A educação pitagórica

4 T
Fyodor Bronnikov. Os pitagóricos celebram a aurora. 1869.

9 Como era o método e a ordem da instrução de Pitágoras, o período prescrito e observado para o aprendizado enquanto se mantinha silêncio.

1Contavam-se que era assim a ordem e o método seguido por Pitágoras, e depois por sua escola e seus discípulos para a admissão e formação de seus estudantes: 2 desde o início os jovens eram selecionados ao ensino com base na fisionomia. Esse termo refere-se ao julgamento do caráter e da natureza dos homens pela inferência a partir de seu semblante facial e expressão, bem como da forma e complexão de todo o corpo. 3Então, quando ele examinava um homem e o considerava adequado, admitia-o à escola ao mesmo tempo dava ordens para manter um período fixo de silêncio: não era o mesmo tempo para todos, mas diferiram de acordo com a estimativa da capacidade de aprender rapidamente. 4Mas aquele que ficava em silêncio escutava o que era dito pelos outros. Era, todavia, proibido religiosamente de perguntar, se não tivesse entendido ou se quisesse comentar. Mas não ficava em silêncio por menos de dois anos, durante este tempo de silêncio e de escuta, eram chamados “ouvintes”. 5Mas quando já haviam aprendido o mais difícil, ficar quieto e ouvir, e já tinha começado a ser bem versado no silêncio erudito, chamado de continência das palavras, podiam escrever as palavras que tinham ouvido e podia falar e perguntar, e emitir opiniões; 6 Nessa fase eram chamados de “matemáticos” ou estudantes das ciências, pois os gregos assim chamavam esses ramos do conhecimento que começavam a aprender e praticar: geometria, horologia, música e outros estudos superiores ou ciências “matemáticas”. Entretanto, o povo usa o termo matemático para aqueles, chamados com o gentílico, caldeus [astrólogos]. 7A partir desses estudos possuíam fundamentos para compreender a natureza e os princípios de como o mundo funciona bem e eram chamados de “físicos”.

8Tendo-me ensinado sobre Pitágoras, meu amigo Taurus dizia “agora, todavia, os jovens chegam à filosofia repentinamente, com os pés sujos, completamente sem propósito, sem instrução, sem discernimento [atheoretoi, amousoi, ageometretoi], querem determinar eles mesmos as leis da instrução na filosofia. 9 Um diz, ‘primeiro me ensine isso’, outro diz, ‘eu quero aprender isso, não aquilo’. Outro pede para iniciar com o Simpósio de Platão porque está ansioso para saber da farra de Alcebíades, outro com o Fedro devido ao discurso de Lísias. 10Por Jupiter! Há também, dizia ele, quem realmente pede para ler Platão, e não para melhorar na vida, mas para aprimorar de seu discurso e estilo, não para ganhar na razoabilidade, mas na beleza”.  Taurus costumava comparar 11 os estudantes de filosofia de hoje com os pitagóricos do passado.

12Mas não devo deixar de mencionar é que todas as pessoas admitidas por Pitágoras cediam ao grupo de discípulos o dinheiro que possuíam, seja bens móveis e imóveis. Formavam-se uma comunhão indissolúvel, uma sociedade que no jargão jurídico romano foi chamado de “herança indivisível”.


Algumas observações

Esse excerto de Aulus Gellius (ca. 123–170 d.C.) –  autor das Noctes Atticae (Noites Áticas), uma coleção de apontamentos acerca da filosofia, lendas, história e outras curiosidades – traz-nos um dos mais antigos currículos da paideia. Embora seja anacrônico tratá-la como artes liberais, a educação grega que unia a formação intelectual à do caráter sem necessariamente ser destinada de fins prático tem seu início institucional com Pitágoras. Aristóteles (Metafísica I. 5) atribui aos “assim chamados” pitagóricos a invenção da mathemata, ou seja, das ciências, a qual se distintiguia da meteorologia (estudo dos ares e do cosmo) dos filósofos jônios.

O filósofo pré-socrático Pitágoras (580-497), originalmente de Samos na Jônia, mudou-se para Crotone no sul da Itália. De lá seus discípulos formariam centros pitagóricos em Taranto, Metaponto, Síbaris, Régio e Siracusa que duraram até o século V d.C. Pitágoras concebia um mundo regido pelos números, havendo relações harmônicas entre os diversos seres. Desse modo, valoriza a matemática e a música. Teria influenciado indiretamente a Platão (Archytas, um dos últimos mestres pitagóricos teria socorrido Platão em Siracusa), sobretudo na teoria das ideias. Vale salientar que a abordagem de Pitágoras não era como a matemática contemporânea, voltada ao cálculo quantitativo. Antes, visava descobrir às relações qualitativas e proporcionais entre os seres, através da harmonia e do ritmo.

As observações de Aulus Gellius, bem como o extensivo tratamento que dá à gramática e outras questões de comunicação em outras partes de sua obra, revelam o interesse dos romanos sobretudo pela retórica e oratória. No currículo de Pitágoras a educação é aberta aos candidatos selecionados (pela cara) e seguem um caminho de ouvintes, teóricos e, por fim, aplicados. O conteúdo era a matemática, a música, a arte de fazer relógios solares e as especulações sobre a natureza. A disciplina (inclusive com uma dieta rígida) e a corporação acadêmica antecedem as universitas medievais.

Além de fundar a primeira escola filosófica no sentido estrito, Pitágoras e os pitagóricos caracterizam também como um dos primeiros culto iniciáticos da história. Inspirado nas versões voluntárias das religiões estabelecidas, como os cultos de mistério, Heródoto (Histórias IV, 95) relata a crença religiosa do além-vida da comunidade pitagórica e sua influência órfica. O cerne da doutrina pitagórica parece ter sido a metempsicose, a transmigração da alma. Organizacionalmente influenciou a estratificação iniciática em outras religiões. Por exemplo, no cristianismo antigo havia duas distintas classes de catecumenato, os ouvintes e os competentes.

Entre os séculos II a.C. e II d.C. houve um renascimento da comunidade pitagórica, legando uma basílica subterrânea em Porta Maggiore, descoberta em Roma em 1915. A vida de Apolônio de Tiana retrata um típico mestre e taumaturgo neopitagórico dessa época. Influenciaria ainda místicos, neo-platonistas, a aritmologia e gematria, bem como o movimento neo-pitagórico do século XX.

Saiba mais

Aulus Gellius. Noctes Atticae. I. IX. 1-9

Aristóteles: preceitos para uma educação liberal

A alegoria da caverna para um currículo proposto por Platão.

Huffman, Carl, “Pythagoreanism”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.)

 

 

3 comentários em “A educação pitagórica

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