Linguagem e realidade

Abracadabra é uma palavra usada na mágica, oriunda dasletras iniciais do alfabeto grego (ΑΒΓΔ) ou de algo de um hebraico/aramaico macarrônico para “digo; portanto, crio” (אברא כדברא). Eu disse “abacadabra!” e esse ensaio sobre a relação entre linguagem e realidade apareceu.

A suposição que as coisas existem em relação às palavra é antiga. Muitos pensam que uma palavra é um ser em si, existente em algum lugar do universo. Talvez a língua condicione esse pensamento, pois a raiz hebraica דבר (D.B.R) é tanto “palavra” quanto “coisa”.

A relação entre linguagem e realidade é um problema filosófico complexo que tem sido debatido há séculos. De Platão a Wittgenstein, muitos deram seus pitacos. Movidos pela questão de como podemos falar de um Deus, com as limitações da linguagem humana, o escolástico Tomás de Aquino sumarizou as três perspectivas principais propostas para compreender esta relação entre linguagem e realidade, as quais são a univocacidade, a equivocidade e a analogia.

A Univocacidade

A univocacidade é a perspectiva de que linguagem e realidade estão direta e univocamente relacionadas. Isso significa que as palavras têm significados fixos e inequívocos que correspondem diretamente aos objetos ou conceitos que representam na realidade. Esta visão sustenta que a linguagem é uma ferramenta transparente e objetiva para representar a realidade.

Algumas línguas construídas tentam eliminar todo tipo de ambiguidade. Sãos as loglangs, como a Lojban, que seguem uma lógica de predicados e reduz a semântica. Algumas dessas línguas são poéticas, como o Ithkuil.

A língua analítica de John Wilkins, como bem observa Jorge Luis Borges, é um sistema de categorização no qual cada palavra é uma definição de si mesma. Tomemos o peixinho roseado ao qual chamamos de salmão. Nada há necessariamente ligado esses sons e o animal. Poderíamos chamá-lo lax, como fazem os escandinavos. E a palavra salmão não nos informa nada sobre o bicho. Mas na língua construída de Wilkins seu nome é zana, o qual resula de z (peixe), za (peixe fluvial), zan (peixe fluval escamoso) e zana (peixe fluval escamoso de carne vermelha). Vale notar que ainda assim há ambiguidades: o que dizer da truta?

A Equivocidade

A equivocidade argumenta que a linguagem e a realidade não estão diretamente relacionadas de forma fixa e inequívoca. Em vez disso, as palavras têm múltiplos significados e podem ser usadas em diferentes contextos para se referir a coisas diferentes. Esta visão sustenta que a linguagem é inerentemente ambígua e que o significado é sempre dependente do contexto.

Tirado as onomatopeias (que mesmo assim são representadas de modo diferente em cada língua) e essas tentativas de línguas construídas, não há relação entre as formas das palavras, seus significados ou os objetos as quais representam.

Dada a proximadade de muitos significados em um campo semântico (vide por exemplo, “positivismo“), a equivocação é um dos erros mais comuns que cometemos. Gosto dessa ilustração. “O bispo só anda na diagonal. O papa Francisco é um bispo. Portanto, o papa Francisco só anda na diagonal”.

O problema persiste: se tudo for ambíguo e dotado de equivocação, como você pode entender este ensaio? Talvzes (h)aja algo mais.

A Analogia

A analogia é um meio termo entre a univocacidade e a equivocacidade. Esta visão sustenta que a linguagem e a realidade estão relacionadas por analogia ou semelhança. As palavras não estão direta e univocamente relacionadas a objetos ou conceitos na realidade, nem são completamente arbitrárias e dependentes do contexto. Em vez disso, as palavras têm uma relação vaga e flexível com a realidade, baseada em analogias, ou seja uma proporção de diferenças e semelhanças entre coisas diferentes.

Se convencionamos chamar o astro mór de nosso sistema planetário de sol, shemesh ou helios pouco importa. Em um dado sistema comunicativo (uma língua), basta dizer em contexto o signo convencionado para evocar, grosso modo, a ideia desejada.

A analogia permite sustentar que a linguagem consiga transmitir ideias e comunicar entre pessoas. No entanto, quando você diz sol jamais será a mesma coisa que eu imagino. Ou seja, a linguagem não corresponde precisamente à realidade, mas é adequada à comunicação.

SAIBA MAIS

Ashworth, E. Jennifer and Domenic D’Ettore, “Medieval Theories of Analogy”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2021 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2021/entries/analogy-medieval/&gt;.

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