Que glória é esta de mostrar ao mundo, em vez de grandes homens grandes rios?
Tobias Barreto.
Voltar a Tobias é progredir. Graça Aranha
Tobias Barreto de Meneses (1839 –1889)
O filho ilegítimo de um tabelião de Vila de Campos do Rio Real (a qual seria renomeada com justa homenagem como Tobias Barreto) foi criado pela mãe solteira Emerenciana Meneses e a avó no interior do Sergipe.
Autodidata, aprende alemão e latim. Aos dezoito anos consegue uma vaga de professor de latim em Itabaiana. Nessa cidade, um juiz admirado pela sua sagacidade o recomenda para o seminário em Salvador.
Na Bahia partilha o quarto com o futuro crítico literário Sílvio Romero. Expulso do seminário pela sua vida boêmia, vai a Recife em 1862 com planos de estudar direito. Ao chegar à cidade com uns parcos mil-réis no bolso leva um coice de mula e passa dias acamado. No ano seguinte ainda pegou varíola. Inicia vida de intelectual pobre-mas-inteligente no Recife, sobrevivendo com aulas particulares.
Em 1864 começa seus estudos e atrai um círculo de amigos interessados pela poesia, o qual seria a futura Escola do Recife. Contribuiu com vários periódicos estudantis e era popular com seu violão.
Um dos últimos românticos, foi poeta condoreiro. Ficou notório seu duelo de poesia com Castro Alves. No melhor da tradição repentista, debateu em versos com o baiano pela honra de suas respectivas musas em pleno auditório do teatro.[1]
Nessa fase adere inicialmente ao ecletismo espiritualista de Cousin e Jouffroy. Mais tarde adota o positivismo comteano e de Littré.
Uma oportunidade de estabilidade apareceu com os concursos. Concorreu à vaga de professor de latim na Faculdade de Direito, mas perdeu. Concorreu a uma cadeira de filosofia no Ginásio Pernambucano, mas a perdeu para José Soriano de Souza, o pensador reacionário neotomista.
As coisas melhoraram quando se formou e casou-se com uma filha de um coronel e senhor de engenho em Escada, próximo a Recife, em 1869. Deu até para manter por uma década um jornal em alemão para atender o amplo público interessado pelas novidades do pensamento germanófono dos rincões nordestinos (provavelmente ele era um dos únicos leitores de seu jornal). Casado com Grata Mafalda dos Santos, exerceu funções de curador de órfãos e escravos e de juiz substituto. Já inserido na elite, é eleito deputado provincial.
Como deputado, envolveu-se em polêmicas como conceder bolsa para uma mulher estudar medicina nos Estados Unidos e fazer um projeto de uma escola pública para mulheres.
Passa a esposar o monismo e evolucionismo de Ernst Haeckel, mas se afeiçoa com as versão de haeckelianismo finalista do discípulo Ludwig Noiré. Expressa um paradoxal monismo dualista.
Logo entraria em apuros. Pioneiro em afirmar que os escravos eram sujeitos de direito, comprou briga com a oligarquia algodoeira e canavieira. Alforriou os escravos que compunham o espólio de seu sogro João Felix dos Santos à revelia dos outros herdeiros. Assim, saiu meio que corrido de Escada em 1881, mas com vistas a um cargo na prestigiosa Faculdade de Direito do Recife.
O exame público do concurso foi outro duelo verbal contra os professores atávicos. De um lado tomistas lusófilos e positivistas francófonos, de outro, Tobias Barreto. O concurso melou. Foi necessário intervenção do imperador para assumir como professor extraordinário. Não eram somente suas ideias novas que incomodavam, sua condição de mulato era ofensiva aos colendos docentes da Faculdade e orgulho para o mestiço sergipano.
Por cinco anos foi um professor popular. Entre seus colegas, admiradores e alunos incluíam Sílvio Romero, Clóvis Bevilácqua, Graça Aranha, Capistrano de Abreu, Izidoro Martins Júnior, Araripe Júnior e Farias Brito.
Nessa fase madura, reavalia o pensamento de Kant, então reexaminados pelos neo-kantianos das escolas do sudoeste alemão.
Alcança a categoria de professor titular pouco antes de sua morte.
Foi o patrono da cadeira 38 da Academia Brasileira de Letras, indicado pelo seu primeiro ocupante, o outro germanófilo e seu ex-aluno Graça Aranha.
O pensamento de Tobias Barreto
O pensador da peculiar escola teuto-sergipana, conforme insinuação de Carlos de Laet, flertou com várias vertentes filosóficas em voga. Nem por isso deixou de ser original.
Seu monismo dualista seria uma união hipotástica, digamos, entre causas e fins. Tentando conciliar contradições entre um determinismo materialista e um libertarismo kantiano, propõe que a liberdade do mundo cultural coexiste unida com as motivações deterministas das mecânicas do mundo natural.
Como jurista foi expositor da jurisprudência dos conceitos de Ihering. Deve ser lembrando como o iniciador dos direitos autorais no Brasil, visto que antes somente havia direito editorial. Opô-se tenazmente tanto ao jusnaturalismo dos egressos de Coimbra quanto juspositivismo francês da escola da exegese e uma sociologia do direito em base no positivismo comteano. Alinhado com o historismo alemão, via o direito como produto da história e da cultura de um povo. Foi o introdutor no Brasil do pensamento jurídico alemão, então (e ainda hoje) na vanguarda da reflexão acadêmica do Direito da tradição civil romano-germânica.
Livre-pensador com uma postura anticatólica e antimonarquista comprava brigas adoidado. O artigo “Teologia e Teodiceia não são ciências” provocou a ira da intelectualidade católica. Escrevia junto de Franklin Távora e Minervino Souza Leão para o jornal O Americano, sob os pseudônimos Jéferson, Hamiltom e Monroe, reproduzindo as táticas panfletárias do The Federalist Paper. Contudo, não foi um republicano militante, tampouco quis se envolver com a Questão Religiosa.
Agnóstico hesitante, considerava a religião como fator necessário para a integração espiritual do homem. Antecipa as críticas às teses de secularização da modernidade que no final do século XX seriam desconfirmadas pela sociologia da religião.
A Escola do Recife
Recife foi cenário de uma efervescência de ideias durante o século XIX. Lá se digladiaram o reacionarismo iluminista do bispo Azeredo Coutinho, o socialismo eclético de Antônio Pedro de Figueiredo, o Cousin fusco, com o radicalismo liberal monarquista de Abreu e Lima, a mentalidade liberal praieira, o neo-tomismo reacendido pela encíclica Aeterni Patris do papa Leão XIII, o ultramontanismo de Soriano Souza. Porto de entrada de missionários protestantes e comerciantes ingleses, a imprensa local alimentava várias polêmicas religiosas. O abolicionismo da juventude aristocrática bacharelesca incomodava os senhores de engenho.
As livrarias e folhetins recifenses alimentavam-se com as modas intelectuais europeias, mas o grupo de Tobias realizou uma troca de Portugal e França pela Alemanha. Deram a conhecer no Brasil Eduard von Hartmann, Rudolf von Ihering, Kant e Haeckel.
Meio a esse pluralismo, a Escola do Recife nasceu como um coletivo de poesia e crítica literárias. A discussão das ideias importadas foram digeridas. Nela se debateram o monismo evolucionista haeckeliano, o darwinismo, evolucionismo social de Spencer, o neokantianismo, o ecletismo espiritual, o positivismo comteano, dentre outros. Apesar dessa xenofilia, a Escola do Recife seria um exemplo da antropofagia cultural, constituindo uma genuína escola de pensamento brasileira.
Foi Sílvio Romero notou a singularidade intelectual dos círculo de amigos de Barreto e nomeou-a Escola do Recife.
Entre os integrantes de destaque estavam Tobias Barreto, Martins Júnior, Sílvio Romero, Clovis Bevilácqua, Arthur Orlando Fausto Cardoso e Graça Aranha. Era um grupo heterogêneo. Nem todos compartilhavam as mesmas ideias de Tobias Barreto, mas a concepção de integrar cultura com fatores sociais e materiais para efetivar propostas específicas permearia em todos esses pensadores.
A Escola do Recife foi pioneira no Brasil em exposição filosófica em ensaios. Suas constantes polêmicas consolidaram um culturalismo que tentava conciliar com o cientificismo naturalista sem negar a liberdade humana. Religiosamente progressista, desconfiavam do ultramontanismo anti-modernista. Abolicionistas e republicanos, o liberalismo da Escola do Recife contrastava com o positivismo carioca ou progressismo dos filhos da nobiliarquia cafeeira paulista. Seus textos refletem esses embates.
Os ensaios passaram a ser padrão para o gênero de escrita sobre a interpretação do Brasil. Questões de identidade nacional ou dos problemas do país ganharam análises multidisciplinares bem informadas com os processos sociais e históricos. Anteriormente os relatos de cronistas e viajantes bem como as argutas observações de literatos faziam ou panoramas sem grande embasamento explicativo ou críticas pontuais. Planos de soluções políticas como Bonifácio ou de arquitetar um referencial teórico particularmente brasileiro como von Martius faltavam sólidas bases empíricas e tratamentos sistemáticos. Com os ensaios oriundos da Escola do Recife surgem verdadeiros programas para interpretar o país e o transformar.
A Escola do Recife ramificou seus interesses para objetos sociológicos, etnológicos, literários, políticos e jurídicos. Na valorização nacional, viram com bons olhos a mestiçagem. Procuram refletir em um projeto nacional de crescimento social, econômico e político do país.
A Escola do Recife propiciou a agenda de outros intelectuais. Na questão social, abolicionista e racial dos africanos no Brasil há reflexos em Joaquim Nabuco, Nina Rodrigues, Ulysses Pernambucano, Gonçalves Fernandes e Gilberto Freyre. Nas causas contra a desigualdades, há reflexos em Paulo Freire, em Francisco Julião e no nacional-desenvolvimentismo de Celso Furtado. Tanto na estética como nas temáticas regionais com escopos universais, a Escola do Recife antecede o Movimento Armorial de Ariano Suassuna e o Movimento Manguebeat de Chico Science. Suas questões tiveram respostas alternativas por um contemporâneo da Escola do Recife, o singular Raimundo Farias Brito.
Juridicamente, a Escola do Recife foi a raiz do monumental Código Civil de Clovis Bevilácqua. O Código Civil vigorou por quase um século, inspirado em seu correspondente alemão, até ser substituído pelo código de Miguel Reale. A própria escola filosófica e jurídica de Miguel Reale, o culturalismo, presta homenagem e reconhece na Escola de Recife sua antecessora.
Obras de Tobias Barreto
- Glosas heterodoxas a um dos motes do dia, ou variações antissociológicas (1864)
- Amar (1866)
- O Gênio da Humanidade (1866)
- A Escravidão (1868)
- Sobre a religião natural de Jules Simon (1869)
- Que Mimo (1874)
- Brasilien, wie es ist (1876)
- Ensaio de Pré-História da Literatura Alemã (1879)
- Filosofia e Crítica (1879)
- Estudos Alemães (1879)
- Dias e Noites (1881)
- Menores e Loucos no Direito Criminal (1884)
- Discursos (1887)
- Questões vigentes de filosofia e de Direito (1888)
- Estudos de Direito (1898)
- Polêmicas (1901)
SAIBA MAIS
ATAÍDE, Regina Alves; MELO, Maria Adélia Gomes Correia de; SÁ, Vera Borges de. Jornais de Bacharéis da Escola do Recife como Espaço de Sociabilidade no Século XIX: a produção de Tobias Barreto. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Natal – RN – 2 a 4/07/2015.
BARRETO, Luiz Antônio. Tobias Barreto e seus seguidores. Gazeta de Sergipe. Artigos publicados de 4 a 22 de março de 1989.
BARRETO, Tobias. Estudos de Filosofia, parte I e II. 2. ed. Rio de Janeiro: INL e Grijalbo, 1977.
BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012.
CAMPOS, Virgílio. Tobias Barreto e a revolução jurídica alemã: a influência de Von Jhering no pensamento Tobiático. Recife, 1988.
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO. Tobias Barreto. http://www.cdpb.org.br/antigo/dic_bio_bibliografico_barretotobias.html
LARA, Tiago Adão. Tradicionalismo. Católico em. Pernambuco. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1988.
LIMA, Hermes. O Pensamento Vivo de Tobias Barreto. Livraria Martins Editora. 1943
LIMA, Hermes. Tobias Barreto: A época e o Homem. Companhia Editora Nacional: Rio de Janeiro, 1939.
MERCADANTE, Paulo; PAIM, Antônio. Tobias Barreto na Cultura Brasileira: uma reavaliação. São Paulo: EdUSP, 1972.
MONT’ALEGRE, Omer. A Vida Admirável de Tobias Barreto. Casa Editôra Vecchi, 1951.
PAIM, Antonio. A Escola do Recife. Estudos Complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil. Londrina: UEL, 1999.
PAIM, Antonio. A filosofia da escola do Recife. Rio de Janeiro, Saga, 1966.
SCHMITZ FILHO, Ricardo Sérgio. Tobias Barreto, a Escola do Recife e o pioneirismo na elaboração de uma filosofia jurídica brasileira. Monografia de Bacharelado em Direito. Universidade Federal de Pernambuco, 2017. https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/21792
TOBIAS Barreto de Meneses. Projeto Memória Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife. https://www.ufpe.br/memoriafdr/biografias
VEIGA, Gláucio. História das ideias da Faculdade de Direito do Recife — A Escola do Recife. Recife: o autor, 1997.
NOTAS
[1] E pensar que trocamos poesia por gente má educada que conversa alto no cinema hoje.
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Referência:
ALVES, Leonardo Marcondes. Tobias Barreto e a Escola do Recife. Ensaios e Notas, 2020. Disponível em: https://wp.me/pHDzN-1pM . Acesso em: 20 jul. 2020.