O serviço religioso naquela tarde parecia ser mais um, como era rotineiro na comunidade no seio de uma paisagem idílica na Borgonha. Mas o dia 15 de agosto de 2005 foi diferente. Diante de uma igreja lotada, uma mulher com visível alteração psicológica atacou um inofensivo nonagenário, cortando sua garganta e esparramando sangue pelo seu hábito branco. Ali entregava sua vida ao seu Senhor, frère Roger.
Irmão Roger, ou como era conhecido civilmente Roger Louis Schütz-Marsauche, foi um caso excepcional no protestantismo. Nascido em uma família clerical na Suíça em 1915, estudou teologia evangélica reformada. Buscando aplicar o mandado de sua fé, em 1940 viajou de bicicleta para uma pequena vila no sul da França onde fundaria sua comunidade e daria refúgio às vítimas da Guerra. A vila Taizé, a qual daria nome para a comunidade, não fica muito longe de Cluny, onde outra comunidade monástica mudara o Ocidente séculos antes.
Ao contrário do senso comum dominante desde a Reforma, o monasticismo não se desassociou do cristianismo evangélico. Apesar da aversão dos reformadores ao monasticismo, essa forma de espiritualidade mantém-se ativa e nos dois últimos séculos reviveu no protestantismo.
O monasticismo não é uma peculiaridade do catolicismo, sendo comum em religiões como hinduísmo, budismo e, mais raro, no islam. E houve até no judaísmo (lembrem-se dos essênios e da comunidade de Qumran?). Baseando-se na dedicação total do indivíduo à religiosidade e renúncia aos interesses materiais da sociedade que os circunda, monges de diversas orientações vivem em reclusão contemplativa ou servindo os necessitados, como parte de uma vida de piedade.
Os nazireus do Antigo Testamento foram precursores e nos desertos do Egito esta tradição deu continuidade no cenobitismo cristão. Na Idade Média monges copistas contribuíram não somente para transmitir as Escrituras, mas toda a cultura clássica à modernidade. No século VI d.C. Cassiodoro fundou no sul da Itália o Vivarium, um misto de monastério, biblioteca, escola e escritório de copista, legando-nos boa parte dos manuscritos da antiguidade grecorromana.
O monasticismo protestante nasceu antes do protestantismo propriamente dito. No século XI, os Pobres de Lião iam de dois a dois, espalhando secretamente a mensagem que resultou na Igreja Valdense, até hoje florescente. John Wyclif, pré-reformador inglês, organizou os Lollardos com igual propósito e modo de operação no século XIV.
Durante a Reforma, quase a totalidade dos mosteiros foi dissolvida nas nações protestantes. O desvio de seus intentos originais e o acúmulo de terras, poder e riquezas justificaram suas desapropriações. Lutero, um ex-monge, achava inútil a vida contemplativa. Todavia, em uma cidade luterana a vida monástica continuou. Em Herford, cidade renana do Palatinado, a Abadia (Frauenstift) feminina era governada por uma princesa — calvinistas em alguns casos — florescendo até sua dissolução em 1802. Foi o lar de gênios como a Abadessa Elisabete do Palatinado, responsável pela vida de 7.000 pessoas. Também foi refúgio para muitos perseguidos, como os Labadistas, grupo com características monásticas. O monastério dos Irmãos de Vida Comum em Herford aderiu à Reforma sem abandonar a vida consagrada e existiu como ordem luterana até 1841. Dois monastérios luteranos continuam em atividade quase ineterrupta desde a Reforma: Kloster Loccum e o Kloster Amelungsborn, ambos na Baixa Saxônia.
O fervor pietista do século XVII e XVIII reacendeu a devoção monástica entre os protestantes. Os irmãos morávios, reorganizados como uma ordem transdenominacional floresceu entre alemães, ingleses e nos campos missionários na América Central, Labrador e na Guiana. Os irmãos morávios influenciaram os metodistas, cujos primeiros evangelizadores circuit raiders viviam como se fossem uma ordem monacal.
Em geral, as denominações estabelecidas não davam as boas-vindas a esses movimentos. Os membros do movimento pietista Skevikarna ou Främlingarna passaram um exílio marítimo por onze anos antes serem readmitidos na Suécia, onde fundaram comunidade em uma ilha nos arredores de Estocolmo. O ex-jesuíta Jean de Labadie aderiu ao pietismo na Holanda e juntou um séquito que salientava a tolerância, mas viveram errantes até os labadista encontrarem refúgio em Maryland.
Os Estados Unidos provaram ser um país receptivos às comunidades intencionais, dentre elas as comunidades monásticas protestantes. Ainda na era colonial, batistas do sétimo dia alemães fundaram o Ephrata Cloister, hoje uma próspera cidade na Pensilvânia. Seus contemporâneos, os shakers, ou a Sociedade Unida dos Crentes na Segunda Aparição de Cristo, mantém seus derradeiros membros em casas coletivas no Maine.
Outro legado do monasticismo protestante é o movimento de diaconia e as consequentes instituição da enfermagem e do serviço social. Em 1836 o casal Theodor Fliedner e Friederike Münster criaram a primeira casal diaconal em Kaiserswerth, no vale do Reno. A iniciativa tem origem no réveil, um movimento de despertar e reanimação espiritual que ocorreu entre reformados da Suíça, França e vale do Reno no século XIX. Na Alemanha e nos países nórdicos a diaconia está bem estabelecida, mas perdeu seu caráter monástico. Ainda hoje, há as casas das diaconias de Reuilly (fundada em 1841) em Paris e Estrasburgo (fundada em 1842), admitindo mulheres de origem denominacional diversa. As diaconisas realizam cuidados sociais dos vulneráveis e cuidados paliativo de saúde. O movimento das diaconisas antecederam as profissões de serviço social e da enfermagem. Florence Nightingale teve treinamento diaconal na Alemanha. Jane Addams e Ellen Gates Starr, fundadoras do serviço social, visitaram a settlement house Toynbee Hall em Londres antes de organizar a Hull House em Chicago.
Em 1840 Pricilla Lydia Sellon foi a primeira anglicana a fazer votos de castidade, pobreza e obediência na Ordem Anglicana das Irmãs de Caridade. O renascimento monástico teve um limitado sucesso no Velho Mundo e na América, mas inesperadamente conquistou adeptos no Pacífico. Em 1925 Ini Kopuria fundou nas Ilhas Salomão e em Papua a Irmandade Melanésia, hoje com cerca de 450 membros. Recentemente foi marcada pelo martírio quando em 2003 foi torturado e morto um de seus líderes enquanto estava em missão entre separatistas. Os Irmãos Melanésios fazem votos por três anos e dedicam-se à meditação, devoção e missões, tanto evangelizadora quanto social.
Na Alemanha que antecedeu a 2a Guerra Mundial houve um renovado interesse evangélico no monasticismo.
A líder estudantil alemã e confessante (religiosos alemães que rejeitaram a Hitler e ao Nazismo durante a 2º Guerra Mundial) Madre Basilea Schlink e Madre Martíria fundou com apoio da Igreja Luterana a Irmandade Evangélica de Maria, presente também no Brasil, onde mantém uma casa em Curitiba. Há um ramo masculino, de ordem franciscana. Os escritos e ação social dessas freiras evangélicas influenciam a muitos devotos católicos e protestantes.
O líder da Igreja Confessante durante os períodos mais cruéis do nazismo, Dietrich Bonhoeffer organizou o clandestino Seminário Secreto organizado conforme práticas monásticas. Perseguidos, o seminário acabou dissolvido e Bonhoeffer martirizado.
Ainda entre os alemães o movimento da Comunidade de Bruderhof nos 1920 por Eberhard Arnold conciliou a vida monástica com o voluntarismo anabatista. O grupo imigraria para os Estados Unidos onde se tornou uma comunidade intencional.
Em 1946, o já citado Irmão Roger fundou a Comunidade Evangélica de Taizé, depois aberta ecumenicamente a outros cristãos. A comunidade dedicou-se a servir a juventude, atraindo multidões a cada verão. Está presente no Brasil desde 1966 com uma casa na Bahia.
Mesmo antes de Taizé a França já uma tradição reformada de vida monástica. Em 1923 o teólogo Wilfred Monod fundou a Fraternité Spirituelle des Veilleurs, na qual se enfatiza a alegria, simplicidade e misericórdia. Trata-se de uma ordem de eremitas. Cada ermitão mora sozinho e atende uma comunidade local com seus serviços, independente de denominação. O atual prior é Daniel Bourguet.
Desde os anos 1950 foram reorganizadas várias ordens luteranas na Alemanha, Dinamarca e América do Norte.
Em 1964, o missionário Reuben Archer Torrey III, neto do evangelista norte-americano R.A. Torrey, fundou a Abadia de Jesus na Coreia. Nesse país, várias comunidades permanentes ou de retiro temporários existem, localizada geralmente em regiões montanhosas.
No sul da Índia e no Sri Lanka uma das maiores denominações cristãs é a The Pentecostal Mission (ou Ceylon Pentecostal Mission), cujo cerne organizacional são as casas de vida consagrada.
Na África oriental, o movimento vaPostori do qual se destaca a Gospel of God Church fundada pelo Baba Johane Masowe mantém as Sisters ou esposas de Mwari. Esta ordem conciste em casas femininas nas quais as irmãs mantém uma vida de trabalho e oração comunal. O período de adesão, o qual é celibatário, pode ser temporário ou vitalício.
Hoje se espalha a prática monástica urbana nos Estados Unidos, voltada para os pobres, desenvolvimento da espiritualidade entre os jovens, como o Dream Center, em Los Angeles, mantido pelas Assembleias de Deus. Essa vertente, conciliando o neoevangelicalismo e pentecostalismo, combina práticas beneditinas e franciscanas com missões. É representante dessa vertente no Brasil a Ordem Evangélica dos Servos Intercessores (OESI) em Rondônia.
Enquanto isso, no deserto do Egito, Peter Halldorf, um pentecostal sueco, medita em um monastério copta.
SAIBA MAIS
Irmandade Evangélica de Maria no Brasil
Comunidade de Taizé Internacional
Monastério Evangélico Agostiniano em Erfurt (em flemão)
http://www.prayerfoundation.org/brief_history_protestant_monasticism.htm
http://www.patheos.com/blogs/geneveith/2014/10/protestant-monasticism/
http://www.christianitytoday.com/ct/2008/february/23.28.html
http://www.the-american-interest.com/2014/10/01/a-new-monasticism/
A transição do convento de Zurique ao protestantismo
Ordem Evangélica dos Servos Intercessores – grupo monástico evangélico em Rondônia
Fraternidade Espiritual dos Contempladores (Fraternité des Veilleurs, em francês)
BAYLOR UNIVERSITY. Monasticism: Old and New. Christian Reflection: A series in Faith and Ethics. 2010.
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Referência:
ALVES, Leonardo Marcondes. Monasticismo protestante. Ensaios e Notas, 2016. Disponível em: https://wp.me/pHDzN-2k3. Acesso em: 20 jul. 2020.
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