A escrita como um método de inquirição

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O escritor Evgeny Chirikov, de Ivan Kulikov, 1904

As pessoas escrevem por variados motivos. Entretanto, são raras as pessoas que consideram escrever como um método investigativo.

A fórmula padrão da pesquisa científica é coletar dados, analisá-los e, por fim, redigir sobre o estudo. Contudo, o processo da escrita em si – mesmo em assuntos “sérios” não ficção – é um exercício de esclarecer o pensamento, organizar a informação e analisar dados.

A cientista social Laurel Richardson (2000) aponta que a escrita é antes uma performance criativa em vez de ser um espelho. A escrita não se reduz a uma mera representação, mas se concretiza na própria falha em não registrar totalmente seu objeto.

No processo da escrita o autor escolhe quais tópicos aprofundar e quais coisas deixar fora. Nessa escolha, decide qual ângulo empregar para transformar dados (estruturados ou não) e anotações em texto. Filtra também quais enunciados estão implícitos para não os expressar, considerando uma comunhão de conhecimentos tácitos com seu público-alvo. Adicionalmente, deixa de fora alguns aspectos de sua pesquisa, consciente ou não, por vieses, falta de espaço, dificuldade de compreensão ou qualquer outro motivo. Richardson (2000) chama esse processo de “word the world”[1] .

A atenção ao processo da escrita para a pesquisa é notória desde o seminário sobre a redação etnográfica organizado pela School of American Research em Santa Fé, Novo México, em abril de 1984. Na coletânea resultante (CLIFFORD, MARCUS, 1986), há críticas às pretensões de objetividade nas descrições científicas. Essa postura, tida como pós-moderna, relativista ou questionadora da possibilidade de um conhecimento científico, propõe como alternativas a autoconsciência e a reflexão do autor sobre seu processo de escrita.

As críticas de Clifford e Marcus (1986) podem parecer desalentadoras. Entretanto, há métodos que garantam uma comunicação acurada do conhecimento.

Uma abordagem é considerar a escrita como a cartografia. Ao fazer um mapa, o cartógrafo escolhe quais traços e características registrar, pois – como no conto de Borges – é impossível e inútil um mapa superacurado na escala 1:1 ou maior. Assim, embora um mapa distorça a realidade, ele produz uma realidade com alguns dos detalhes selecionados. Donna Haraway (1992) concebe a conceituação teórica e a redação como uma atividade de fazer mapas e anotar um diário de viagens: um tanto performativo quanto exploratório.

Outra abordagem é considerar os aspectos narrativos dos textos produzidos durante a pesquisa. O método da Pesquisa Narrativa (CLANDININ; CONNELLY, 2015) busca tanto nas histórias e narrativas dos informantes quanto na memória e recontagem das histórias dos participantes e pesquisadores. O pesquisador passa a interpretar textos e a criar um novo texto, cotejando-o com suas experiências de campo, com o material coletado, com as questões e seu papel na pesquisa e visão de mundo.

NOTA

[1] Perde-se o trocadilho na tradução, mas seria verter o mundo em palavras.

SAIBA MAIS

CLANDININ, D. Jean. CONNELLY, F. Michael. Pesquisa narrativa: experiências e história na pesquisa qualitativa. 2a ed. Uberlândia: EDUFU, 2015.

CLIFFORD, James; MARCUS, George E. (org.). Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.

HARAWAY, Donna J.. The Promises of Monsters: A Regenerative Politics for Inappropriate/d Others. Em: GROSSBERG, Lawrence; NELSON, Cary; Treichler, Paula A. Cultural Studies. New York: Routledge, 1992.

RICHARDSON, Laurel. Writing: A Method of Enquiry. Em: DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna S. The Sage Handbook of Qualitative Research. Thousand Oaks: SAGE, 2000. Pp 923 – 949. Veja também: Richardson, L. (2002). Writing Sociology. Cultural Studies ↔ Critical Methodologies, 2(3), 414–422. https://doi.org/10.1177/153270860200200311

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