Ithkuil: um relato borgeano

O aposentado John Quijada passou as horas vagas de seus trinta anos como funcionário do departamento de trânsito de Sacramento, Califórnia elaborando com minúcias um idioma sem ambiguidade, polissemia, inexatidão, ilógica, redundância ou arbitrariedade. Com um inventário de 58 fonemas, a língua é facilmente pronunciada por falantes autóctones do tchetcheno, abcázio ou do !xóõ. [1]

A iniciativa de Quijada com o ithkuil – assim se nomeia o idioma – não é nova. O memorioso Funes já pensava em usar uma palavra para cada número. O teólogo polímato John Wilkins formulou um engenhoso idioma analítico baseado em categorias e suas subdivisões. O padre Schlyer empregou combinações incalculáveis de casos e raízes para o volapuque. O célebre Dr. Esperanto criou um falar que alcança fãs dedicados. Outro douto demolidor de Babel, Dr. James Cooke Brown, propôs o loglan uma língua filosófica que não permite ambiguidades. O sábio Pierre Menard já levantava a possibilidade de um vocabulário poético de conceitos que não sejam sinônimos ou perífrases de que se forma a linguagem comum. O ithkuil reúne parte de características de todas essas línguas.

Esta língua tão acurada, a qual está entre filosófica a priori e uma linguagem lógica, leva a hipótese Sapir-Whorf ao extremo. A crença que a língua determina o pensamento levou o ithkuil ser apropriado por uma misteriosa organização russa em seu projeto de dominação de mentes. Há um tempo, a revista russa Kompyuterra  argumentou que, como na redução do sistema decimal para o binário na computação, um falante nativo poderia pensar cinco ou seis vezes mais rápido usando o ithkuil.

Quiçá seja a única língua capaz de expressar entidades concretas de configurações perceptíveis as quais sejam subjetivas, não-lineares e sinergéticas de maneira que se tornem fenômenos objetivo, linear, discreta e componencial. Tudo isso de forma sucinta, mas rico em detalhes.

Prova disso é como Quijada usa o ithkuil para descrever [1] a pintura de Marcel Duchamp Nu descendant un escalier, No. 2 :

Aukkras  êqutta  ogvëuļa  tnou’elkwa  pal-lši  augwaikštülnàmbu.

Essa singela sentença em português seria: “uma representação de uma mulher nua no meio da descida de uma escada em uma série passo a passo de movimentos corporais ambulatórios fortemente integrados os quais combinam em um rasto tridimensional atrás dela, formando um ente inteiro que seja atemporal e emergente a ser considerado intelectual, emocional e esteticamente”.

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Tal clareza é devida às declinações dos 96 casos do ithkuil categorizado em casos transrelativos, possessivos, associativos, temporais, espaciais e comparativos. Quijada selecionou idiossincracías as mais raras, como a evidencialidade do wakashan, as coordenadas do guugu yimithirr, o sistema aspectual da família niger-kordofaniano, os casos nominais do basco e a quarta-pessoa comum a várias línguas indígenas norte-americanas.[2]

Depois que Quijada publicou seu trabalho na internet e algum entusiasta traduziu para o russo, a Psicocinética, um movimento de maximização do potencial psíquico, também se contagiou pela língua. Quijada foi convidado a dar palestras na Europa oriental em reuniões do movimento, sempre acompanhado pela elegante senhora Alla Vishneva, uma aficionada pelo ithkuil.

O filho de um pintor de paredes Yaqui que não pudera prosseguir seus estudos linguísticos na academia cercou-se subitamente de atenciosos discípulos.

Em uma dessas palestras, Quijada estava acompanhado por Joshua Foer, um repórter a serviço do The New Yorker. Nesta ocasião ambos perceberam que a psicocinética servia para propósitos obscuros, sendo liderada por um nacionalista radical condenado por atentado terrorista na Ucrânia. [2]

Quijada, após revisar pela última vez sua língua dos anjos, talvez temeroso do uso que fizessem de sua obra, decidiu encerrar seu desenvolvimento para sempre.

P.S. Soubemos por um leitor que Quijada voltou a trabalhar em seu idioma com o objetivo de torná-lo possível de se aprender e de se usar na comunicação.


NOTAS

[1] Quijada, John. http://www.ithkuil.net/  . Para uma descrição sucinta da língua, vide ithkuil e ilaksh: os idiomas impossiveis.

[2] Foer, Joshua. Utopian for Beginners: An amateur linguist loses control of the language he invented. The New Yorker, dezembro de 2012.


Como citar esse texto no formato ABNT:

Citação com autor incluído no texto: Alves (2013)

Citação com autor não incluído no texto: (ALVES, 2013)

Referência:

ALVES, Leonardo Marcondes. Ithkuil: um relato borgeano. Ensaios e Notas, 2013 Disponível em: https://wp.me/pHDzN-a2 . Acesso em: 20 jul. 2020.

3 comentários em “Ithkuil: um relato borgeano

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  1. “Quijada, após revisar pela última vez sua língua dos anjos, talvez temeroso do uso que fizessem de sua obra, decidiu encerrar seu desenvolvimento para sempre.”

    Não só ele não desejou encerrar o desenvolvimento para sempre, como ele está revisando a linguagem para criar a versão ithkuil 4.
    Uma regra implícita na linguagens construídas é querer que a linguagem seja aprendivel, no caso do ithkuil isso nunca foi uma regra. Ele está fazendo o ithkuil 4 para tornar a linguagem “aprendível”, inspirado pelas pessoas na internet que tentavam aprender a lingua e corrigir algo considerado um problema por alguns como o fato de que a mudança de uma pequenisima parte da palavra pode mudar ela para um significado totalmente diferente.

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