Religiões ocidentais não teístas

Certa vez, Cícero (106–43 a.C.) se perguntou: seria possível uma sociedade humana existir sem a noção de deuses ou sem algum tipo de religião? [1] A resposta, até hoje, é negativa. Nunca se encontrou tal sociedade. A antropologia nos mostra que a religião é, de fato, uma universalidade cultural — mas acreditar em uma divindade como um ente pessoal, não é.

Toda sociedade conhecida tem algum tipo de religião, mesmo quando não há um “deus” no centro dela. É claro: pode até haver indivíduos que vivam distantes ou indiferentes à prática religiosa. Porém, ninguém está fora do ambiente cultural moldado por ela. Pense, por exemplo, no Natal, que, ainda que celebrado de modo secular, carrega consigo símbolos e sentidos herdados de uma tradição religiosa. Ou na música clássica, como os oratórios de Johann Sebastian Bach, que bebem diretamente da espiritualidade cristã.

Ora, a antropologia, em geral, não se ocupa de crenças individuais. Mas quando os não crentes passam a se organizar como grupo social, com visão de mundo própria, tornam-se também objeto válido de estudo.

Redefinindo religião: o sagrado e o simbólico

Autores como Émile Durkheim e Mircea Eliade insistiram em um ponto central: o cerne da religião está na noção de sagrado. O sagrado é aquilo que se separa do comum, do profano. Muitas vezes é descrito como um mysterium tremendum et fascinans, isto é, um mistério que, ao mesmo tempo, nos assusta e nos atrai. Contudo: não precisa ser sobrenatural.

Essa ideia pode ser aplicada também às concepções de mundo de grupos não teístas organizados. Para eles, certos conceitos — a matéria, a verdade, a ética — ocupam o lugar de “preocupações últimas”, elevando-se acima das questões corriqueiras da vida.

Clifford Geertz, antropólogo, escreveu em 1966 o célebre ensaio Religião como Sistema Cultural. Ali, ele define religião como:

Um sistema de símbolos que atua para estabelecer estados de espírito e motivações poderosas, penetrantes e duradouras, formulando concepções de uma ordem geral da existência e revestindo essas concepções de tal aura de factualidade que tais estados de espírito e motivações parecem excepcionalmente realistas.[2]

Veja: boa parte dos grupos não teístas organizados cabe bem nessa definição. Uns, como o saint-simonismo, com mais rituais e símbolos; outros, com menos. Mas todos oferecem ao seu público uma visão de mundo coesa, apresentada como realidade última.

Uma história dos movimentos não teístas

Nem toda expressão religiosa precisa de instituições robustas ou deuses pessoais. O budismo ou jainismo, por exemplo, são religiões sem um deus consciente. Já práticas como o Falun Gong mostram uma religiosidade mais difusa, menos institucional. Ainda, os pirahã das margens do rio Humaitá na Amazônia sequer possuem uma categoria religiosa baseada em algo transcendental.

No Ocidente, tradições não teístas começaram a ganhar forma durante o Iluminismo, florescendo no século XIX, embaladas pelo naturalismo e pelo positivismo. Depois da Segunda Guerra Mundial, com a secularização avançando, esses movimentos se estruturaram de maneira mais formal.

E por quê? Porque a religião não é apenas uma questão de fé individual, mas um fenômeno social. Grupos se organizam não só para ter identidade, mas também para oferecer um espaço de socialização e marcar os ritos de passagem da vida.

Essas tradições, nascidas do Iluminismo, se transformaram ao longo do tempo, cada qual com suas peculiaridades, (des)crenças e ritos. Abrangem uma pluralidade de religiões que, como veremos, merecem atenção.

Tradição francesa

A tradição francesa da religião não teísta é, sem dúvida, a mais dramática. Nascida do racionalismo iluminista, assumiu rituais organizados e elaborados, motivou ações políticas drásticas — como a Revolução Francesa e a Constituição Civil do Clero — e inspirou reformadores sociais e pensadores como Saint-Simon e Comte. Trazia a marca de um anticlericalismo vigoroso, de um materialismo militante e de um secularismo radical — o que os franceses denominam laïcité —, cuja influência ultrapassou fronteiras e moldou também outras tradições não teístas, notadamente a britânica e a alemã.

Entre os primeiros defensores declarados do ateísmo na França figura o pároco Jean Meslier (1664–1729), que deixou a seus paroquianos um Testamento no qual expressava sua total descrença em Deus. Ao longo do século XVIII, um vasto corpus de manuscritos clandestinos — ou impressos de modo privado — circulava discretamente, sustentando posições ateias, deístas e anticlericais. Alguns autores, como o Barão d’Holbach (1723–1789) e Jacques-André Naigeon (1738–1810), deram publicidade mais aberta a tais ideias, mas o ateísmo, ainda demasiado radical para a época, cedia espaço a formas de deísmo, como as defendidas por Diderot e Voltaire.

As lojas maçônicas e os salões literários desempenharam papel relevante na difusão do desdém pela religião — sobretudo pelo catolicismo romano e seus privilégios —, preparando terreno para a eclosão da Revolução Francesa.

O deísmo, entendido como a crença em um Deus relojoeiro que cria o mundo e o abandona à sua própria ordem, chegou a ser celebrado ritualmente pelo filósofo e clérigo inglês David Williams (1738–1816). Entre 1776 e 1779, Williams alugou um espaço em Cavendish Square, em Londres, onde conduziu cerimônias segundo sua obra A Liturgy on the Universal Principles of Religion and Morality, combinando trechos bíblicos e clássicos, além de conferências sobre temas filosóficos contemporâneos.

Sua iniciativa inspirou deístas na Revolução Francesa. O Culte de la Raison, proposto por Jacques Hébert (1757–1794) e Antoine-François Momoro (1756–1794), transformou a Catedral de Notre-Dame em um “Templo da Razão” em 1793, exaltando a razão como ideal supremo. O culto, entretanto, degenerou em espetáculos burlescos, como o “Festival da Razão” em 20 brumário do Ano II (10 de novembro de 1793), quando a esposa de Momoro foi entronizada como deusa da Razão no altar principal da catedral. Esse radicalismo, que buscava descristianizar a França mediante atos sacrílegos, perseguição ao clero e rituais festivos, perdeu força quando Robespierre o substituiu pelo Culte de l’Être Suprême, em 1794. Diferente de seus predecessores, esse culto afirmava a existência de Deus e a imortalidade da alma, sustentando uma liturgia mais austera.

Após a morte de Robespierre, em julho de 1794, parte de seus seguidores uniu-se a outros adeptos do humanismo rousseauniano e fundou, em 1796, o théophilanthropisme, liderado por Jean-Baptiste Chemin (1760–1852). Embora de apelo inicial modesto, chegou a ocupar igrejas desacralizadas e foi associado pelo Diretório às práticas de moral cívica do culte décadaire. Não era dogmático, mas afirmava a crença em Deus e na imortalidade da alma como necessárias ao convívio social. Em 1803, porém, Napoleão o suprimiu.

Outros grupos deístas menores surgiram na França ao longo do século XIX, como L’alliance religieuse universelle (1829–1870), fundada pelo maçom Henri Carle (1822–1881), e o Comité central théophilanthropique de Joseph Décembre (1831–1906), mas ambos não conseguiram mobilizar seguidores em larga escala.

Em paralelo, o grego Theóphilos Kaíris (1784–1853), sacerdote, filósofo e herói da independência, organizou em 1839 o Theosebism, inspirado tanto pelo deísmo revolucionário francês quanto pelo pietismo protestante liberal. Sua ousadia o colocou em conflito com a Igreja Ortodoxa e o governo grego, que o prendeu por heresia.

Já Claude Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon (1760–1825), fundou a mais romântica religião não teísta do século XIX francês. Aventureiro, reformador social, planejador capitalista com devaneios sobre canais transcontinentais e industrialização, mas também com ideais socialistas, via no nouveau christianisme a realização da antiga expectativa messiânica de uma sociedade justa, agora secular e baseada na ciência e na técnica. Após sua morte, Barthélemy Prosper Enfantin (1796–1864) conduziu o movimento a um cerimonialismo místico, chegando a buscar uma “sacerdotisa” para gerar o novo Messias. Condenado por imoralidade em 1832 devido à defesa do amor livre, Enfantin tentou, sem sucesso, empreender a abertura do canal de Suez. O saint-simonismo, entretanto, exerceu ampla influência sobre movimentos posteriores, como o positivismo comtiano e o marxismo.

Auguste Comte (1798–1857), discípulo de Saint-Simon na juventude, fundou o positivismo, concebendo a “Religião da Humanidade” após sua ligação afetiva com Clotilde de Vaux (1815–1846). Seu lema — O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim — inspirou a inscrição da bandeira brasileira, “Ordem e Progresso”. No Brasil, Miguel Lemos (1854–1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855–1927) fundaram, em 1881, a Igreja Positivista e inauguraram em 1897 o Templo da Humanidade no Rio de Janeiro. A doutrina teve influência decisiva entre militares republicanos, como Benjamin Constant, e seguidores célebres como Cândido Rondon. Contudo, seu rigor moral e seu cerimonialismo contribuíram para o declínio da prática no início do século XX. Visitei os templos do Rio e de Porto Alegre, estavam fechados, mas restaram como belos monumentos da razão positivista.

Na Inglaterra, John Stuart Mill adaptou o positivismo em perspectiva liberal, rejeitando seu ritualismo, mas mantendo a ênfase em uma religião humanista. A Sociedade Positivista de Londres (1867) e a Igreja da Humanidade (1878) são exemplos de sua difusão, inclusive em Nova Iorque.

Com o tempo, a religião positivista se enfraqueceu, mas deixou marcas duradouras, entre elas a convicção — ainda presente — de que a ciência pode substituir a religião.

No século XX, outras formas de irreligião ganharam destaque na França: a laïcité, o existencialismo ateu e, mais recentemente, a desconstrução da religião. Até hoje, a crítica à religião permanece viva, seja nas campanhas contra les sectes, na questão do véu islâmico, na restrição de símbolos religiosos em espaços públicos, ou na firme defesa da separação entre Igreja e Estado.

Tradição anglo-saxônica

A tradição anglo-saxônica da religião não teísta tem origem no não-confessionalismo, no deísmo e no unitarianismo presentes em seitas protestantes dissidentes, expandindo-se para outros países de língua inglesa e exercendo influência na própria formação dos Estados Unidos.

A ideia de um Deus distante, que não intervém na natureza, floresceu na Inglaterra entre 1690 e 1740, mas perdeu vigor com a crítica de David Hume (1711–1776), que defendia um empirismo cético. O deísmo, contudo, prosperou na América do Norte e serviu de matriz religiosa para alguns dos Founding Fathers. Benjamin Franklin e Thomas Paine foram deístas declarados. A primeira organização deísta nos Estados Unidos foi a efêmera Universal Society of Philadelphia, fundada em 1791.

O ex-ministro presbiteriano Elihu Palmer (1764–1806) organizou, em 1796, a Deistical Society of New York. Palmer afirmava a existência de um Deus único e acreditava na capacidade humana de aperfeiçoamento. A sociedade opunha-se à perseguição religiosa e defendia as liberdades civil e religiosa, mas extinguiu-se logo após a morte de seu fundador em 1806.

Nem todos os adeptos de Palmer, entretanto, partilhavam de sua tolerância. Em Newburgh, às margens do rio Hudson, uma loja maçônica adotou um deísmo druídico, identificando o Sol como divindade. A Druid Society, que funcionou entre 1788 e 1806, chegou a provocar escândalo em 1798 ao batizar um gato e ministrar comunhão a um cão.

Com o tempo, o deísmo declinou, cedendo espaço a outras formas de irreligião, até ressurgir no final do século XX. Uma herança duradoura dessa visão de mundo é a crença na necessidade de um “Grande Arquiteto do Universo” em muitos ritos maçônicos, ainda que não como objeto de culto.

Próximo ao deísmo, o socinianismo surgiu na Reforma, propondo uma leitura racionalista da Bíblia e considerando Jesus Cristo apenas humano. A doutrina prosperou no Leste Europeu, sobretudo na Polônia e na Transilvânia. A dispersão dos Irmãos Poloneses, no século XVII, levou suas ideias aos Países Baixos e, de lá, à Inglaterra, onde se transformaram em unitarianismo. Até meados do século XIX, os unitários britânicos e norte-americanos eram em sua maioria teístas, mas sua abertura a diversas visões religiosas atraiu também não teístas. Hoje, a Unitarian-Universalist Association é um movimento religioso não dogmático que acolhe até mesmo descrentes. Entre os Quakers, um grupo semelhante é o dos Non-Theist Friends, parte da Religious Society of Friends.

O contexto da Great Ejection de 1662 — quando dissidentes que recusaram subscrever aos credos da Igreja da Inglaterra foram expulsos — contribuiu para a formação de congregações alternativas, como Seekers, Quakers, Unitários, Presbiterianos não-subscritores e metodistas Cookeites. Em 1925, muitos desses grupos reuniram-se na General Assembly of Unitarian and Free Christian Churches do Reino Unido, congregando pessoas de diferentes perspectivas religiosas, do cristianismo ao ateísmo.

Na segunda metade do século XIX, o agnosticismo se difundiu com força, sobretudo pelas obras de Thomas Henry Huxley (1825–1895), que cunhou o termo em 1870, de Robert G. Ingersoll (1833–1899) e de Bertrand Russell (1872–1970). Agnósticos, em geral, mostraram pouco interesse em constituir organizações próprias, preferindo permanecer sem afiliação formal ou integrando redes de convivência com ateus, livres-pensadores e secularistas.

Outro grupo relevante, surgido no protestantismo dissidente, foi a South Place Ethical Society de Londres. Inicialmente conhecida como Philadelphians, uma seita universalista mística, transformou-se gradualmente em congregação livre-pensadora, orientada por preceitos éticos e humanistas. Fundada em 1793, é a mais antiga congregação secularista em atividade e a única Ethical Society do Reino Unido, vinculada atualmente à comunidade humanista internacional.

O movimento da Ethical Culture foi criado em Nova Iorque, em 1876, por Felix Adler (1851–1933), erudito e filho de rabino. Adler sustentava que “a lei moral possui autoridade imediata, não dependente da veracidade de crenças religiosas ou teorias filosóficas”. Suas sociedades organizavam reuniões semanais, ofereciam instrução ética e celebravam casamentos, batismos e funerais laicos.

Na Grã-Bretanha, Stanton Coit (1857–1944) organizou, em 1896, a Union of Ethical Societies, defendendo o humanismo e a prática do bem sem os constrangimentos religiosos. Em 1967, essa entidade fundiu-se à Rationalist Association (antiga Rationalist Press Association, de 1898), dando origem à British Humanist Association.

Mais recentemente, uma visão de mundo naturalista encontrou expressão em The Brights’ Net, iniciado em 2003 e amplamente difundido pelos escritos de Richard Dawkins, como parte do movimento chamado “Novo Ateísmo”. Essa corrente caracteriza-se por sua crítica incisiva às religiões organizadas, sobretudo à ideia do Deus abraâmico.

Outras expressões de irreligião no mundo anglófono incluem o satanismo laveyano, religiões-paródia como o Flying Spaghetti Monster e grupos como a World Church of the Creator, de inspiração supremacista branca. Uma tendência mais recente nos Estados Unidos é a das chamadas “igrejas ateias”, como o movimento Sunday Assembly, que reproduz, em formato comunitário e festivo, algumas práticas típicas das megachurches cristãs.

Tradição alemã

A tradição alemã do não-crer tem suas raízes no Iluminismo e se desenvolveu a partir da filosofia hegeliana e da teologia protestante liberal. Os conceitos centrais que a marcam são o Ateísmo e o Livre Pensamento.

É curioso notar que os alicerces epistemológicos dessa incredulidade foram lançados justamente por dois homens de fé: Kant e Hegel. Kant (1724–1804), ainda que defensor de uma certa forma de fideísmo, com sua crítica à razão abriu caminho para a rejeição de todas as tentativas racionais de provar a existência de Deus. Depois dele, a ética pôde se emancipar da moral religiosa. Já Hegel (1770–1831) propôs um arcabouço historicista, no qual a religião aparecia como produto da dialética ideológica humana.

Entre os discípulos de Hegel, os chamados “hegelianos de esquerda”, religião deixou de ser vista como revelação e passou a ser analisada como processo humano. Bruno Bauer (1809–1882) e David Strauss (1808–1874) dedicaram-se a desmontar parte significativa da teologia cristã e dos relatos do Novo Testamento. Mas foi Ludwig Feuerbach (1804–1872), talvez o mais influente nesse campo, que rompeu de vez: para ele, Deus não passava de projeção dos desejos humanos.

Karl Marx, em suas Teses sobre Feuerbach, criticou esse enfoque excessivamente interiorizado. Para ele, religião não é apenas ilusão psicológica, mas fenômeno social, parte da superestrutura moldada pelas condições materiais. Daí a célebre frase — mal interpretada tantas vezes — de que a religião é o “ópio do povo”. Na prática, esse raciocínio sustentou, no século XX, as experiências de ateísmo de Estado, como o soviético gosateizm e o regime de Enver Hoxha na Albânia.

Outro desdobramento, mais voltado à dimensão individual, foi o ateísmo pessimista de Schopenhauer e Nietzsche. Schopenhauer (1788–1870) via o mundo como sem sentido, defendendo uma moral sem Deus. Nietzsche (1844–1900), por sua vez, proclamou que “Deus está morto” e propôs uma nova ética baseada na afirmação do Übermensch, o além-do-homem, em contraste com a humildade cristã. Houve até tentativas de traduzir sua filosofia em comunidade prática — como a fracassada Nova Germânia, no Paraguai — mas esse tipo de ateísmo, talvez sombrio demais, nunca chegou a constituir movimento duradouro.

Já o existencialismo ateu, com Sartre (1905–1980) e Camus (1913–1960), levou ao limite a sensação do desamparo humano num mundo sem transcendência. Derrida (1930–2004), com sua desconstrução, acrescentaria mais um capítulo a esse itinerário de descrença. Freud (1856–1939), por outro lado, via Deus como ilusão: um pai projetado no céu. Nenhuma das escolas psicanalíticas, no entanto, formou comunidades religiosas propriamente ditas.

No campo científico, Ernst Mach (1838–1916) levou o materialismo ao extremo, rejeitando até os átomos por não serem observáveis. Sua postura influenciou o Círculo de Viena e o Positivismo Lógico, que consideravam inúteis as discussões sobre a existência ou inexistência de Deus. Nessa mesma linha, Ernst Haeckel (1834–1919) fundou em 1906 o Monistenbund, com o pastor ateu Albert Kalthoff. Era um espaço para materialistas, ainda que sem rituais, dissolvido pelos nazistas e refundado após a guerra, sobrevivendo até hoje como movimento humanista.

Outro nome importante foi Ludwig Büchner (1824–1899), que chegou a fundar o Deutscher Freidenkerbund em 1881, congregando milhares de adeptos em poucos anos. E não se pode esquecer os movimentos Freireligiöser iniciados em 1844, quando o padre Johannes von Rönge protestou contra o culto de relíquias e organizou uma comunidade alternativa. Essa corrente rapidamente se espalhou, unindo católicos liberais, protestantes e até ateus, sob o nome de Bund Freireligiöser Gemeinden Deutschlands.

O impacto foi internacional: muitos Freireligiöser emigraram para os Estados Unidos, Canadá e África do Sul, formando congregações laicas. Hoje, descendentes desse movimento sobrevivem na Alemanha em associações filiadas a entidades humanistas globais.

Na França, as ideias alemãs encontraram terreno fértil, especialmente após 1848. Daí surgiram sociedades de livres-penseurs que lutavam por casamentos e funerais civis, culminando na Fédération française de la Libre Pensée. O próprio Émile Durkheim, em 1914, advertiu que a religião não podia ser reduzida a mera ilusão: tratava-se de uma força social constante e universal.

Por fim, dentro do próprio cristianismo, a teologia liberal abriu espaço para leituras não teístas. Paul Tillich (1886–1965), por exemplo, falava de um “Deus além do ser”, que poderia ressoar mesmo entre descrentes. Daí derivaram movimentos como a chamada “teologia da morte de Deus” e redes como o Sea of Faith, no anglicanismo. Algo semelhante ocorreu no judaísmo, com o Reconstrucionismo de Mordecai Kaplan (1881-1983) e, mais radicalmente, com o Judaísmo Humanista de Sherwin Wine.

Assim, a tradição alemã da incredulidade não é apenas um conjunto de negações. Ela articula filosofia, política, ciência e cultura em torno de uma pergunta fundamental: como viver, pensar e agir sem o recurso a um Deus transcendente?

Tradição espanhola

Na Espanha, surgiu uma tradição peculiar distinta das correntes mais organizadas da França e da Grã-Bretanha. Esses experimentos — muitas vezes excêntricos, frequentemente efêmeros — são um microcosmo de uma mudança intelectual maior.

O impulso de criar novas fés “racionais” brotava, em geral, da vontade de depurar a religião até aquilo que seus fundadores consideravam ser a sua essência: uma moralidade sem mistério. Essa característica é comum aos movimentos religiosos não teístas, e em solo espanhol não foi diferente.

Um exemplo é o do professor Serafín Álvarez, que inventou um “deísmo materialista” e chegou ao ponto de batizar familiares e criados na sua nova religião, autoproclamando-se “bispo-poz”. Esse gesto caricatural ilustra um traço fundamental dessas tentativas: eram esforços pessoais de criar uma ordem sagrada e um senso de pertencimento, num mundo em que a fé tradicional já não oferecia um quadro convincente.

Outro caso é o de Nemesio Uranga, escritor basco que fundou a chamada “religião da razão”. Tratava-se, em essência, de um cristianismo sem o sobrenatural — um sistema puramente moral, destituído de mistérios. Esse tipo de “redução ética” refletia a crença de que uma moral compartilhada poderia substituir o dogma religioso.

Essas experiências caseiras, ainda que marginais, respondiam a uma pergunta que atormentava intelectuais por toda a Europa: se o Deus tradicional havia perdido espaço, o que ocuparia o lugar de fonte última de sentido?

E aqui entra em cena o espanhol Andrés María Santa Cruz, natural de Guadalajara. Figura brilhante e excêntrica, amigo do revolucionário francês La Revéillère Lepeaux, Santa Cruz tornou-se um entusiasta da causa teofilantropa. Escreveu até mesmo um livrinho, Le culte de l’humanité (O Culto da Humanidade), propondo um código de tolerância e pregando a existência de Deus e a caridade universal, sem qualquer outro dogma.

Mas sua história termina em tom melancólico. Assim como o movimento, sua fé não criou raízes. Apesar da proteção oficial, a teofilantropia encontrou apenas indiferença pública e rapidamente desapareceu. Santa Cruz, empobrecido e desiludido, regressou à Espanha em 1803. Morreu solitário numa estalagem em Burgos. Só após sua morte descobriram sua identidade, ao abrirem a bagagem repleta de exemplares do seu obscuro livrinho.

Do excêntrico Serafín Álvarez ao trágico Andrés María Santa Cruz, a tradição espanhola da religião não teísta revela um desejo persistente — ainda que muitas vezes frustrado — de erguer uma nova ordem do sagrado sobre os alicerces da razão e da humanidade. Não resistiu, porém, às tempestades políticas do carlismo e do franquismo.

A ponderar

As religiões não teístas revelam um aspecto crucial da natureza humana: a necessidade de significado, comunidade e ritos de passagem. Essa tradição plural mostra que, mesmo sem deuses, as pessoas continuam a moldar sistemas de crença que oferecem uma visão de universo coesa, uma ética de vida e um senso de pertencimento. Assim, a pergunta de Cícero, no fim das contas, nos leva a outra: se o ser humano não pode viver sem religião, o que ele elege como seu sagrado quando o transcendente se esvai?

SAIBA MAIS

Capurro, Raquel. Le positivisme est un culte des morts: Auguste Comte. Epel, 1999.

Kahl, Joachim, and Erich Wernig. Freidenker: Geschichte und Gegenwart. Köln: Pahl-Rugenstein, 1981.

Minois, Georges. Histoire de L’atheisme. La Fleche: Fayard, 1998.

Vovelle, Michel, and Serge Bonin. 1793: la révolution contre l’Église: de la Raison à l’être suprême. Éd. Complexe, 1988.

NOTAS

[1] Cicero, Marco Túlio. De Natura Deorum I. 16 § 43. Vide edição de A natureza dos deuses. Uberlândia: Edufu, 2016. Tradução e notas de Bruno Fregni Bassetto.

[2] Veja Geertz: definição de Religião

4 comentários em “Religiões ocidentais não teístas

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      1. Gratidão. Prepararei aulas para ano que vem sobre Filosofia da Religião, na contemporaneidade. Vou usar as referências e parte do texto. Mais, uma vez, excelente o texto e obrigado pela autorização.

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