Com ironia, Rudyard Kipling usou poema O Fardo do Homem Branco para criticar o imperialismo. Entretanto, o poema acabaria usado para justificar o colonialismo paternalista e racista. Como se vê, uma vez escrita, o autor já não tem mais domínio das interpretações sobre sua obra. A mesma distorção ocorreu com o livro A Emergência da Meritocracia do sociólogo Michael Young que cunhou o termo em 1958.
Essa sátira distópica retrata a Grã-Bretanha em 2034, quando a sociedade seria governada pela meritocracia. Nesse mundo futuro, uma aristocracia super-qualificada se formou através de um ciclo de “sucesso aos bem-sucedidos” e garantiria o treinamento de suas proles para seguir seus passos. A elite frequentava a Oxbridge enquanto os subalternos estudavam em instituições menos prestigiosas. Os altamente qualificados dominavam enquanto o resto contentava com trabalhos pouco valorizados. Os privilegiados ditavam as regras do jogo, recrutavam um ou outro vindo de baixo para dar aparência de justiça ao sistema e evitar a formação de líderes entre os sujeitados que contestassem o regime. Assim, poucas chances haveria aos menos afortunados para romper essas barreiras e ascender socialmente. A culpa de “não dar duro o suficiente” ficava para os menos afortunados, cujo esforço seria sempre insuficiente não importa o quanto se dedicasse.
O conceito de meritocracia de Young resulta da soma de esforço e de habilidades cognitivas. Credenciais acadêmicas e notas classificatórias em testes padronizados seriam critérios cegos quanto a cor de pele, gênero, classe social, gradientes de habilidades físicas na hora de alocar pessoas às vagas universitárias, admissão e promoção em empregos. Parece justo, mas o mundo real historicamente não funciona assim.
Vale a pena distinguir entre a ideologia da meritocrática e o sistema de méritos. A ideologia meritocrática pressupõe um socialismo de oportunidades no qual todos tem a mesma chance nas largadas, devendo o melhor conquistar o pódio. O sistema de mérito consiste em recompensar quem tenha melhor portfólio, currículo ou desempenho. Parace justo e eficiente, mas o sistema de mérito é logicamente baseado em uma falácia indutiva, não há relação necessária entre desempenho passado com a capacidade futura. Por exemplo, no Brasil antes de passarem a contabilizar somente a produção acadêmica dos últimos cinco anos, nos concursos de docentes havia já professores aposentados concorrendo com recém-doutorados. Consequemente, os mais velhos levavam vantagem nesse sistema, pois o número de publicações era maior, mas quando empossados, pouco trabalhavam, argumentando já terem feito muito pela academia.
Há obviamente situações em que ambos conceitos se sobrepõe, como em um vestibular. Também nesses tipos de concursos no Brasil o uso do sistema de mérito seria para evitar os favorecimentos pessoais, mas as recentes políticas de ações afirmativas mitigam a ideologia subjacente de meritocracia. Ter o reconhecimento que existem desigualdades é o início para se forjar um sistema e ideologia de equidade.
A demanda por um sistema seletivo e de promoção justo é antiga. Tanto nos esportes gregos, no exército romano quanto no regime de mandarinato chinês já existiam as possibilidades de ascensão por conquistas pessoais. Porém, os louros, o vitis ou o quanmao eram acessíveis a qualquer pé-rapado. Para não discorrer sobre todos os excluídos, grupos como os não cidadãos — estrangeiros, helotas e escravos — sequer poderiam sonhar com essas glórias na Grécia, em Roma e na China.
Se com seus méritos os cavaleiros medievais mataram mouros e conquistaram terras aos suseranos, nada mais justo receberem marcas e condados. Nada mais justo transmiti-los com suas rendas, servos e direitos aos seus herdeiros. Com esse raciocínio “meritocrático” perpetuaram-se os privilégios nobiliárquicos até as revoluções americanas e francesas.
O interesse racional-burocrático, para se usar termos weberianos, de modernizar produz o discurso da meritocracia. O temor é que status conquistado seja reposto por status atribuído faz que os concorrentes aceitem as regras da dança das cadeiras. A lógica parece fazer sentido, que vença o melhor, porém a premissa que há igualdade de competição é falsa. Se testes padronizados possuem conteúdos enviesados para determinadas classes, uma minoria já sai na dianteira. Nas sabatinas para as antigas cátedras prestigiosas nas faculdades ou no Colégio D. Pedro II, ganhavam sempre os mais refinados, os com melhor sotaque de françês, quem soubesse despejar uma verborragia de autores da moda ou fossem bem conectados. Isso tudo em detrimento e candidatos mais competentes na matéria ou em didática, mas que nunca viajaram para fora do país. Ainda hoje provas orais para selecionar pós-graduando continuam assim. Idem, para arguições oriais em concursos jurídicos.
Se no antigo regime o status atribuído ao nascimento era legitimador, o discurso contemporâneo apregoa recompensar por méritos em um ambiente igualitário e com condições imparciais. Ainda que alguns indíviduos consiga furar a barreira, “provando” a justiça da ideologia, são mais mecanismos de cooptação individual que de criação de igualdade entre grupos.
Longe dessa utopia há habilidades requeridas para a promoção pessoal que não são medidas por testes padronizados ou por credenciais. Há relações sociais pesando na hora de escolha de posições relevantes. Longe de ser o mundo justo da teoria, há desigualdade de condições entre competidores em qualquer desses testes.
Como Young satiriza, os perdedores não teriam como invocar a má-sorte ou injustiças no mundo da meritocracia. Essa tendenciosidade de atribuir os sucessos aos méritos e as falhas à falta de sorte e à injustiça recebe o nome de “viés da atribuição” na psicologia social.
O mundo é diverso e complexo demais para nivelar todos. E a tentativa de nivelar por baixo as oportunidades são bem retratadas na literatura. O conto Harrison Bergeron de Vonnegut e o massivo romance Vontade indômita de Ayn Rand retratam isso: os protagonistas passam por situações castradoras pelo fato de serem geniais.
A falta de incentivos é perniciosa, mas incentivos não se igualam à meritocracia. Tomemos por exemplo, o jeitinho brasileiro.
Diria que a falta de um visível ganho pelos esforços pessoais gerou, dentre outras coisas, o jeitinho brasileiro. Se as vias normais não garantem resultado, o jeito é sambar, usar o QI ou cortar filas. A aplicação do jeitinho na economia e micropolítica gerou a chamada Lei de Gérson: como nada é justo, tenho direito a levantar vantagem para mim e para meus chegados.
O mesmo acontece com o chabuduo, o jeitinho chinês que seria traduzido como “não está bom, mas dá para o gasto”. Desde a época do império até a República Popular da China o chabuduo legitima o improviso. O camponês-tornado-operário não sabe soldar microprocessadores, mas pinga uma solda aqui e ali e manda o produto adiante e o celular explode no ouvido do consumidor. A razão da gambiarra chinesa do chabuduo é que, independente do esforço, a recompensa será a mesma. Em contraste, o kaizen japonês valoriza a lealdade recíproca em uma hierarquia que recompensa a alta qualidade em contínua melhoria. Desse modo, um discípulo ou um empregado tem incentivo em fazer a coisa certa e com préstimo, pois sabe que a longo prazo terá reconhecimento. O kaizen pode parecer paternalista, mas não é, pois resulta dos desempenhos e cobranças mútuas. Sua antítese chabuduo-jeitinho não prevê esse reconhecimento. É imediatista.
Nas Terras de Santa Cruz o apadrinhamento e o patrimonialismo legaram a lógica pseudo-meritocrática. Homens-bons e amigos dos capitães-donatários (e recentemente, dos governadores dos estados) recebiam cartas de sesmarias pelo simples mérito de terem os contatos certos. Nesse ambiente, a meritocracia entra como remédio ao nepotismo e ao patrimonialismo. Mas o pedágio da ponte ao acesso às posições cobiçadas — cargos públicos comissionados ou concursados, vagas em universidades públicas e posições executivas em organizações privadas — continuam com tarifas altas que não é para qualquer um. Quem não tiver dinheiro e tempo de sobra para cursinhos, dificilmente passa em concurso com salários de mais de cinco dígitos. Não é culpa de ninguém ser filho de papai, como também não era culpa dos fidalgos do ancien régime.
A expectativa de ter um justo retorno por seus esforços é válida, mas não é o que está prometido no discurso meritocrático. A antropóloga Lívia Barbosa (1996, 2014) estuda tanto o jeitinho quanto o discurso da meritocracia em ambientes corporativos públicos e privados. Barbosa notou que a meritocracia é invocada por (positivamente) por administradores e (negativamente) por entidades profissionais. De um lado, seria a panaceia para a eficiência; de outro, a corporalização impessoal do neoliberalismo. Em comum, ambos grupos querem resultados, mas sem ter responsabilidades ou custos pessoais.
Como golpe de misericórdia, não há previsibilidade ou justificativa lógica que alguém que goza algo por esforço próprio, continuará a ter o mesmo desempenho. São proverbiais os casos de moleirões que se matam para passar em um concurso público, ganhar estabilidade e curtir a sinecura mesmo que o circo pegue fogo. Como se vê, é outra falácia da meritocracia.
Esse ensaio é mais de diagnóstico que para apresentar soluções. Nele distinguem-se o discurso da meritocracia e o seu ideal impraticável. Mas, como linhas gerais de uma possível saída desse impasse seria a combinação de vários elementos objetivos com subjetivos: valorizare reconhecer o desempenho pessoal, inserir a lealdade recíproca no discurso, como no princípio do kaizen. Ações afirmativas são outros instrumentos para nivelar por cima as oportunidades. Por fim, a transparência nas relações profissionais é vital: se quer promover ou contratar o sobrinho do colega de pôquer, não perca seu tempo nem de outros candidatos, anuncie que contratará mediante recomendações.
SAIBA MAIS
BARBOSA, Lívia. Meritocracia e sociedade brasileira. Rev. adm. empres., São Paulo , v. 54, n. 1, p. 80-85, Feb. 2014 . http://dx.doi.org/10.1590/S0034-759020140108.
RAND, Ayn. The Fountainhead. 1943. Em português, Vontade indômita.
VONNEGUT, Kurt. Harrison Bergeron. 1961.
YOUNG, Michael. The Rise of the Meritocracy, 1870–2033. Londres: Thames & Hudson, 1958.
Vídeo da Univesp TV
E o ilustrativo argumento de Toby Morris (@xtotl)