A perspectiva do Outro

26089-illustrationof3reachinghandstonunezO ser humano (e os primatas) é um animal eminentemente orientado pela visão. Assim, a cegueira é representada, de uma forma geral, como uma desvantagem inerente. As representações variam: desde a fábula dos cegos e do elefante até a alegoria da caverna a cegueira é retratada no trope de como a falsa percepção engana. O Ensaios sobre a cegueira (1995) de José Saramago mostra o desespero ocasionado por uma epidemia de falta de visão.

Duas exceções notáveis a esse trope quase clichê são Tirésias na mitologia grega e o conto A terra dos cegos de H.G.Wells.

Tirésias era um paradoxo: sendo cego, era vidente e um dos helenos mais lúcidos. Por um encanto, o tebano Tirésias passou alguns anos de sua vida em um corpo de mulher e depois retornou a ser homem. Com essa experiência, foi convocado para a ingrata posição de árbitro em uma disputa entre Zeus e Hera. A resposta de Tirésias na guerra dos sexos não agradou: Hera tirou-lhe a visão e Zeus deu-lhe a longevidade por sete gerações.

Outras versões creditam a Atena à cegueira e à perspicácia de Tirésias. Teria sido punido por espiar a deusa tomando banho. Mas, com uma vida tão longa, figurou como personagem em vários mitos, de Édipo a Hércules, passando por Ulisses. Foi o único mortal a ver a era heroica da Grécia. Não é à toa que os gregos cunharam o termo ‘ironia’…

O conto de H.G. Wells retrata a peripécia do aventureiro Nunez que chega a uma terra de cegos, um remoto e inacessível vale andino. Ao perceber que era o único a ver, acha que a máxima “em terra de cegos, quem tem um olho é rei” vai render-lhe vantagens. Mas, como outro explorador em um mundo perdido, Daniel Dravot de O Homem que Queria Ser Rei de Kipling, os nativos dão-lhe um tratamento à altura da ambição. Curam Nunez daquele defeito, as protuberâncias na cavidade ocular.

Outro explorador entre nativos, o missionário-linguista Kenneth Pike (1912 – 2000), por longo tempo presidente do Summer Institute of Linguistics, reconheceu a distinção entre as perspectivas emic e etic.

Pike, retirando os termos da distinção entre fonÊMICo e fonÉTICo, percebeu que essa distinção poderia ser aplicada a outras categorias culturais além da linguagem. O emic seria os sentidos dos sons (e outros traços culturais) compreendido por sua comunidade de uso. Já o etic seria a descrição feita pelo externo, um cientista ou observador alheio à comunidade. Para Pike, somente nativos produziriam uma descrição emic acurada enquanto observadores externos seriam os capacitados para uma análise etic. Outros antropólogos, notavelmente Ward Goodenough e Marvin Harris (adeptos, respectivamente, da etnometodologia e do materialismo cultural), adotaram rapidamente o conceito e argumentaram que tanto nativos e estranhos à comunidade são igualmente capazes de fazer análise emic e etic, com próprio treinamento e reflexão.

Com esse método, um passo adiante do relativismo cultural boasiano, a distinção emic/etic transcendeu as questões epistemológicas de subjetividade e objetividade que atormentava os antropólogos dos anos 1950. Como Tirésias, antropólogos por participação-observante tomam o lugar do Outro e, mesmo cegos a alguns aspectos, conseguem vislumbrar coisas que videntes não conseguem. Entretanto, há limites para esses observadores. Como Nunez, os antropólogos não devem tirar vantagens ou sentirem-se superiores à comunidade estudada. Por vezes, seus olhos são defeitos em seu trabalho de campo.

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