de Bordéus, uma das oito cortes regionais que racionalizava o judiciário do Estado nacional francês integrando a última instância judiciária do país. Nessa época, nutriu uma profunda amizade com Étienne De La Boétie (1530-1563), discorrida no ensaio Sobre a amizade (I.28).

Mas, em breve Montaigne perderia o amigo. A morte de La Boétie afetou-lhe de tal forma que Montaigne passou a registrar suas reflexões em seus cadernos de lugares-comuns, dada a ausência do amigo e colega de discussões. A prática de registrar pensamentos, trechos literários, anedotas e ditados estava no auge nessa época. Os cadernos de lugares-comuns chegavam a ser publicados com enorme sucesso, como caso do Adagia de Erasmo de Roterdã e o Silva de varia leccion de Pedro Mejía. A inovação de Montaigne foi dar uma perspectiva pessoal nesses topoi, criando o ensaio como gênero literário. Como diria: “o assunto do meu livro sou eu”.

Montaigne já tinha experiência com texto. Antes de morrer, seu pai pediu-lhe para traduzir ao francês e editar o livro Theologia Naturalis (1569) de Raymond Sebond  (1385 – 1436). Essa obra do teólogo aragonês argumentava que a natureza e as Escrituras eram fontes igualmente válidas da revelação divina. Estudar a natureza seria o método imediato de compreender Deus. Mais tarde o ensaísta incluiria a Apologia a Raymond Sebond ( II, 12) em sua coletânea, defendendo um ceticismo que não excluía a religião, mas criticava a arrogância do dogmatismo. Sua outra experiência com textos ocorreu quando editaria o Discurso sobre a Servidão Voluntária, obra-prima do amigo La Boétie publicada clandestinamente em 1576.

Dois anos após a morte do pai, Michel “cansado se ser escravo dos tribunais e das repartições públicas” retirou-se da burocracia. Mudou-se para o castelo da família e na torre circular montou sua biblioteca com dizeres clássicos entalhados nas vigas. Os livros herdados de La Boétie — Lucrécio, Aristóteles, Virgílio, Horácio, Cícero, Sêneca, Plutarco e Agostinho — passaram a ser seus companheiros. Nesse ambiente, prosseguiu na reflexão que resultou nos Ensaios.

Sua aposentadoria precoce aos 38 anos seria interrompida para mediar as disputas entre católicos e protestantes, ganhando respeito tanto de Henrique III quanto de Henrique de Navarra. Outra interrupção do sossego ocorreu quando em 1581 foi nomeado prefeito de Bordéus, posição anteriormente ocupada pelo pai. Estava no meio de uma viagem pela Itália, experiência da qual nos legou um diário. Exerceria dois mandatos até 1585, quando retirou definitivamente para seu castelo.

Ao morrer em 1592, sua obra já o fizera famoso.

Os Ensaios

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Como mencionado, o assunto dos seus ensaios era ele mesmo. Em suas páginas o autor teve a audácia de tocar em assuntos até então (e hoje) tabus, como sua vida sexual, criticar a superficialidade dos pernósticos, vibrar por livros que amou (como As metamorfoses de Ovídio) e confessar que era chato ler Platão.

O título despretensioso — ensaios no sentido de tentativas ou testes — permeia sua intenção de ser uma obra progressiva. E de fato seria. Tradicionalmente, as diferenças textuais são referidas como:

A – o texto da primeira edição de 1580;
B – adições feitas até quinta edição grandemente expandida em 1588;
C – alterações feitas nas margens de sua cópia da edição de 1588, conhecida como a cópia de Bordeaux.

Embora não se chama cada texto individualmente como um ensaio, mas a obra coletiva e no plural, há uma coerência temática permeável através dessa coleção de 107 textos aparentemente desconexos entre si. O estudioso de Montaigne, Pierre Villey, autor do Les sources et l’évolution des Essais de Montaigne (1910) identificou três períodos distintos nos escritos de Montaigne que resumem a temática geral da obra:

  1. fase estóica: “filosofar é aprender a arte de morrer”. As influências dos estoicos e dos moralistas romanos, como Cato, o Jovem, são visíveis. A proximidade das mortes de La Boétie e seu pai o teria impactado nessa fase.
  2. fase cética: “o que eu sei?” Influenciado Pirro e Sexto Empírico faz da busca do conhecimento o objeto permanente de sua inquirição.
  3. fase epicurista: “a finalidade filosofia não é ensinar a arte de morrer, mas a arte de viver”. Uma visão positiva da existência humana, buscando viver em harmonia com o natureza. Influenciado por Lucrécio.

A recepção de Os Ensaios foi  um sucesso. Escrevendo em vernáculo e com miríades de citações greco-latinas, o livro circulou logo. Já em 1597 Francis Bacon lançaria sua primeira edição da coletânea com o mesmo título, outro best-seller que ajudaria a consolidar o gênero. Em uma analogia já clichê, Montaigne criou o blog antes da internet. E não só criaria, mas seria o primeiro blogueiro popular.

Como se pode ver pelos títulos dos capítulos (alguns títulos contrários à posição expressa no corpo do texto, estratégia para enganar a censura), os interesses de Montaigne eram bem variados. O que incluía o novo mundo descoberto.

Em Sobre os canibais (I.30), Montaigne relata seu contato com um brasileiro. Na época, relatos de Thevet e Jean de Léry circulavam com a notícia da França Antártica. Em 1562 até houve uma festa brasileira, com fascinantes tupinambás, em Rouen, iniciando a tradição exoticista de carnavalescos brasileiros na Europa. Montaigne tomou parte na festividade e teve um empregado que morou no Brasil por uma década. Com esse conhecimento, Montaigne fez uma brilhante defesa do que chamamos hoje relativismo cultural em detrimento do etnocentrismo. O autor criticou o julgamento moral contra o suposto canibalismo dos brasílicos enquanto os europeus se matavam selvagemente. Apesar disso, Montaigne reconhecia a universalidade humana, afirmando a existência de verdades universais acessíveis à razão humana. Talvez venha dele a acepção francesa do bon sauvage, tão idealizada por Voltaire e Rousseau.

Uma das razões para a propagação dos Ensaios foi o esmerado cuidado editorial de sua executora literária, Marie de Gournay, (1565-1645). Essa autodidata em latim — capaz de traduzir Ovídio, Virgílio, Salústio e Tácito — fora uma precoce defensora dos direitos femininos e encontrou em Montaigne voz para suas convicções. A moralidade humanista de Montaigne preconizava o respeito à esfera privada: assuntos como religião ou sexualidade seriam de foro íntimo, sendo qualquer opinião alheia uma intromissão irrelevante. Quando ela tinha 23 anos conheceu o cinquentão Montaigne. Nutriram uma amizade intelectual (amizade tranquila, menos à Vanessa de Swift e mais à Lady Masham de John Locke) até a morte do autor.

A sensibilidade de Montaigne aborda temas universais que são poesias sem limites no tempo:

Esquece o futuro, ele não te pertence.
O presente te basta,
mas é preciso ser rápido quando ele é mal presente
e andar devagar quando se trata de saboreá-lo.
Expressões como “passar o tempo” espelham bem a maneira de viver dessa gente prudente,
imagina não haver coisa melhor pra fazer da vida!
Deixam passar o presente, esquivam-se, ignoram o presente,
como se estar vivo, fosse uma coisa desprezível…
Porque a natureza nos deu a vida em condições tão favoráveis
que só mesmo por nossa culpa, ela poderia se tornar pesada e inútil.

No Brasil as traduções notáveis são as do polímato Sérgio Milliet para a coleção  Os Pensadores (Nova Cultural, 1991; relançado pela Editora 34, 2016) e a de Rosa Freire d’Aguiar (Companhia das Letras, 2010). Recentemente a L&PM lançou uma edição de bolso Que filosofar é aprender a morrer e outros ensaios.

SAIBA MAIS

Montaigne Studies

FRAME,Donald M (editor). Introduction in The Complete Essays of Montaigne. Stanford, Ca: Stanford University Press, 1965.

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