CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Laemmert, 1902.
Uma das obras máximas da literatura brasileira, antecede tanto o jornalismo literário quanto as monografias interpretativas do Brasil informadas por análises sociais.
O autor, Euclides da Cunha (1866-1909), engenheiro militar por formação, era o enviado do O Estado de S.Paulo para cobrir uma revolta no sertão da Bahia em 1897.
À primeira vista, tudo era confuso. Seria uma insurreição de fanáticos seguidores de um beato estranho. Seria uma ressurgência de monarquistas contra a nascente progressista república. Seria uma insurreição de jagunços. Mas, Euclides da Cunhas transcendeu todas as impressões superficiais.
Ao retornar ao sul, estabeleceu-se em São José do Rio Pardo onde redigiu com um vocabulário incomum, com uma sintaxe cansativa e com uma erudição pernóstica a narrativa da guerra do fim do mundo, como Vargas Llosa a chamaria.
A roupagem científica, com a precisão do engenheiro, retratava uma crítica aos dois Brasis. De um lado estava o Brasil litorâneo que andava no bonde da história e exportava as riquezas enquanto recebia divisas. De outro lado, o Brasil interiorano seguia negligenciado, castigado pela seca e pelo mandonismo.
Ora simpático, ora preconceituoso, Euclides da Cunha retratou a terra, o homem e a luta — temas que dividem a obra.
A versão resumida abaixo dá para ler em 20 minutos e capturam o espírito do livro. O livro completo pode ser baixado aqui.
Quem quiser uma versão impressa, a edição crítica organizada por Walnice Nogueira Galvão foi publicada pela Ubu, com textos de José Veríssimo, Araripe Junior, Sílvio Romero, Gilberto Freyre, Antonio Candido, Olímpio de Souza Andrade, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Duglas Teixeira Monteiro, Franklin de Oliveira, José Calasans, Antônio Houaiss, Luiz Costa Lima, Roberto Ventura.
A TERRA
Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação anterior. Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes. A vegetação recama de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas os acervos de blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de convales, se ligam em curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.
Dilatam-se os horizontes. O firmamento sem o azul carregado dos desertos alteia-se, mais profundo, ante o expandir revivescente da terra.
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono. Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas — o espasmo assombrador da seca.
A natureza compraz-se em um jogo de antíteses.
O HOMEM
O sertanejo
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
Religião mestiça
Insulado deste modo no país, que o não conhece, em luta aberta com o meio, que lhe parece haver estampado na organização e no temperamento a sua rudeza extraordinária, nômade ou mal fixo à terra, o sertanejo não tem, por bem dizer, ainda capacidade orgânica para se afeiçoar a situação mais alta.
O círculo estreito da atividade remorou-lhe o aperfeiçoamento psíquico. Está na fase religiosa de um monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio e do africano. E o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas. Uma análise destas revelaria a fusão de estádios emocionais distintos.
A sua religião é como ele — mestiça.(…)
Considerando as agitações religiosas do sertão e os evangelizadores e messias singulares, que, intermitentemente, o atravessam, ascetas mortificados de flagícios, encalçados sempre pelos sequazes numerosos, que fanatizam, que arrastam, que dominam, que endoidecem. (…)
O homem dos sertões — pelo que esboçamos — mais do que qualquer outro, está em função imediata da terra. É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as tendências pessoais como que se acolchetam às vicissitudes externas, e deste entrelaçamento resulta, copiando o contraste que observamos entre a exaltação impulsiva e a apatia enervadora da atividade, a indiferença fatalista pelo futuro e a exaltação religiosa. Os ensinamentos dos missionários não poderiam exercitar-se estremes das tendências gerais da sua época. Por isto, como um palimpsesto, a consciência imperfeita dos matutos revela nas quadras agitadas, rompendo dentre os ideais belíssimos do catolicismo incompreendido, todos os estigmas de estádio inferior.
É que, mesmo em períodos normais, a sua religião é indefinida e vária. Da mesma forma que os negros Haúças, adaptando à liturgia todo o ritual iorubano, realizam o fato anômalo, mas vulgar mesmo na capital da Bahia, de seguirem para as solenidades da Igreja por ordem dos fetiches, os sertanejos, herdeiros infelizes de vícios seculares, saem das missas consagradas para os ágapes selvagens dos candomblés africanos ou poracês do tupi. Não espanta que patenteiem, na religiosidade indefinida, antinomias surpreendentes.
Quem vê a família sertaneja, ao cair da noite, ante o oratório tosco ou registro paupérrimo, à meia luz das candeias de azeite, orando pelas almas dos mortos queridos, ou procurando alentos à vida tormentosa, encanta-se.
O culto dos mortos é impressionador. Nos lugares remotos, longe dos povoados, inumam-nos à beira das estradas, para que não fiquem de todo em abandono, para que os rodeiem sempre as preces dos viandantes, para que nos ângulos da cruz deponham estes, sempre, uma flor, um ramo, uma recordação fugaz mas renovada sempre. E o vaqueiro, que segue arrebatadamente, estaca, prestes, o cavalo, ante o humilde monumento — uma cruz sobre pedras arrumadas — e, a cabeça descoberta, passa vagaroso, rezando pela salvação de quem ele nunca viu talvez, talvez de um inimigo.
A terra é o exílio insuportável, o morto um bem -aventurado sempre.
O falecimento de uma criança é um dia de festa. Ressoam as violas na cabana dos pobres pais, jubilosos entre as lágrimas; referve o samba turbulento; vibram nos ares, fortes, as coplas dos desafios; enquanto, a uma banda, entre duas velas de carnaúba, coroado de flores, o anjinho exposto espelha, no último sorriso paralisado, a felicidade suprema da volta para os céus, para a felicidade eterna — que é a preocupação dominadora daquelas almas ingênuas e primitivas.
Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo
É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária — Antônio Conselheiro…A imagem é corretíssima.
A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja. Esclarece o conceito etiológico da doença que o vitimou. Delineemo-la de passagem.
A partir de 1858 todos os seus atos denotam uma transformação de caráter. Perde os hábitos sedentários. Incompatibilidades de gênio com a esposa ou, o que é mais verossímil, a péssima índole desta, tornam instável a sua situação.
Em poucos anos vive em diversas vilas e povoados. Adota diversas profissões.
Nesta agitação, porém, percebe-se a luta de um caráter que se não deixa abater. Tendo ficado sem bens de fortuna, Antônio Maciel, nesta fase preparatória de sua vida, a despeito das desordens do lar, ao chegar a qualquer nova sede de residência procura logo um emprego, um meio qualquer honesto de subsistência. Em 1859, mudando-se para Sobral, emprega-se como caixeiro. Demora-se, porém, pouco ali. Segue para Campo Grande, onde desempenha as funções modestas de escrivão do juiz de paz. Daí, sem grande demora, se desloca para Ipu. Faz-se solicitador, ou requerente no forum.
Nota-se já em tudo isto um crescendo para profissões menos trabalhosas, exigindo cada vez menos a constância do esforço; o contínuo despear-se da disciplina primitiva, a tendência acentuada para a atividade mais irrequieta e mais estéril, o descambar para a vadiagem franca. Ia-se-lhe ao mesmo tempo, na desarmonia do lar, a antiga serenidade.
Este período de vida mostra-o, todavia, aparelhado de sentimentos dignos. Ali estavam, em torno, permanentes lutas partidárias abrindo-lhe carreira aventurosa, em que poderia entrar como tantos outros, ligando-se aos condutícios de qualquer conquistador de urnas, para o que tinha o prestígio tradicional da família. Evitou-as sempre. E na descensão contínua, percebe-se alguém que perde o terreno, mas lentamente, reagindo, numa exaustão dolorosa.
De repente, surge-lhe revés violento. O plano inclinado daquela vida em declive termina, de golpe, em queda formidável. Foge-lhe a mulher, em Ipu, raptada por um policial. Foi o desfecho. Fulminado de vergonha, o infeliz procura o recesso dos sertões, paragens desconhecidas, onde lhe não saibam o nome; o abrigo da absoluta obscuridade.
…E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão em que se apóia o passo tardo dos peregrinos…
É desconhecida a sua existência durante tão largo período. Um velho caboclo, preso em Canudos nos últimos dias da campanha, disse-me algo a respeito, mas vagamente, sem precisar datas, sem pormenores característicos. Conhecera-o nos sertões de Pernambuco, um ou dois anos depois da partida do Crato. Das palavras desta testemunha, concluí que Antônio Maciel, ainda moço, já impressionava vivamente a imaginação dos sertanejos. Aparecia por aqueles lugares sem destino fixo, errante. Nada referia sobre o passado. Praticava em frases breves e raros monossílabos. Andava sem rumo certo, de um pouso para outro, indiferente à vida e aos perigos, alimentando-se mal e ocasionalmente, dormindo ao relento à beira dos caminhos, numa penitência demorada e rude…
Tornou-se logo alguma coisa de fantástico ou mal-assombrado para aquelas gentes simples. Ao abeirar-se das rancharias dos tropeiros aquele velho singular, de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os improvisos e as violas festivas.
Era natural. Ele surdia — esquálido e macerado — dentro do hábito escorrido, sem relevos, mudo, como uma sombra, das chapadas povoadas de duendes…
Passava, buscando outros lugares, deixando absortos os matutos supersticiosos.
Dominava-os, por fim, sem o querer.
Di-lo documento expressivo publicado aquele ano, na capital do Império.
“Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande influencia no espírito das classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se tenuamente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guindo-o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas sem cultura”.
Canudos
Canudos, velha fazenda de gado à beira do Vaza-Barris, era, em 1890, uma tapera de cerca de cinqüenta capuabas de pau-a-pique.
Já em 1876, segundo o testemunho de um sacerdote, que ali fora, como tantos outros, e nomeadamente o vigário de Cumbe, em visita espiritual às gentes de todo despeadas da terra, lá se aglomerava, agregada à fazenda então ainda florescente, população suspeita e ociosa, “armada até aos dentes” e “cuja ocupação, quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro de extensão” , de tubos naturalmente fornecidos pelas solanáceas (canudos-de-pito), vicejantes em grande cópia à beira do rio.
Assim, antes da vinda do Conselheiro, já o lugarejo obscuro — e o seu nome claramente se explica — tinha, como a maioria dos que jazem desconhecidos pelos nossos sertões, muitos germens da desordem e do crime. Estava, porém, em plena decadência quando lá chegou aquele em 1893: tajupares em abandono; vazios os pousos; e, no alto de um esporão da Favela, destelhada, reduzida às paredes exteriores, a antiga vivenda senhoril, em ruínas…
Data daquele ano a sua revivescência e crescimento rápido. O aldeamento efêmero dos matutos vadios, centralizado pela igreja velha, que já existia, ia transmudar-se, ampliando-se, em pouco tempo, na Tróia de taipa dos jagunços.
Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito.
A sua topografia interessante modelava-o ante a imaginação daquelas gentes simples como o primeiro degrau, amplíssimo e alto, para os céus…
Não surpreende que para lá convergissem, partindo de todos os pontos, turmas sucessivas de povoadores convergentes das vilas e povoados mais remotos.
A LUTA
Causas próximas da luta
Determinou-a incidente desvalioso.
Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes da autoridade daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado.
O principal representante da justiça do Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que, sendo juiz do Bom Conselho, fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele.
Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação do São Francisco: as madeiras seriam de lá arrebatadas, à força.
O caso passou em dias de outubro de 1896.
Relata o general Frederico Solon, comandante do 3.° Distrito Militar:
“A 4 de novembro do ano findo (1896) em obediência à ordem já referida, prontamente satisfiz a requisição, pessoalmente feita pelo dr. governador do Estado, de uma força de cem praças da guarnição para ir bater os fanáticos do arraial de Canudos, asseverando-me que, para tal fim, era aquele número mais que suficiente.
Confiando no inteiro conhecimento, que ele devia ter, de tudo quanto se passava no interior de seu Estado, não hesitei; fazendo-lhe apresentar. sem demora, o bravo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, do 9° Batalhão de Infantaria, a fim de receber as suas ordens e instruções, o qual, para cumpri-las, seguiu, a 7 do dito mês, para Juazeiro, ponto terminal da estrada de ferro, na margem direita do rio São Francisco, comandando três oficiais e 104 praças de pré daquele Corpo, conduzindo apenas uma pequena ambulância, fazendo eu seguir logo depois um médico com mais alguns recursos para o exercício de sua profissão. O mais correu pelo Estado.”
Primeiro combate
Na madrugada de 21 desenhou-se no extremo da várzea o agrupamento dos jagunços…
Um coro longínquo esbatia-se na mudez da terra ainda adormida, reboando longamente nos ermos desolados. A multidão guerreira avançava para Uauá, derivando à toada vagarosa dos kyries, rezando. Parecia uma procissão de penitência, dessas a que há muito se afeiçoaram os matutos crendeiros para abrandarem os céus quando os estios longos geram os flagícios das secas.
Eram muitos. Três mil. disseram depois informantes exagerados, triplicando talvez o número. Mas avançavam sem ordem. Um pelotão escasso de infantaria que os aguardasse, distribuído pelas caatingas envolventes, dispersá-los-ia em alguns minutos.
O arraial na frente, porém, não revelava lutadores a postos. Dormia.
A retirada impunha-se, por tudo isto, urgente, antes da noite, ou de um outro recontro, idéia que fazia tremer aqueles triunfadores. Resolveram-na logo. Mal inumados na capela de Uauá os companheiros mortos, largaram dali sob um sul ardentíssimo.
A multidão aproximou-se, tudo o indica, até beirar a linha de sentinelas avançadas. E despertou-as. Os vedetas estremunhando, surpresos, dispararam, à toa, as carabinas e refluíram precipitadamente para a praça que ficava à retaguarda, deixando em poder dos agressores um companheiro, espostejado a faca. Foi, então, o alarma: correndo estonteadamente pelo largo e pelas ruas; saindo, seminus, pelas portas; saltando pelas janelas; vestindo-se e armando-se às carreiras e às encontroadas… Não formaram.
Foi como uma fuga.
A travessia para Juazeiro fez-se a marchas, em quatro dias. E quando lá chegou o bando dos expedicionários, fardas em trapos, feridos, estropiados, combalidos, davam a imagem da derrota. Parecia que lhes vinham em cima, nos rastros, os jagunços. A população alarmou-se, reatando o êxodo. Ficaram de fogos acesos na estação da via-férrea todas as locomotivas. Arregimentaram-se todos os habitantes válidos, dispostos ao combate. E as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja…
Desastres
A nova deste revés foi um desastre maior.
A quarta expedição organizou-se através de grande comoção nacional, que se traduziu em atos contrapostos à própria gravidade dos fatos. Foi a princípio o espanto; depois um desvairamento geral da opinião; um intenso agitar de conjeturas para explicar o inconceptível do acontecimento o induzir uma razão de ser qualquer para aquele esmagamento de uma força numerosa, bem aparelhada e tendo chefe de tal quilate. Na desorientação completa dos espíritos, alteou-se logo, primeiro esparsa em vagos comentários, condensada depois em inabalável certeza, a idéia de que não agiam isolados os tabaréus turbulentos. Eram a vanguarda de ignotas falanges prontas a irromperem, de remanente, em toda a parte, convergentes sobre o novo regímen. E como nas capitais, federal e estaduais, há muito, meia dúzia de platônicos, revolucionários contemplativos e mansos, se agitavam esterilmente na propaganda da restauração monárquica, fez-se de tal circunstância ponto de partida para a mais contraproducente das reações.
Canudos — uma diátese
Era preciso uma explicação qualquer para sucessos de tanta monta. Encontraram-na: os distúrbios sertanejos significavam pródromos de vastíssima conspiração contra as instituições recentes. Canudos era uma Coblentz de pardieiros. Por detrás da envergadura desengonçada de Pajeú se desenhava o perfil fidalgo de um Brunswick qualquer. A dinastia em disponibilidade de Bragança, encontrara afinal um Monck, João Abade. E Antônio Conselheiro — um Messias de feira — empolgara nas mãos trementes e frágeis os destinos de um povo…
A República estava em perigo; era preciso salvar a República. Era este o grito dominante sobre o abalo geral…
Exageramos?
Deletreemos, ao acaso, qualquer jornal daqueles dias.
Doutrinava-se: “O que de um golpe abalava o prestígio da autoridade constituída e abatia a representação do brio da nossa pátria no seu renome, na sua tradição e na sua força era o movimento armado que, à sombra do fanatismo religioso, marchava acelerado contra as próprias instituições, não sendo lícito a ninguém iludir-se mais sobre o pleito em que audazmente entravam os saudosos do Império, francamente em armas.”
Concluía-se: “Não há quem a esta hora não compreenda que o monarquismo revolucionário quer destruir com a República a unidade do Brasil.”
Explicava-se: “A tragédia de 3 de março, em que juntamente com o Moreira César perderam a vida o ilustre coronel Tamarindo e tantos outros oficiais briosíssimos do nosso Exército, foi a confirmação de quanto o partido monarquista à sombra da tolerância do poder público, e graças até aos seus involuntários alentos, tem crescido em audácia e força.”
Afirmava-se: “Trata-se da restauração; conspira-se; forma-se o exército imperialista. O mal é grande; que o remédio corra parelhas com o mal. A monarquia arma-se? Que o presidente chame às armas os republicanos.”
E assim por diante. A opinião nacional esbatia-se de tal modo na imprensa. Na imprensa e nas ruas.
Alguns cidadãos ativos congregaram o povo na capital da República e resumiram-lhe a ansiedade patriótica numa moção incisiva:
“O povo do Rio de Janeiro reunido em meeting e ciente do doloroso revés das armas legais nos sertões da Bahia, tomadas pela caudilhagem monárquica, e congregado em torno do governo, aplaudindo todos os atos de energia a cívica que praticar pela desafronta do Exército e da pátria, aguarda ansioso, a sufocação da revolta.”
A mesma toada em tudo. Em tudo a obsessão do espantalho monárquico, transmudando em legiões — coorte misteriosa marchando surdamente na sombra — meia dúzia de retardatários, idealistas e teimosos.
O presidente da República por sua vez quebrou a serenidade habitual:
“Sabemos que, por detrás dos fanáticos de Canudos, trabalha a política. Mas nós estamos preparados, tendo todos os meios para vencer, seja como for contra quem for.”
Empastelamento de jornais monárquicos
Afinal a multidão interveio.
Copiemos: “Já era tarde e a excitação do povo aumentava na proporção de sua massa sempre crescente; assim nesta indignação lembraram-se dos jornais monarquistas, e todos por um, em um ímpeto de desabafo, foram às redações e tipografias dos jornais Gazeta da Tarde, Liberdade e Apóstolo, e, apesar de ter a polícia corrido para evitar qualquer assalto a esses jornais, não chegou a tempo de evitá-lo, pois a multidão aos gritos de viva a República e à memória de Floriano Peixoto invadiu aqueles estabelecimentos e destruiu-os por completo, queimando tudo”.
Então começaram a quebrar e inutilizar tudo quanto encontraram, atirando, depois, os objetos, livros, papéis, quadros, móveis, utensílios, tabuletas, divisões etc., para a rua de onde foram logo conduzidos para o largo de São Francisco de Paula, onde formaram uma grande fogueira, ficando outros em montes de destroços na mesma rua do Ouvidor.”
Mobilização de tropas
Descoloraram-se batalhões de todos os Estados: 12°, 25°, 30º, 31°, 32°, do Rio Grande do Sul; o 27°, da Paraíba; o 34°, do Rio Grande do Norte; o 33° e o 35°, do Piauí; o 5°, do Maranhão; o 4°, do Pará; o 26º, de Sergipe; o 14° e o 5°, de Pernambuco; o 2°, do Ceará; o 5° e parte do 9° de Cavalaria, Regimento da Artilharia da Capital Federal: o 7°, o 9° e o 16º, da Bahia.
O comandante do 2° Distrito Militar, general Artur Oscar de Andrade Guimarães, convidado para assumir a direção da luta, aceitou-a, tendo antes, numa proclamação pelo telégrafo, definido o seu pensar sobre as coisas: “Todas as grandes idéias tem os seus mártires; nós estamos votados ao sacrifício de que não fugimos para legar à geração futura uma República honrada, firme e respeitada.”
A mesma nota em tudo: era preciso salvar a República…
Concentração em Queimadas
As tropas convergiam na Bahia. Chegavam àquela capital em batalhões destacados e seguiam imediatamente para Queimadas. Esta medida, além de corresponder à urgência de uma organização pronta naquela vila — feita base de operações provisórias —, impunha-se por outro motivo igualmente sério.
O alto da Favela
Naquele ponto este morro lendário é um vale. Subindo-se tem-se a impressão imprevista de se chegar numa baixada.
Parece que se desceu. Toda a fadiga da ascensão difícil se volve em penoso desapontamento ao viajor exausto. Constringe-se o olhar repelido por toda a sorte de acidentes. Ao contrário de uma linha de cumeadas, depara-se, no prolongamento do caminho do Rosário, um talvegue, um sulco extenso, espécie de calha desmedida trancada, transcorridos trezentos metros, pela barragem de um cerro.
Atingindo este, vêem-se-lhe aos lados, esbotenando-lhes os flancos e corroendo-os, fundos rasgões de enxurros que drainam a montanha. Por um deles, o da direita, se enfia, entalando-se em passagem estreita de rampas vivas e altas, quase verticais, lembrando restos de antigos túneis, aquele caminho, descendo, em desnivelamentos fortes. À esquerda outra depressão, terminando na encosta suave de um morro, o do Mário, se dilata na extensão maior de norte a sul, fechando-se, naquele primeiro rumo, ante outro cerro, que oculta o povoado e tomba, de chofre, pelo outro, em boqueirão profundo até ao leito do Umburanas. À frente, em nível inferior, a fazenda Velha. O pequeno Serrote dos Pelados cai logo, em seguida, em declive, até o Vaza-Barris, embaixo. E para todos os quadrantes — para leste, buscando o vale do Macambira, aquém das cumeadas do Cocorobó e a estrada de Jeremoabo que o atravessa; para o norte, derivando para a vasta planície ondeada; para o ocidente, procurando os leitos dos pequenos rios, o Umburanas e o Mucuim perto do extremo da estrada do Cambaio; para todos os lados, o terreno descamba com o mesmo facies que lhe imprimem sucessivos cômoros empolando-se numa confusão de topos e talhados. Tem-se a imagem real de uma montanha que desmorona, avergoada pelas tormentas, escancelando-se em gargantas, que as chuvas torrenciais de ano a ano reprofundam, sem o abrigo de vegetação que lhe amorteça a crestadura dos estios e as erosões das torrentes.
Porque o morro da Favela, como os demais daquele trato dos sertões, não tem nem mesmo o revestimento bárbaro da caatinga. E desnudo e áspero. Raros arbúsculos, esmirrados e sem folhas, raríssimos cereus ou bromélias esparsas, despontam-lhe no cimo sobre o chão duro, entre as junturas das placas xistosas justapostas em planos estratigráficos, nitidamente visíveis, expondo, sem o disfarce da mais tênue camada superficial, a estrutura interior do solo. Entretanto, embora desabrigado, quem o alcança pelo sul não vê logo o arraial, ao norte. Tem que descer, como vimos, em suave declive, a larga plicatura em que se arqueia, em diedro, a montanha, numa selada entre lombas paralelas.
Fuzilaria
Por ali enveredou, ao anoitecer, a testa da coluna e uma bateria de Krupp, seguidas do resto da 2ª Brigada e da 3ª, ficando a 1ª e o grosso da tropa retardados à retaguarda. Mas deram poucos passos mais. O tiroteio frouxo, que até então acompanhara os expedicionários, progredira num crescendo contínuo, à medida que se realizava a ascensão, transmudando-se ao cabo, no alto, em fuzilaria furiosa.
E desencadeou-se uma refrega original e cruenta.
Não se via o inimigo — encafurnado em todas as socavas, metido dentro das trincheiras-abrigos, que minavam as encostas laterais, e encoberto nas primeiras sombras da noite que descia.
O fim
A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo, inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os mesmos toques de cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente extinta num exército sem distintivos e sem fardas.
Sabia -se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o “hospital de sangue” dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército.
E lutavam com relativa vantagem ainda.
Pelos menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram lá ficaram, aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e sangrentos. Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres andrajosos dos jagunços, listras vermelhas de fardas e entre elas as divisas do sargento-ajudante do 39.°, que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. Tinham a ilusão do último recontro feliz e fácil: romperam pelos últimos casebres envolventes, caindo de chofre sobre os titãs combalidos, fulminando-os, esmagando-os…
Mas eram terríveis lances, obscuros para todo o sempre. Raro tornavam os que os faziam. Aprumavam-se sobre o fosso e sopeava-lhes o arrojo o horror de um quadro onde a realidade tangível de uma trincheira de mortos, argamassada de sangue e esvurmando pus, vencia todos os exageros da idealização mais ousada. E salteava-os a atonia do assombro…
Canudos não se rendeu
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos. Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem. . .
Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos…
E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara, confiante — e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa História ?
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas.
O cadáver do Conselheiro
Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro.
Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tábua, o corpo do “famigerado e bárbaro” agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato, e esquálido, olhos fundos cheios de terra — mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.
Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa — único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra ! — , faziam-se mister os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma massa angulhenta de tecidos decompostos.
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista.
Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita — e, como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores… Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura…