Espaços segregados e convivência assimétrica

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A favela de Paraisópolis. Foto de Tuca Vieira

A bibliotecária Juliette Hampton Morgan (1914 –1957) era uma típica senhorita de classe alta na pachorrenta cidade de Montgomery, Alabama, nos meados dos anos 1950. Era solteirona, branca, rica, educada, cristã e filha única de uma influente família tradicional sulista. Os Estados Unidos viviam a dura época dos Jim Crow Laws, o racismo institucionalizado que segregava hipocritamente sob a doutrina do “separados, porém iguais” firmada por decisão da Suprema Corte no caso Plessy v. Ferguson (1896).

Pelo seu ambiente de criação, Morgan tinha tudo para ser racista ou, ao menos, omissa nas conturbadas relações entre brancos e negros. Mas, teve um detalhe que a transformou. Ela não dirigia e diariamente tomava ônibus para o trabalho. Segundo ela, ao ver os maus tratos por parte dos motoristas brancos, solidarizou-se com os oprimidos. Os motoristas obrigavam os negros a darem lugares aos brancos na seção intermediária do ônibus. Também era legal obrigar que os passageiros negros pagassem ao motorista na porta da frente e entrassem pela porta de trás; quando não raro partiam deixando a pessoa sem a corrida e sem o dinheiro. Além dos abusos verbais e humilhações como a de jogar o troco no chão. Morgan foi uma das poucas lideranças brancas da cidade de Montgomery que apoiou o boicote liderado por Martin Luther King, Jr em 1955 quando Rosa Parks, uma senhora negra, foi presa por recusar a desocupar seu lugar para um branco sentar-se ao seu lado. Perseguida, Morgan teve um final triste, mas seu contato com pessoas em diferentes situações que a fez assumir essa postura ética.

Como retratado no célebre Casa-grande & Senzala (Freyre 2013), no Brasil impera o inverso do Jim Crow Laws: um racismo baseado no “juntos, porém diferentes”. Há uma proximidade física (e até afetiva), mas um distanciamento social que dificulta experiências humanizantes como a de Juliette Morgan.

Preconceitos de qualquer espécie são entraves ao desenvolvimento humano. Imagine o quanto de gente capacitada, produtiva e eticamente responsável foram preteridas de cargos por razões de classe social, políticas, opiniões filosóficas, religião, etnia, gênero, estilo de vida, localidade de moradia, limitações físicas ou cognitivas. No caso do Brasil, faltam mecanismos niveladores que forcem o simples contato com as diferenças, fomente a colaboração entre pessoas diversas. Não há nada aqui como o obrigatório serviço militar de Israel, as escolas públicas nos EUA ou as universidades públicas e universais da Alemanha que forçam o convívio produtivo de pessoas diferentes.

Assim, predominam as relações assimétricas. A educação – algo que vai além da escolarização – passa ser não um meio de integração, mas de estratificação social. Crianças de classe alta possuem babás — que não são parentes– desde a infância. As classes médias começam a se distinguir entre si já na infância conforme a creche que frequentam. Essa vala social vai se aprofundando no ensino fundamental, com escolas públicas para as classes trabalhadoras e escolas privadas para as classes média e alta. Sem contar atividades extracurriculares: aulas de inglês, música, natação, intercâmbios, acesso à mídia de qualidade – que não são igualmente acessíveis. Frequentam circuitos “exclusivos” desde condomínios fechados até shoppings caros. Na educação superior, há a famosa inversão: ensino público para os afluentes, privado para os com menor renda.

As diferenças acumuladas de capital social refletirão no mundo do trabalho. Há menor chance de mobilidade social para quem veio de um contexto pobre ou trabalhador em relação aos que vieram de um contexto afluente. O jurista que formou em direito em uma universidade prestigiada possui uma rede de contatos mais influente. Isso porque passou mais tempo em iniciação científica, festando ou outras atividades acadêmicas que, além de aumentarem sua rede social, refinaram seus modos para conviver na esfera do poder. Consequentemente, acabam sendo os formuladores de políticas, legislações e conselheiros em posições decisórias. Já o jurista que fez outro caminho, estudou à noite em uma das tantas recentes faculdades de direito que surgiram, chega ao mercado de trabalho sem contatos relevantes e sem os trejeitos para lidar com clientes ricos. Nunca foi à Disney, como diria o sagaz Ariano Suassuna. Tende a utilizar um raciocínio voltado à aplicação prática do direito, quer em ações que só repetem fórmulas de subsunção, quer em concursos. Desse modo, mesmo que ambos tenham a mesma formação e mesma habilidade técnica, as oportunidades serão distintas ao se formarem. É assim com outros cursos, desde as engenharias até as humanidades.

A segregação educacional assemelha-se à geográfica.

Anúncios como “requisito: morar próximo ao trabalho” abundam em cidades grandes. O preconceito geográfico não se limita à origem. Compartilham-no com migrantes os nativos moradores de periferia. Afastados da visibilidade pública ou exoticisados em filmes do tipo Cidade de Deus, esses moradores têm menos acesso a crédito e serviços públicos que, proporcionalmente, pagam mais caros que seus vizinhos mais abastados. Sujeitos às enchentes e a outros “desastres naturais”, suas vidas valem menos. São duplamente vítimas dos crimes violentos: sofrem–no com maior frequência e ainda são associados à marginalidade. E não precisa ser morador de uma aglomeração subnormal (moradias improvisadas debaixo de pontes, edifícios ocupados, bairros irregulares). Mesmo a perifa de classe média baixa é estigmatizada, apesar da pujança econômica expressa em inúmeros mercadinhos, salões de cabelereiros, loja de motocicletas, igrejas concorridas e lojas de açaí.

O irônico que essa distância nem é tanto espacial. Dividem o mesmo muro o bairro popular e o condomínio fechado. Um célebre estudo antropológico feito por Caldeira (2000) retrata a criminalização da pobreza e o discurso de segurança para justificar o estilo de vida segregado dos condomínios fechados. Isso em uma época em que o Brasil passou por uma relativa estabilidade social e econômica.

A discriminação pelo endereço afeta os homo sacer: pessoas sem o funesto e ilegal “comprovante de endereço” exigidos para o mais simples exercícios de cidadania ou de direitos fundamentais.

A consequência desse afastamento íntimo é bem documentado. A antropóloga Cláudia Fonseca aponta que para as classes abastadas no Brasil o único contato com as classes populares somente acontece via contatos com os empregados ou com o assalto. Os mais afluentes pressupõe que os mais pobres simplesmente diferem em questão de renda. Assim, ignoram os anseios, os valores e as escolhas que as classes populares têm.

Em um país onde a “gente diferenciada” tem cor e endereço notórios, a igualdade entre seus cidadãos restringe-se a uma isonomia formal. Na prática, os direitos são acordo com a cara do cliente. As políticas públicas para remediar esse apartheid deram resultados ambíguos: cooptação dos que querem escapar da injusta segregação e a reação dos que sentem seus aeroportos e shopping centers “invadidos” por gente diferente.

Saiba mais

BOURDIEU, Pierre. A distinção. São Paulo: Edusp, 2007.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/EdUSP, 2000.

FONSECA, Cláudia. Família, fofoca e honra: etnografia das relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande E Senzala. 52 ed.  São Paulo: Global, 2013.

Racismo e cooptação social no Brasil

Conceitos básicos: racismo, discriminação e preconceito

 

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