Uberismo

O quarto paradigma da produção industrial baseia-se também em uma empresa automobilística, porém não produz nada. Esse é o fato que melhor representa esse sistema organizacional de gestão difusa, bem representado pela Uber.

Para representar esse sistema, tenhamos em mente uma historinha cheia de anglicismos:

Um designer freelance deixa sua estação de trabalho em uma sala de coworking e pega um Uber para ir para casa. Que coincidência! O motorista é seu chefe e contratante que faz um bico fazendo corridas. Como não mora na cidade, o designer pousa em um quarto alugado via Airbnb. Pede comida com outro aplicativo. No currículo mentiu que sabia fazer programação. Mas não tem problema. Terceirizou a parte computacional para um desenvolvedor na Índia. Tem um pouco de dificuldade com o inglês, aprendido online, mas dá para o gasto para comunicar com o independent contractor. Outsourcing é uma necessidade. Ele é um empresário pj, mas na prática vive de projeto em projeto. Nos finais de semana caça algum serviço rápido, quem sabe retocar umas fotos de casamento, enquanto torce para o crowdfunding de seu projeto de graphic novel que o levará à fama viral. Finalmente sairá dos ciclos entre dias de maratonas no Netflix e dias com trabalhos para três clientes ao mesmo tempo.

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Contexto sociocultural

A globalização no final do século XX assumiu vários aspectos. Novas tecnologias reverberaram na logística, nas comunicações e nos sistemas de informação. Junto à tecnologia, a estabilização política pós-Guerra Fria consolidou blocos econômicos regionais, tratados multilaterais e avanços no direito internacional privado. Com esses fatores, passou a ser viável distribuir a cadeia produtiva em vários países.

Esse modelo permitiu uma industrialização multinacional. Tipicamente, uma empresa com sede legal nas Ilhas Cayman tem sua sede operacional em Nova Iorque, centro de capitação financeira na City em Londres, design feito em Copenhague, insumos vindos do Brasil, peças produzidas na China, montagem no México, distribuição em Frankfurt, marketing executado por Johanesburgo, serviço de atendimento ao consumidor em Nova Delhi. Em tal operação de alcance transcontinental, ficaria inviável realizá-la sob a mesma organização. As cadeias de suprimentos facilitadas por um sistema financeiro global colocaram diferentes interessados sob os vínculos de relação comercial: o comércio é o intermediário de cada elo. O controle das obrigações em cada passo é feito principalmente pelo dinheiro.

A reorientação dos valores nas novas gerações preparou o público para a uberização. As gerações influenciadas pela indústria cultural hollywoodiana compartilham dos valores do California lifestyle: são mais individualistas, estão acostumadas em medir o sucesso com o dinheiro e consumo ostensivo, além de quererem o enriquecimento rápido com o menor custo de oportunidade. A perda de fé nas instituições também afeta essa geração, fazendo-a aberta a novos modelos de negócios e produtos alternativos.

A impessoalidade das relações produtivas globais acarreta na reorganização do trabalho. A precarização das relações laborais internacionalmente fez surgir nas sociedades urbanas uma massa populacional com relativa educação, mas com problema crônico de um emprego seguro. Com essa reserva de mercado emergiu a mão-de-obra disposta a customizar o trabalho e consumo. Aceitando salários baixos, essa mão-de-obra aposta com a mesma fé em loterias ou em esquemas de pirâmides na esperança que ao menos um deles terá sucesso a ponto de ser milionário.

O renascimento de economias de trocas, especialmente em estados pós-industriais preparou caminho para a economia compartilhada via internet. Já na década de 1990 apareceu na Argentina o RGT (Red Global de Trueque), um sistema popular de escambo de produtos e serviços. Mercados de pulgas e feiras de artesanatos também alimentaram a aceitação desses sistemas. Por fim, cooperativas ou clube de compras possibilitaram conjugar os interesses de consumidores por vezes desconhecidos entre si.

A economia compartilhada ou em redes sociais tenta cortar intermediários ou agregar-lhe valor. O marketing multilateral, tanto legítimo quanto esquemas fraudulentos, funciona com essa estrutura. O modelo Netflix de transmissão direta pela internet de filmes eliminou videolocadoras e outros intermediários. A Tesla é outro modelo de venda direta. Seus carros elétricos e híbridos são vendidos em website enquanto uma rede de lojas-vitrines em shopping faz o marketing sem vender nada, contornado as complexas leis de vendas de automóveis dos estados dos EUA. Sem contar programas de bônus para indicação de clientes e para a recompra de seus carros, engajando os próprios consumidores no processo de marketing e vendas.

Se a economia compartilhada é impessoal; porém, é uma economia conectada em rede. Depois da bolha das empresas ponto-com no final da década de 1990, o mercado de informação foi monopolizado por gigantes com Google, Apple, Facebook e Amazon – o GAFA. A infraestrutura informacional desses mamutes adequou-se bem à era dos smartphones. Assim, em boa parte do mundo as pessoas estão potencialmente 24 horas conectadas. Com tanta gente olhando e interagindo com a telinha, é normal de se esperar que emergisse um mercado de trabalho tanto quanto um mercado consumidor e produtor.

O modelo industrial terceirizado e global foi transferido da cadeia produtiva da indústria para os serviços. Aliás, com os modelos de faça-você-mesmo (DIY), até a produção passou a ser transferida para os consumidores. Surgiu a figura do prosumer: o consumidor produtor, como na Wikipédia, cujos leitores também podem ser autores e editores. Empresas como a Ikea vendeu a ideia que era divertido e sociável montar seus próprios móveis. O trabalhador é também empreendedor, com diferentes graus de sucesso e estabilidade. Com os limites borrados entre a produção (indústria) circulação e consumo, faz sentido ver a logística como atividade industrial de transformadora, daí o Uber.

Características e vantagens

Em suma o modelo Uber pode ser caracterizado pela gestão simbólica da marca na logística e na tecnologia da informação em sua atividade econômica. A produção, circulação ou consumo de um produto ou serviço fica difusa entre fornecedores autônomos e consumidores diretos. A organização não é responsável pela oferta nem pelo consumo, servindo apenas como um pregão em tempo real para o mercado.

O capital simbólico é o maior patrimônio desse modelo. Junto de uma logística e um sistema de informações, a tríade do sucesso no modelo Uber é a manipulação do poder simbólico. A marca (branding para os antenados) reorienta produtores e consumidores. A capacidade em se tornar viral nas redes sociais deu poder às organizações que souberam fazer maior e melhor uso das mídias virtuais. O papel dos influenciadores, os quais ocupam um espectro desde amadores até apresentadores que contam com uma equipe de produção, dita as tendências no Youtube, Instagram e Twitter.

A realidade virtual e a realidade “real” interagem constantemente. Para isso, o modelo conta com uma miríade de redes sobrepostas, normalmente com uma fachada e canal online: PayPal, PagSeguro, Airbnb, Kickstarter, Vakinha, eBay (Mercado Livre), as lojas terceirizadas da Amazon, o Craigslist e OLX, sites de freelas e crowndfunding, grupos no Facebook e no Whatsapp, dentre outros.

O virtual passa a ter tanto poder que desafia o controle do estado. É o caso da Bbitcoin, moeda virtual baseada em uma contabilidade descentralizada.

Sendo um sistema difuso, o modelo Uber combina entre o privado e o comum. A empresa e os motoristas autônomos são detentores dos meios de produção, mas dependem de uma infraestrutura comunal (por vezes mantidos por outras empresas ou pelo Estado), como a telefonia, as vias públicas, os guardas de trânsito, a rede financeira virtual, a opinião pública dos usuários, dentre outros. Por essa razão, o que é vendido não é a propriedade sobre um bem, mas o acesso a ele. Por isso, dá-se também o nome de economia de acesso.

Essa combinação entre privado e comum, bem representadas pelas licenças de direitos autorais Creative Commons e o Copyleft, alimenta a inovação. O modelo Uber assimila as transformações sociais e tecnológicas rapidamente. Desse modo, é um sistema que valoriza a inovação. No geral, as inovações são incrementais, ou seja, pequenos acréscimos aos produtos e serviços já existentes. Consequentemente, a uberização consolidada na década de 2000 nas grandes metrópoles criam variações locais de produtos globais. Como o consumidor também consegue produzir com certa flexibilidade, não há compromissos nem com o design do produto ou modelo de negócios. Tão logo surge algo novo no mercado, uma dúzia de cópias aparecerão.

Apesar de capitalista no sentido de visar o lucro, a uberização divide características de economia de redistribuição existentes em várias sociedades pré-industriais e presente de forma alternativa no capitalismo industrial. Também assemelha à ideologia política e econômica do distributismo, proposta por G. K. Chesterton e Hillaire Belloc. Para esses pensadores britânicos, a cooperativa ou guilda de produtores e consumidores aliviaria os males do capitalismo. O pequeno produtor seria inserido na cadeia produtiva e possuiria o acesso aos próprios meios de produção.

Como em qualquer economia de redistribuição, os atores aceitam entrar em um jogo que eles não controlam. Com isso é baixo o controle dos meios de execução que ocorre somente se houver uma garantia de contraprestação. Como meio preventivo às fraudes e aos parasitas, a avaliação por pares serve como polícia e juiz. O sistema de pontuação por estrelas, testemunhos e sites como o reclameaqui disciplinam essas redes redistributivas. O episódio Nosedive do seriado Black Mirror retrata o papel, quase moeda, desse sistema de controle social.

Críticas

Embora seja uma economia redistributiva, trata-se ainda de uma adaptação do capitalismo ao que o sociólogo Zygmund Baumam chama de modernidade líquida. Desse modo, várias críticas a esse modo de produção possuem pertinência. Se elimina intermediário e evita gastos desnecessários, também o próprio sistema uberista aumenta as desigualdades. No topo, usufrutuam das benesses quem detém os poderes dos capitais simbólicos e tecnológicos. Em seguida estão os cooptados, aqueles adotaram o modelo cedo ou oferecem algum serviço essencial para manter o esquema funcionando. Por fim, uma massa de prossumers disputam o espaço e recursos. Às vezes conseguem vantagens com produtos e serviços baratos, às vezes amargam com os prejuízos e com os custos de externalidades.

A responsabilidade social dessas empresas é questionável. Se o mecanismo de venda direta utiliza sistemas públicos, subsidiados, como os Correios no Brasil, a EBCT não conseguiu comportar essa demanda ao mesmo tempo que perdeu renda com a comunicação quando as cartas ficaram obsoletas. Trânsitos congestionados com carros Uber competem com taxistas regulares que contam com custos operacionais geralmente maiores que o sistema flexível do aplicativo. Em médio prazo, a superexploração imediatista de recursos comuns podem levar a uma tragédia dos comuns. As alternativas de aumentar a regulamentação estatal ou liberar totalmente o mercado parecem não surtir efeitos.

Outra crítica ao modelo é estar assentado nos limites da lei. É o caso do uso de redes P2P para transmissão de arquivos pirateados. Adicionalmente, moedas ou canais de pagamentos virtuais servem ao contrabando e tráfico de produtos ilegais. A perda que isso acarreta às empresas estabelecidas ou o custo para o Estado coibir essas práticas não são computados no modelo de negócio uberizado. A propagação de marketing de guerrilha, desde fins políticos excusos até a venda de sucos milagrosos, propagam como um câncer nessas redes.

Não leva em conta também a erosão dos direitos trabalhistas e do consumidor. A precarização da mão-de-obra faz com que muitos envolvidos nessa economia nunca tenham férias, se superqualifiquem sem retornos e trabalhem jornadas absurdas semanalmente. Com muitos trabalhadores-empreiteiros com esse perfil, logo saem do mercado. Ou seja, pagam o preço de um sistema que os explora à exaustão. Quando a coisa vai seriamente mal, não se limita a uma compra online aquém da satisfação. Nos casos em que o consumidor é roubado, violentado, abusado, mutilado ou morto a empresa marca lança uma nota de pesar que também lembra que somente é o mensageiro. Não atirem.

A terceirização excessiva deixa o ônus ambiental principalmente para regiões com legislações e execuções mais frágeis. Não é à toa que o ar na China está irrespirável. A fome pela commodities ao tempo que utiliza somente partes ínfimas de matéria-prima é assustadora. Tem-se como resultado o acúmulo de lixo e o desperdício dos insumos e o sub-aproveitamento de energia.

Por fim, em uma economia de startups, nada há que seja sólido que não desmanche no ar. A tão aclamada inovação no geral pouco inova. Esses dias apareceu uma revolucionária startup com o audacioso plano de substituir os mercadinhos de bairro com uma mercearia self-service automatizada por um aplicativo de celular. Nada mais que uma máquina de venda automática que aceita pagamentos com o celular. Os inovadores no geral maquiam algo já existente, lançam uma marca, caçam investidores, contratam quase de graça desenvolvedores e promotores com a promessa de um sucesso futuro e cruzam os dedos para a onda pegar. Sem agregar complexidade à economia, tendem a quebrar logo.

* * *

Ainda é cedo para avaliar os impactos do uberismo. A capacidade de gerar valor de forma difusa seria um caminho para uma economia baseada no conhecimento. Facilitaria o acesso aos consumidores, reduzindo preços. Por outro lado, os danos passaram a ser públicos, enquanto os lucros, privados.

Dificilmente o uberismo dominará a totalidade da organização do capitalismo. Como esse sistema incorpora elementos da racionalização do fordismo e da flexibilidade dos modelos pós-fordistas (toyotismo e volvismo), ainda conviverá com outros modelos de produção industrial. No entanto, a formação do precariado como talvez a classe social predominante já é a realidade (Standing 2014).

Outras postagens sobre modelos de organização industrial

SAIBA MAIS

Standing, Guy. “The Precariat.” Contexts 13, no. 4 (November 2014): 10–12. https://doi.org/10.1177/1536504214558209.

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