30 de abril, data final para cair na boca do leão, queda do III Reich que não durou mil anos, sista april, sabá das feiticeiras, noite de Santa Valburga. Esse dia ficou imortalizado na literatura em duas cenas de Fausto de J. W. Goethe (1749-1832).
O quanto estaria disposto a transgredir os seus limites para saciar sua sede de conhecimento, poder e prazer? Esse tema perene é retratado na obra-prima da língua alemã que combina elementos da epopeia e da tragédia. Inspirados em contos populares que fundem lendas com personagens históricos como os alquimistas do Renascimento Cornelius Agrippa, Paracelso e Johan Faust, Goethe transmuta o folclore alemão, o romanticismo, a versão dessa lenda por Marlowe, as obras de Shakespeare e a Bíblia nesse filosofal poema em duas partes.
Na primeira parte, Mefistófeles (um anjo do mal), como no livro de Jó, aposta nos céus sobre a integridade de Fausto. Na Terra, no desespero em saciar sua sede de saber, o erudito Fausto faz uma aposta com Mefistófeles. A proposta do Maligno é que conseguirá satisfazer o desmotivado Fausto. No momento em que sua vida estiver plena, perderá sua alma. O sábio se degringola a uma vida dominada pela sensualidade. De certa forma, representa uma transição do racionalismo iluminista para o sensualismo romântico. Com a canalhice que inspiraria a Dorian Gray, Fausto seduz, desgraça e abandona a inocente Margarida (Gretchen).
Depois de deixarem a vida de Gretchen destruída, Mefistófeles e Fausto vão ao pico do monte Brocken, nos montes Harz, no centro-norte da Alemanha. Lá, segundo a lenda, na noite de 30 de abril para 1º de maio as bruxas e os espíritos malignos celebram uma bacanal.
Essa data, que celebra Santa Valburga ou Valpurga (710-777), parte da missão anglo-saxã de São Bonifácio para converter os alemães ao catolicismo, confunde com festivais pagãos que marcam o início da primavera na Europa central e Nórdica. É chamada de Walpurgisnicht (alemão) ou Valborg (sueco), sendo celebrada com bebidas, piqueniques e fogueiras. É o ápice da permissividade. O dramaturgo Edward Albee alude a essa noite no título do segundo ato da peça Quem tem medo de Virgínia Woolf (1962) para denotar os jogos maliciosos dos personagens. Em Fausto, representa o clímax da lassidão.
Na cena XXI da primeira parte Fausto caminha para o pico admirando a natureza do mundo enquanto Mefistófeles segue sem ser impressionado, guiados por espíritos em forma de fogo-fátuo. O evento será uma festa de arromba: visitado pelo Diabo em pessoa. Passam pela caverna de Mammon. Na festa encontram representantes da vaidade terrena: um General (força), um Ministro (poder), um Novo Rico (riqueza) e um Autor (fama). Uma bruxa tenta vender um punhal que matou um homem, um cálice com veneno, uma joia que seduziu uma moça e uma espada usada em uma luta: reminiscências dos pecados de Fausto. O protagonista desdenha essa feira das vaidades.
Mefisto tenta distrair Fausto com a beleza das bruxas. Fausto vê Lilith, primeira esposa de Adão. Dança com uma sedutora, o encanto quebra quando da boca dela sai um rato. A indiferença acaba quando Fausto vê a Medusa, mas não se torna em pedra: recorda-se de Gretchen. Para evitar remorso ou qualquer sentimento que abata Fausto, Mefistófeles intervém e leva-o para assistir uma peça teatral.
A cena XXII Um sonho de Valborga retrata uma peça de teatral que serve de interlúdio, com alusão a Um sonho de uma noite de verão de Shakespeare. É mais satírico, com temas menos pesados que a cena anterior. Oberon e Titânia ensinam como conviver casados. Segue uma procissão de seres fantásticos, que inspiraria o Bestiário ou Cortejo de Orfeu de Guillaume Apolinaire (1911), que terminam com Ariel e Puck, arautos da primavera.
A segunda parte de Fausto não se preocupa com a alma. Fausto, o erudito ansioso pelo conhecimento, aparentemente já teria conquistado seu ápice. É o financista do imperador. Mefisto, então, o leva para uma segunda noite de Valborga, dessa vez, na Grécia Clássica e em diferente data. A decadência do indivíduo dá lugar a um repertório histórico, político, filosófico e psicológico da cultura ocidental. Por essa razão, nessa segunda noite de Valborga é chamada de a “Valborga clássica”.
A cena III do ato II da segunda parte começa no campo de batalha de Farsalos na guerra civil entre Júlio César e Pompeu, a Farsália, em 9 de agosto de 48 a.C. Inspirado no poema de mesmo nome de Lucano, Goethe abre a cena com Erichto, a bruxa tessália. Nessa cena, recheada de criaturas mitológicas, Fausto, Mefisto e o Homúnculo – ser criado no laboratório de Fausto – se separam em busca, respectivamente, de Helena (a beleza), os prazeres sensuais, e a humanidade. Dessa forma, antecede os temas recorrentes do romantismo.
A noite de Valpurgis é uma feira de vaidades. A vaidade não é somente material ou sexual, há vaidades intelectuais. Outros tipos retratados e criticados são as escolas de filosofias, como o Racionalista do Iluminismo (F. Nicolai), o Dogmático (pré-Kantianos), o Idealista (Fichte e Schelling), o Realista (empiristas), o Sobrenaturalista (F.H. Jacobi), o Cético (Hume) e os Adeptos (voláteis). Com um vasto elenco de personagens históricas e mitológicas, Goethe concilia o passado com o pensamento de sua época. Temas sérios coexistem com o deboche. Na edição brasileira da Editora 34 há a inserção do trecho Saco de Valpurgis, poema tido como muito obsceno e foi deixado fora da edição canônica da primeira parte em 1808.

É provável que Goethe se inspirou na ilustração de Michael Herr (1591-1661) para retratar o fantástico, o mágico e a bruxaria na noite da Valborga. Retomaria esse tema com Felix Mendelssohn, para quem Fausto fez o poema da Die erste Walpurgisnacht Op.60. Outro compositor inspirado na obra foi Berlioz. Outros autores inspirados pelo evento (e talvez, pela cena de Goethe) foram Bram Stoker, H.P. Lovecraft, Jakob Grimm e Thomas Mann, Apesar do iluminismo, o imaginário europeu era ainda permeado pela crença nas bruxas, tendo a última execução por bruxaria ocorrida em 1782 com a morte de Anna Göldi, na Suíça.
Saiba mais:
Fausto – tradução de António Feliciano de Castilho
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto I e II: Uma tragédia. Tradução de Jenny Klabin Segall e ilustrações de Eugène Delacroix. Anotações de de Marcus Vinicius Mazzari. Edição bilíngue. São Paulo: Editora 34, 2004.