O maior tesouro entre os humanos é uma língua econômica; o maior favor encontra uma língua que fala na medida. Se disseres algo mau, rapidamente algo pior ouvirás. Linhas 719-720
Era para ser mais um exemplo de uma história repetida: um irmão toma indevidamente a parte do outro em uma herança. Mas, ao invés de lamentar sua infelicidade, a parte preterida compõe um poema para demonstrar o quanto é bom fruir dos ganhos de seu trabalho – especialmente no campo –, além de expor em belos mitos a origem do mal, da cultura, do trabalho e dos sofrimentos humanos.
O poema didático Os trabalhos e os dias de Hesíodo foi pioneiro em vários aspectos. Apresenta umas das primeiras conceituações de justiça, o primeiro almanaque agrícola, o primeiro manual de economia, a primeira apologia à vida idílica, o primeiro guia de autoajuda, a primeira obra definitivamente autoral do povo grego, dentre outros pioneirismos.
Injustiçado pelo irmão Perses, Hesíodo teria vivido no século VIII a.C. As evidências internas de Os trabalhos e os dias e da Teogonia, seu outro grande poema, dão uma segurança acerca de sua autoria. Se assumirmos a historicidade de Homero, teria sido contemporâneo do rapsodo da Ilíada e da Odisseia, época quando a escrita voltou a ser funcionalmente utilizada entre os gregos, já que caíra em desuso desde os cataclismas do século XII a.C.
Semelhante às literaturas sapienciais do Crescente Fértil, há paralelos com livros bíblicos, egípcios e mesopotâmicos. Esses paralelos são conselhos práticos além de louvar a vida prática, frugal e ética.
É uma das principais fontes para o conceito de Nêmesis (a personificação da justiça retributiva) e Aidos (a personificação da modéstia, vergonha e humildade), para os mitos de Prometeu e Pandora, bem como um esboço evolutivo que divide a história em raças ou gerações humanas. Zeus é apresentado menos com caráter (e falibilidade) humano como acontece nos épicos de Homero e mais como o provedor da justiça.
Vemos as influências de Hesíodo nas discussões dos filósofos, principalmente em Platão. Os trabalhos e os dias (em grego Erga kaí Hemérai e em latim Opera et Dies) influenciaram também o tema idílico latino principalmente de Virgílio e vemos suas reverberações até em Walden de Thoreau.
Na versão estabilizada o poema contém acima de 800 linhas.
UM RESUMO ESTRUTURADO DE SEU CONTEÚDO:
Proêmio: invocação das Musas e de Zeus (1-8)
- Zeus é governante supremo e fonte da ordem social humana.
- As duas lutas (11-26): uma correção da Teogonia.
- As competições podem ser destrutivas ou construtivas.
Instrução a Perses (27-41)
- Trabalhe duro, evite a vida urbana e não se meta com os grandes.
- Retrato da vida cotidiana no campo.
Etiologias (42-105): as explicações das origens
- Etiologia do trabalho, dos males da humanidade, e do fogo (42-58). O titã Protemeu roubou o fogo dos deuses e deu-lhe aos homens, permitindo que surja a tecnologia, a civilização e, consequentemente, a vida cultural.
- Etiologia das mulheres: O mito de Pandora (59-105). Zeus encomendou a Hefaístos uma mulher de barro a quem Atena, Afrodite e Hermes dão habilidades, desejos, beleza e tristeza, bem como a imoralidade (bem misógino esse Hesíodo…). A mulher recebeu o nome de Pandora (aquele que recebe “todas as dádivas”) e é apresentada ao irmão de Prometeu, Epimeteu. Embora instruído a não receber presentes dos deuses, Epimeteu acaba cendendo à mulher Pandora. Porém, ela veio com um jarro (ânfora, não uma caixa como é registrado na expressão) com a ordem de não abrir.
- Etiologia dos males para os seres humanos. Ao destampar o jarro de Pandora, escapa os males do mundo.
Mito das raças: antropologia (106-201)
- A Idade do Ouro: época de convivência dos humanos e deuses imortais do Olimpo sob o governo de Cronos. Prevalecia a paz e harmonia e os humanos não precisavam trabalhar para se alimentar, pois a terra fornecia comida em abundância. A juventude humana se mantinha até uma idade muito avançada, quando se morria tranquilamente e se tornavam espíritos guardiões sobre a Terra.
- A Idade da Prata: Sob o reinado de Zeus, os homens viviam cem anos com suas mães e pouco tempo como adultos. Nascem os conflitos e a impiedade para com os deuses e Zeus os destruiu. Ao morrerem se tornavam espíritos no mundo dos mortos.
- A Idade do Bronze: criados da madeira dura e revestidos de bronze, assim como suas casas e ferramentas, os homens serviam para a guerra, mas foram destruídos no dilúvio de Deucalião.
- A Idade Heroica: era sem nenhum metal característico e registra um avanço humano com os heróis. É também a única idade que há um progresso, com heróis lutando em Tebas e Troia. Seus mortos foram para o Elísio.
- A Idade do Ferro: período contemporâneo de Hesíodo, com labuta e miséria. Os homens manipulam com mentiras para parecerem honrados. A maldade, o erro e a violência são louvadas. Não há mais vergonha e a justiça é permitida. Não há ajuda dos deuses, implicitamente cabendo aos homens sua conduta moral
Fábula do Falcão e Rouxinol (202-212)
- Uma alegoria dos reinos da arrogância e da justiça.
Instruções morais (213-381)
- Conselhos práticos (213-367)
- Várias máximas (368-381)
Dias (382-828)
- Conselhos agrícolas ligados ao calendário com conselhos morais intercalados.
NOTAS FILOLÓGICAS
Dada a sua popularidade, esse livro foi bem preservado e copiado. Há 260 manuscritos desde a antiguidade até o século XVI, proveniente do Egito, mundo bizantino e Europa medieval. A editio princeps foi realizada em Florença, c. 1493, ou seja, no período das incunábulas.