As múltiplas cosmologias gregas

As pessoas tendem a ignorar que múltiplas narrativas e concepções do cosmos coexistem numa determinada cultura. A comparação das cosmologias de Hesíodo, Ferécides, das teogonias órficas, dos filósofos e do gnosticismo helenístico demonstra como as diferentes perspectivas sobre as origens e a estrutura do universo coexistem em uma cultura, neste caso a grega. Cada um desses pensadores antigos apresenta uma estrutura única, refletindo as tendências filosóficas e teológicas de seus respectivos tempos.

Hesíodo: a criação pela luta divina

O poeta Hesíodo, nos séculos VIII a VII a.C., relata em seus poemas Teogonia e Os Trabalhos e os Dias a emergência da criação a partir do Caos, um vazio que precede toda a existência. Do Caos emergem divindades primordiais como Gaia (Terra), Eros (Amor), Tártaro (Submundo), Érebo (Escuridão) e Nyx (Noite). A narrativa se desenrola com a Titanomaquia, uma guerra mítica entre os Titãs mais velhos e os deuses mais jovens do Olimpo, culminando na ascensão de Zeus ao poder. Hesíodo também relata a antropogonia, a criação dos humanos a partir do barro de Prometeu, infundido com vida por Atena. Sua cosmologia retrata uma visão cíclica do universo, estruturada por uma ordem divina hierárquica e uma estrutura moral.

Cosmogonias órficas

Os mistérios cúlticos órficos detinham variantes das cosmogonias divinas, tal como vista em Hesíodo. Os relatos dessas religiões iniciáticas gregas exploram um início cósmico que frequentemente destaca a figura de Nix (a Noite) como o princípio de todas as coisas. Em algumas versões, como as conservadas por Damáscio e Aristófanes, Nix surge ao lado de outras entidades primordiais, como Caos, Érebo e Tártaro. Essa coabitação inicial de forças abstratas reflete a complexidade inerente à criação do universo que a tradição órfica apregoava.

Um dos elementos centrais nas cosmogonias órficas é o Ovo Cósmico, que simboliza o ponto de partida para a manifestação do cosmos. A partir desse ovo primordial, emerge Fanes ou Protógonos, uma divindade andrógina que incorpora os princípios de criação e amor. Fanes, enquanto gerador do cosmos, não apenas organiza o caos, mas também dá origem aos primeiros deuses, configurando a estrutura básica do universo. Sua figura simboliza a totalidade e a unidade primordial, uma ideia que ecoa a busca órfica por uma compreensão mais abrangente do divino.

Crono (o Tempo) desempenha um papel crucial em muitas versões órficas, sendo descrito como o progenitor do Éter, Caos e Érebo. Ao introduzir o tempo como um agente criativo, as teogonias órficas diferenciam-se da narrativa hesiódica, que privilegia a matéria como ponto de partida. Aqui, o tempo não é apenas uma medida de existência, mas um motor ativo que permite a transição do indeterminado para o estruturado, sublinhando o dinamismo da criação.

Outro aspecto distintivo da tradição órfica é sua explicação para a origem da humanidade, que se vincula ao mito de Dioniso. De acordo com este relato, Dioniso é despedaçado pelos Titãs, e da mistura de suas cinzas com a essência divina surge a humanidade. Essa dualidade – uma origem corpórea dos Titãs e um elemento divino herdado de Dioniso – reflete a tensão entre o material e o espiritual. Na perspectiva órfica, essa condição humana exige purificação e iniciação nos mistérios de Dioniso para alcançar a salvação espiritual.

Os relatos órficos frequentemente envolvem conflitos entre entidades divinas, cuja resolução culmina em uma ordem cósmica final, muitas vezes governada por Zeus. Embora compartilhem semelhanças estruturais com a cosmogonia de Hesíodo, as narrativas órficas introduzem nuances significativas, como a centralidade do simbolismo e a ênfase na transcendência espiritual.

Cosmogonias menores

Além das grandes tradições cosmogônicas como as de Hesíodo e Orfeu, outras narrativas menores competiam sobre a origem do cosmos. Homero, por exemplo, menciona o titã Oceano como a fonte primordial de todos os deuses, destacando sua descendência direta de Gaia (Ilíada 14.200, 246). Essa visão atribui um papel central às forças aquáticas na gênese divina, sugerindo uma ligação íntima entre a vida e os elementos naturais. Álcman, por sua vez, desenvolveu uma teogonia própria, na qual introduziu divindades menos conhecidas, embora algumas figuras de sua tradição também sejam encontradas na obra hesiódica. Além disso, textos perdidos, como a Titanomaquia, os poemas cíclicos, a Teogonia atribuída a Epimênides de Creta e as obras de Acusilau, provavelmente apresentavam variações das narrativas cosmogônicas.

Ferécide: princípios fundamentais eternos

Em contrapartida aos mitos, Ferécides de Siro, um dos Sete Sábios da Grécia, pensador do século VI a.C., apresenta uma perspectiva cosmológica mais abstrata. Evidências fragmentárias dos escritos deste filósofo pré-socrático sugerem um foco em princípios fundamentais, ainda que use nomes míticos. Ferécides postula Chronos (Tempo) como a fonte última e governante da existência, acompanhado por uma ogdóade, um grupo de oito divindades primordiais que representam conceitos essenciais como Terra, Oceano, Noite e Dia. Sua cosmologia permite interpretações simbólicas, vendo a criação como um processo de emanação e diferenciação, em vez de conflito divino. Ferécides sustentava que Zeus, Chronos e Gaia sempre existiram e, consequentemente, não teria ocorrido propriamente uma criação (segundo Diógenes Laércio 1.119). Sua visão de mundo inclina-se para uma compreensão linear, com a realidade fundamentada em princípios subjacentes representados simbolicamente.

Os filósofos: especulações

As cosmogonias dos filósofos gregos proporcionaram explicações alternativas às narrativas míticas com abordagens racionais e sistemáticas acerca da origem e organização do cosmos. Esses pensadores buscaram compreender o universo por meio de princípios fundamentais, propondo teorias que oscilam entre o empírico e o especulativo.

Dentre os pré-socráticos, Tales de Mileto sugeriu que a água era a arché, ou princípio primordial, devido à sua ubiquidade e papel vital. Essa ideia inaugurou uma tradição de buscar uma unidade subjacente às diversas formas do real. Anaximandro, seu discípulo, introduziu o conceito do ápeiron, o infinito ou indefinido, como origem de todas as coisas, destacando a impessoalidade do princípio primordial. Anaxímenes, por outro lado, optou pelo ar como substância básica, explicando sua transformação em outros elementos por processos de rarefação e condensação. Já Heráclito de Éfeso enfatizou o fluxo constante e a mudança, associando o fogo ao princípio unificador e introduzindo o logos como uma ordem racional que governa o cosmos.

Empédocles ampliou essas especulações ao propor os quatro elementos—terra, água, ar e fogo—como constituintes básicos de tudo, guiados por duas forças cósmicas: Amor, que une, e Ódio, que separa. Anaxágoras, por sua vez, avançou ao introduzir as homeomerias, partículas que contêm sementes de todas as coisas, e o nous, uma mente ordenadora que organiza o caos primordial.

Leucipo e Demócrito, os primeiros atomistas, ofereceram uma visão mecanicista do cosmos, onde partículas indivisíveis, os átomos, interagem no vazio para formar todas as coisas. Essa abordagem eliminava a necessidade de agentes divinos ou forças sobrenaturais, estabelecendo um modelo materialista para o universo.

Platão e Aristóteles também deram seus pitacos para as cosmologias especulativas.

Platão, no Timeu (29e-30d, 39b-c), apresentou a figura do Demiurgo, um artífice divino que organiza o caos primordial segundo os modelos das Formas eternas. Essa visão mescla aspectos metafísicos e matemáticos. Seu modelo destacava a harmonia e a finalidade inerentes ao cosmos, em uma relação entre o mundo ideal e o real.

Aristóteles, em contraste, propôs uma cosmologia geocêntrica baseada em observação empírica e raciocínio lógico. Seu conceito do Motor Imóvel, uma causa primeira que não se move, mas provoca movimento, reflete uma tentativa de explicar o cosmos de modo mecânico. A partir desse Motor Imóvel, o cosmos foi posto em ordem.

Gnosticimo: emanações

O movimento gnóstico helenístico, que floresceu entre os séculos I e III dC, diverge das cosmogonias nativas dos gregos. Baseando-se em várias influências, incluindo a filosofia grega e as religiões orientais, o gnosticismo introduz uma estrutura dualística. No cerne da cosmologia gnóstica está uma divisão nítida entre o Pleroma divino, representando plenitude e perfeição, e o mundo material imperfeito criado por um Demiurgo menor e imperfeito. A queda de Sophia, ou Sabedoria, é central na mitologia gnóstica, levando à criação do mundo imperfeito e à ignorância humana. O gnosticismo postula a gnose, ou conhecimento, como o caminho para o despertar espiritual e a libertação do reino material. A sua cosmologia reflete uma visão de mundo dualista, destacando a imperfeição inerente do mundo material e a busca pela transcendência espiritual.

NOTA

Para diferenciar: cosmogonia narra a criação e origem do universo, enquanto a cosmologia estuda do modelo, estrutura, composição e evolução do cosmos após sua origem. Por sua vez, cosmovisão (Weltanschauung) não se restringe a fatos cósmicos; é um conjunto amplo e fluido de pressupostos, valores e crenças (cognitivos, normativos, éticos) que servem como uma estrutura heurística para interpretar tanto o cosmos quanto a totalidade da realidade, incluindo, mas não se limitando, às narrativas cosmogônicas e aos modelos cosmológicos.

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