Amartya Sen: justiça global

Ser mais inteligente pode ajudar a compreender não apenas o interesse próprio, mas também como a vida dos outros pode ser fortemente afetada pelas próprias ações. Amartya Sen

Suponhamos que você, como eu, goste de fazer trilhas na mata.Você quer caminhar tão livre quanto possível. Não quer que seu mapa indique apenas áreas proibidas, regiões perigosas ou obstáculos naturais (a liberdade passiva), mas que indique locais cênicos, pontos de apoio e possibilidades de usufruir ao máximo sua caminhada (a liberdade ativa).

Considere agora que você tenha capacidades na forma de equipamentos (bússola, mochila com apetrechos, lanchinhos, barraca) e habilidades (saber ler um mapa!) que lhe permita adaptar e mudar seu curso conforme as condições e seus interesses. 

As ideias de justiças reivindicam imparcialidade, mas será que todos poderiam realmente usufruir desse parque? Ou só os mais capazes…

O economista e laureado pelo Nobel indiano Amartya Sen argumentaria que quanto mais capacidade você tiver e o sistema garantir que todos os trilheiros possam usufruir da mata, melhor. Isso sem contar com o fato de já haver um parque aberto ao público.

Amartya Sen aprofundou-se em um conceito prático de justiça. Para Sen, a justiça deveria ser compreendida como um usufruto de nuances de liberdade. A liberdade, tanto nas suas formas passivas como ativas, é central para a justiça. A liberdade é um meio para os indivíduos levarem vidas plenas, autodeterminadas e livres de privações.

Reviso aqui a perspectiva de Sen sobre a justiça. Apresento o papel crucial das capacidades e a oportunidade de realização. Além disso, exploro as implicações globais da abordagem de Sen. Menciono as contribuições de Martha Nussbaum e algumas críticas ao seu modelo de justiça.

Compreendendo as noções de liberdade e justiça de Sen

O conceito de justiça de Sen vai além da mera ausência de obstáculos, encapsulando a essência da liberdade ativa – a oportunidade de agir em alinhamento com os desejos pessoais. A justiça de uma sociedade é medida pela medida em que os seus membros possuem capacidades. Estas capacidades incluem liberdades políticas, instituições econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência e segurança social.

Liberdade, no entanto, não seria uma abstração.Na vida real, Sen distingue entre liberdades instrumentais e constitutivas (fundamentais), afirmando que a última depende da primeira.

A função constitutiva da liberdade serve como um meio para as pessoas garantirem o valor básico da liberdade e, portanto, as chances de sua realização. Entre as liberdades instrumentais:

  • Liberdades políticas (liberdade de crítica, participação em assuntos que lhe afetem, ao contraditório, direito de voto, assim por diante).
  • Instituições econômicas (recursos, proteção aos bens pessoais adquiridos, condições de troca, distribuição).
  • Oportunidades sociais (educação, saúde).
  • Garantias de transparência (liberdade de imprensa, obrigações de informação, contra a corrupção).
  • Segurança social (seguro-desemprego, assistência social, salário mínimo).

Por outro lado, a liberdade constitutiva depende da extensão da liberdade instrumental. Estudos empíricos demonstram que existem inter-relações e complementaridades entre as liberdades instrumentais.

O economista enfatiza que a avaliação da justiça exige medir a possibilidade objetiva de oportunidades de realização, introduzindo a abordagem da capacidade. Esta abordagem considera o conjunto de opções objetivamente disponíveis para ação do indivíduo dentro de uma sociedade.

Perspectiva de Amartya Sen sobre Justiça

Amartya Sen (2009) examina a justiça de uma perspectiva global, questionando se ela deveria ser universalmente aplicável ou uma preocupação específica de cada nação.

Critica a teoria da justiça como equidade de Rawls. Compartilha interesses e pressupostos com John Rawls, principalmente uma ética da virtude na busca pela justiça. Contudo, o problema do modelo de Rawls seria priorizar estritamente a liberdade negativa (absoluta), incluindo direitos políticos e civis, em detrimento de questões de distribuição. A imposição de valores absolutos poderia dificultar a eliminação de desigualdades e injustiças.

Por exemplo, no modelo de Rawls o conflito entre liberdade e segurança enquanto valores absolutos seriam resolvidos mediante instituições regulatórias que necessariamente imporia alguma forma de desigualdade aceitável dado o véu da ignorância.

Colaborando com Sen, Martha Nussbaum desenvolveu uma abordagem relacionada, mas independente, da justiça. Enquanto Sen se concentra nas liberdades e capacidades individuais, Nussbaum (2006) enfatiza uma lista de habilidades humanas básicas necessárias para uma vida próspera. Seu conceito é normativo, aberto à discussão intercultural e visa alcançar um consenso político. Serve para atender àqueles excluídos ou com menor poder de barganha no processo político. Isso não seria para impor os interesses de uma minoria sobre a maioria, mas para garantir um mínimo existencial. Em termos concretos: pessoas com desabilidades, migrantes e outras minorias.

Em contrapartida a Rawls, Sen e Nussbaum partem não de princípios abstratos absolutos, mas de um mínimo concreto de bens e liberdades para garantir a existência e sobrevivência. No entanto, Sen reafirma algumas ideias de Rawls. O economista rejeita o modelo de homo economicus, a racionalidade fundada na maximização individual de utilidade. Sen concorda que equidade é um componente humano e até crianças reagem contra as injustiças.

Enquanto Rawls e outros comunitaristas focam no particularismo, Sen argumenta uma justiça global, dada as desigualdades sistêmicas do mundo. Sen descreve esta abordagem internacional, que representa um compromisso entre o universalismo, que é praticamente impossível de implementar, mas que deve, no entanto, ser almejada como objetivo, e o particularismo que é puramente nacionalista.

Justiça Global e Abordagens Políticas: aplicação nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 

Sen distingue entre abordagens universalistas como o utilitarismo ou a ética racional de Kant e abordagens particularistas como o comunitarismo. Embora a justiça global pareça ideal em teoria, Sen reconhece os desafios de implementá-la sem uma instituição global. Em vez disso, propõe a “inclusão plural”, defendendo a contribuição de várias instituições transnacionais para o desenvolvimento da justiça global.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS, SDGs é a sigla em inglês) são metas adotadas pelas Nações Unidas em Setembro de 2015. Por mais que haja críticas no documento final, principalmente a falta de coesão dada a multiplicidade de vozes envolvidas na sua elaboração, vemos influências de Sen.

Para Sen (2000), o desenvolvimento é indissociável com a liberdade. Ao recusar a simplificar desenvolvimento como mero acúmulo de riqueza, Sen considera que a liberdade é tanto o fim como o meio para obter a vida econômica e a chave para garantir o bem-estar geral da população.

Em suma, não dá para falar sobre justiça enquanto a pessoa tenha fome, esteja excluída ou está ameaçada por toda sorte de violência.

Críticas e Debates

A abordagem de capacidade de Sen enfrenta críticas especialmente em torno do paternalismo. Os críticos argumentam que a abordagem pode inadvertidamente apoiar o funcionamento em vez das capacidades, levando a uma potencial intervenção estatal nas decisões pessoais. Além disso, quando as instituições privadas – como fundações ligadas por interesses a empresas, organizações religiosas com as suas próprias agendas, ONGs politicamente ligadas – se tornam atores fortes no sistema de segurança social, emerge uma nova forma de dependência em vez de liberdade.

Algumas considerações finais

O conceito de justiça, especialmente a justiça social, não deve ser avaliada como uma dicotomia, como alcançada ou não. Em vez disso, Amartya Sen propõe que a justiça deve ser entendida como existindo numa questão de grau, avaliada ao longo de um espectro. Assim, não precisamos de um modelo final para um ideal abstrato de justiça para avaliar a justiça de diferentes instituições. Nosso senso de justiça, mesmo provisório, é justo.

Enquanto na analogia inicial, um modelo rawlsiano de justiça como equidade seria criar um mapa e infraestrutura de trilha que minimamente uma pessoa média possa desfrutrar de um parque, o modelo de Sen seria ver as demandas concretas dos interessados em acessar o parque e desenvolver suas capacidades.

O conceito de justiça global de Amartya Sen, enraizado na abordagem das capacidades, fornece um quadro abrangente para avaliar a justiça social. Destaca a interação entre as liberdades instrumentais e constitutivas, enfatizando a necessidade de uma participação ativa dos cidadãos. As contribuições de Martha Nussbaum enriquecem ainda mais o discurso, oferecendo uma perspectiva complementar. Apesar das críticas, a abordagem das capacidades de Sen continua influente, moldando as discussões sobre justiça, desenvolvimento e bem-estar global.

SAIBA MAIS

HERNANDEZ, Teresa García-Berrio. “We Are All Vulnerable — Human Capability, Corporeality and Dignity: Functional Diversity Examined in the Light of Martha C. Nussbaum’s Commitment to Justice”. In Challenges to Legal Theory, (Leiden, The Netherlands: Brill | Nijhoff, 2021) doi: https://doi.org/10.1163/9789004439450_017

NUSSBAUM, Martha. Frontiers of Justice. Disability, Nationality, Species Membership. Belknap Press, Cambridge/London, 2006.

SEN, Amartya. The Idea of Justice. Allen Lane; Harvard University Press, 2009.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

VILLANI, Andrea. Social Justice and Capability Approach: A Note on Theses of Amartya Sen and Martha Nussbaum about the Importance of Pursuing Goals of Social Justice Through the Capability Approach. Social Justice and Capability Approach: a Note on Theses of Amartya Sen and Martha Nussbaum about the Importance of Pursuing Goals of Social Justice through the Capability Approach, p. 225-237, 2012.

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3 comentários em “Amartya Sen: justiça global

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