O perspicaz Lima Barreto retratou formidavelmente a sanha por títulos acadêmicos no país. Tal como na satírica Bruzundanga, no país da piada pronta ter um título vale mais que ser cidadão. É a garantia de não ser confundido com um reles mortal.
Isso explica a mentira descarada no CV. Não é preciso ser honesto, nem parecer. Basta atualizar o Lattes com o título nobiliárquico que convier e galgar a um cargo comissionado ou de ministro.
Há ainda uma barreira para manter os excluídos no andar de baixo. A burocracia educacional, a didática escolástica e a desvalorização do aprendizado independente afastam das universidades gente capacitada, criativa e que muito contribuiria ao país. No lugar disso, temos universidades pública que funcionam como prova de resistência: recebem o diploma quem sobrevive ao ônus de se manter por longos anos letivos. O mérito do diploma deve-se mais ao esquentar bancos em sala de aula que ao estímulo à curiosidade. Temos também fábricas de diplomas privadas custeadas com dinheiro público e suor de exatamente a quem menos tenha condição de pagar. Em comum, formam portadores de diplomas, mas com poucas habilidades ou já obsoletos.
O que importa é o diploma.
E por não crerem no ensino superior, todos se sentem igualmente qualificados a opinarem. São milhões de pessoas que ao mesmo tempo são médicos, engenheiros, teólogos, politólogos, cientistas e economistas. Cada uma delas possui suas fórmulas mágicas para qualquer coisa. Nesse império do amadorismo, a confiança nas instituições desandam, a produtividade cai e as relações de favores predominam.
Para quê contratar um arquiteto? Basta pedir para aquele sobrinho que manja bem de desenho fazer um croqui. Projeto estrutural ou acompanhar a obra? Paga-se uma cerveja pro colega da filha assinar os papéis. Problemas na justiça? Sempre tem um conhecido que pode dar uma olhadinha no processo a custo zero.
Lima Barreto terminou suas crônicas sobre Os Bruzungandas em 1917, mas somente seriam publicadas em livro em 1922. Um século mais tarde, a obra continua atualíssima em um país com 33 profissões regulamentadas, 79 graduações (sem contar as variações de designação) e com 1.670 faculdades de Direito (Portugal tem 8 e Estados Unidos 237).
Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito
literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. Digo — “caracteriza”, porque, como os senhores verão no correr destas notas, não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago das cousas que fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm, de querê-las totalmente, de absorvê-las. Só querem a aparência das cousas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina que eles pretendem exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser doutor; [1]
(…)
A nobreza da Bruzundanga se divide em dois grandes ramos. Talqualmente como na França de outros tempos, em que havia a nobreza de Toga e a de Espada, na Bruzundanga existe a nobreza doutoral e uma outra que, por falta de nome mais adequado, eu chamarei de palpite.
A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas, chamadas superiores, que são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Há de parecer que não existe aí nenhuma nobreza; que os cidadãos que obtêm títulos em tais escolas vão exercer uma profissão como outra qualquer. É um engano. Em outro qualquer país, isto pode se dar; na Bruzundanga, não.
Lá, o cidadão que se arma de um título em uma das escolas citadas, obtém privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos costumes. O povo mesmo aceita esse estado de cousas e tem um respeito religioso pela sua nobreza de doutores. Uma pessoa da plebe nunca dirá que essa espécie de brâmane tem carta, diploma; dirá: tem pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é de um medíocre papel de Holanda.
As moças ricas não podem compreender o casamento senão com o doutor; e as pobres, quando alcançam um matrimônio dessa natureza, enchem de orgulho a família toda, os colaterais, e os afins. Não é raro ouvir alguém dizer com todo o orgulho:
— Minha prima está casada com o doutor Bacabau.
Ele se julga também um pouco doutor. Joana d’Arc não enobreceu os parentes?
A formatura é dispendiosa e demorada, de modo que os pobres, inteiramente pobres, isto é, sem fortuna e relações, poucas vezes podem alcançá-la.
Cousa curiosa! O que mete medo aos candidatos à nobreza doutoral, não são os exames da escola superior; são os exames preliminares, aqueles das matrículas que constituem o nosso curso secundário…
Em geral, apesar de serem lentos e demorados, os cursos são medíocres e não constituem para os aspirantes senão uma vigília de armas para serem armados cavaleiros.
O título — doutor — anteposto ao nome, tem na Bruzundanga o efeito do — dom — em terras de Espanha. Mesmo no Exército, ele soa em todo o seu prestígio nobiliárquico. Quando se está em face de um coronel com o curso de engenharia, o modo de tratá-lo é matéria para atrapalhações protocolares. Se só se o chama tout court— doutor Kamisão —, ele ficará zangado porque é coronel; se se o designa unicamente por coronel, ele julgará que o seu interlocutor não tem em grande consideração o seu título universitário-militar.
Os prudentes, quando se dirigem a tais pessoas, juntam os dois títulos, mas há ainda aí uma dificuldade na precedência deles, isto é, se se devem designar tais senhores por — doutor coronel — ou — coronel doutor. Está aí um problema que deve merecer acurado estudo do nosso sábio Mayrinck. Se o nosso grande especialista em cousas protocolares resolver o problema, muito ganhará a fama da inteligência brasileira.
Quanto aos costumes, é isto que se observa em relação à nobreza doutoral. Temos, agora, que ver no tocante às leis.
O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes crimes. Ele não pode ser preso como qualquer do povo. Os regulamentos rezam isto, apesar da Constituição, etc., etc.
Tendo crescido imensamente o número de doutores, eles, os seus pais, sogros, etc., trataram de reservar o maior número de lugares do Estado para eles. Capiciosamente, os regulamentos da Bruzundanga vão conseguindo esse desideratum.
(…)
Certo dia li, nos atos oficiais do Ministério de Transportes e Comunicações daquele país, o seguinte:
“F., amanuense dos Correios da província dos Cocos, pedindo fazer constar de seus assentamentos o seu título de doutor em medicina. — Deferido”.
O pedido e o despacho dispensam qualquer comentário; e, por eles, todos podem aquilatar até que ponto chegou, na Bruzundanga, a superstição doutoral. Um amanuense que se quer recomendar por ser médico, é fato que só se vê no interessante país da Bruzundanga.
Outros casos eloqüentemente comprobativos do que venho expondo, posso ainda citar.
Vejamos.
Há pouco tempo, no Conselho Municipal daquele longínquo país, votou-se um orçamento, dobrando e triplicando todos os impostos. Sabem os que ele diminuiu? Os impostos sobre os médicos e advogados. Ainda mais.
Quando se tratou de organizar uma espécie de serviço militar obrigatório, o governo da Bruzundanga, não podendo isentar totalmente os aspirantes a doutor, consentiu que eles não residissem e comessem nos quartéis, no intuito piedoso de não lhes interromper os estudos. Entretanto, um caixeiro que fosse sorteado perderia o emprego, como todo e qualquer empregado de casa particular.
Há nessa nobreza doutoral uma hierarquia como em todas as aristocracias. O mandarinato chinês, ao qual muito se assemelha essa nobreza da Bruzundanga, tem os seus mandarins botões de safira, de topázio, de rubi, etc. No país em questão, eles não se distinguem por botões, mas pelos anéis. No intuito de não fatigar os leitores, vou dar-lhes um quadro sintético de tal nobreza da Bruzundanga com a sua respectiva hierarquia colocada em ordem descendente. Guardem-no bem. Ei-lo, com as pedras dos anéis:
Médicos (Esmeralda)
Advogados (Rubi)
Engenheiros (Safira)
Doutores Engenheiros militares (Turqueza)
Engenheiros geógrafos (Safira e certos sinais no arco do anel)
Farmacêutico (Topázio)
Dentista (Granada).
Em linhas gerais, são estas as características mais notáveis da nobreza doutoral da Bruzundanga. Podia acrescentar outras, sobre todos os seus graus. Lembrarei, porém, ao meu correspondente que os três primeiros graus são mais ou menos equivalentes; mas os três últimos gozam de um abatimento de 50% sobre o conceito que se faz dos primeiros.[2]
(…)
A nobreza dos doutores se baseia em alguma cousa. No conceito popular, ela é firmada na vaga superstição de que os seus representantes sabem; no conceito das moças casadeiras é que os doutores têm direito, pelas leis divinas e humanas, a ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se escuda no direito que têm os seus filhos graduados nas faculdades em trabalhar pouco e ganhar muito.
Enfim, em falta de outra qualquer base, há o tal pergaminho, mais ou menos carimbado pelo govêrno, com um fitão e uma lata de prata, onde há um selo, e na tampa uma dedicatória à dama dos pensamentos do gentil cavalheiro que se fez doutor.[3]
(…)
De forma que os filhos dos poderosos fazem os pais desdobrar bancas de
exames, pôr em certas mesas pessoas suas, conseguindo aprovar os pequenos em aritmética sem que ao menos saibam somar frações, outros em francês sem que possam traduzir o mais fácil autor. Com tais manobras, conseguem sair-se da alhada e lá vão, cinco ou seis anos depois, ocupar gordas sinecuras com a sua importância de “doutor”
Há casos tão escandalosos que, só em contá-los, metem dó.
Passando assim pelo que nós chamamos preparatórios, os futuros diretores da República dos Estados Unidos da Bruzundanga acabam os cursos mais ignorantes e presunçosos do que quando para lá entraram. São esses tais que berram: “Sou formado! Está falando com um homem formado!” Ou senão quando alguém lhes diz:
— “Fulano é inteligente, ilustrado…”, acode o homenzinho logo:
— É formado?
— Não.
— Ahn!
Raciocina ele muito bem. Em tal terra, quem não arranja um título como ele obteve o seu, deve ser muito burro, naturalmente.
(…)
A nobreza doutoral, lá, está se fazendo aos poucos irritante, e até sendo hereditária. Querem ver? Quando por lá andei, ouvi entre rapazes este curto diálogo:
— Mas T. foi reprovado?
— Foi.
— Como? Pois se é filho do doutor F.?[4]
FONTES
[1] Capítulo especial: Os Samoiedas
[2] Capítulo II: A Nobreza de Bruzundanga
[3] Capítulo III :A Outra Nobreza da Bruzundanga
[4] Capítulo VI: O Ensino na Bruzundanga
