O Deserto dos Tártaros

Viver uma vida a um propósito que lhe foi atribuído pode ser inspirador — mas virá com perdas.

Cena do filme de Valerio Zurlini (1976)

O jovem oficial Giovanni Drogo assume com empolgação seu posto na fortaleza de Bastiani. A remota fortaleza estrategicamente guarda a fronteira, controlando uma passagem de montanha. Noutro lado da passagem está o inóspito deserto dos tártaros, de onde vem a ameaça.

Inicialmente Drogo veio com a intenção de servir nessa fronteira por quatro meses. Espera conseguir um posto melhor, mais próximo da cidade. Mas o tempo passa. Exceto pela expectativa do ataque tudo na fortaleza é monótono. Ao menos um ataque daria aos soldados a fama e glória.

A adesão mecânica às regras militares dá certo sentido. Mas também desumaniza. Quando um soldado sai para capturar um cavalo extraviado retorna, não lembra a senha. É abatido pelo sentinela, mesmo sendo reconhecido. Regras existem para serem cumpridas.

Drogo acomoda-se com essa vida. Enquanto vive para repelir um ataque e colher a glória, seus amigos e parentes tocam a vida na cidade. Amigos casam e têm filhos. Um dia viaja para a cidade, mas já não se sente mais parte dela.

Reduzem o contingente da fortaleza. Alguns colegas morrem, outros camaradas conseguem transferência. Sua posição perde importância. Drogo passa trinta anos nessa vida.

Ele se ilude, esse Drogo, com o sonho de uma vingança maravilhosa em alguma data remota. Ele acredita que ainda tem uma imensidão de tempo à sua disposição. Então ele desiste da luta mesquinha do dia a dia da existência. Chegará o dia, pensa ele, em que todas as contas serão pagas com juros. Mas enquanto isso os outros o ultrapassam, lutam ferozmente entre si, ultrapassam Drogo e não pensam nele. Eles o deixam para trás. Ele os observa desaparecer na distância, perplexos, presos de suas dúvidas habituais: será que ele realmente cometeu um erro? Talvez ele seja um mortal comum para quem apenas um destino medíocre está reservado? pp. 188-189.

Quando finalmente, após décadas de espera, os tártaros marcham, Drogo está enfermo. Demasiado velho para o combate, recebe ordens para deixar a fortaleza para dar espaço aos soldados mais jovens e ao novo comando. No trajeto para a cidade, morre sozinho em um albergue.

O livro lembra tanto Esperando Godot de Samuel Beckett e o filme (indevidamente esquecido atualmente) Dança com Lobos (1990) direção de Kevin Costner e baseado também em um livro, no caso de Michael Blake. A ansiedade da espera, o tédio da rotina, a crença que há algo maior são temas comuns a essas obras. Do mesmo modo o autor, o italiano Dino Buzzati (1906-1972), conseguiu apreender nessa estória as prisões institucionais e psicológicas da modernidade. Jornalista, Buzzati teria concebido o romance durante as jornadas noturnas no diário onde trabalhava.

É de dar dó a vida perdida de Drogo. É similar à ansiedade daqueles que vivem esperando uma ilusória dominação tramada em uma cabal para destruir a família, a pátria e a fé. Mal percebem que ao elegerem a prisão dessa ansiedade abrem mão de muito do convívio desta mesma família. A pátria os dispensará quando não forem mais úteis e direcionaram a fé para algo vazio. A cada “guerra cultural” esperam triunfar, mas sabe lá seus destinos. Também é similar à espera daqueles que condicionam sua plenitude da vida a um evento que está por vir. Repetem para si o mantra “quando conseguir isso ou aquilo, então estarei bem”. Focados no produto, esquecem do processo.

SAIBA MAIS

Buzzatti, Dino. The Tartar Steppe. Canongate Books, 2012.

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