Aristóteles continua a ser objeto de intenso debate e reinterpretação. Duas abordagens recentes que se destacam são o naturalismo biológico, exemplificado pelo trabalho de Allan Gotthelf, e o Aristóteles analítico, defendido por Terence Irwin. Ambas oferecem perspectivas inovadoras, embora distintas, sobre o pensamento aristotélico, influenciando debates contemporâneos em diversas áreas.
Naturalismo Biológico em Aristóteles: A Interpretação de Gotthelf
O naturalismo biológico é uma corrente interpretativa que coloca a biologia no centro da filosofia aristotélica. Seus defensores argumentam que conceitos fundamentais como substância (ousia), causalidade, teleologia e alma (psykhē) ganham um significado mais profundo quando compreendidos à luz da investigação aristotélica dos seres vivos. Allan Gotthelf (1942–2013) foi um dos principais expoentes dessa abordagem. Fez sua carreira na tentativa de demonstrar a intrínseca ligação entre a metafísica de Aristóteles e sua biologia.
As principais teses de Gotthelf giram em torno da teleologia imanente, da metafísica da vida e da necessidade hipotética. Em obras como Partes dos Animais e Geração dos Animais, Aristóteles descreve processos naturais, como o desenvolvimento embrionário, como intrinsecamente dirigidos por fins, e não por forças externas, como na filosofia platônica. Gotthelf enfatiza que essa teleologia é irredutível a simples mecanismos materiais, constituindo uma característica ontológica fundamental dos organismos vivos. A forma como o embrião se desenvolve, por exemplo, é guiada por um “fim” interno de atingir a maturidade.
Além disso, Gotthelf argumenta que a teoria aristotélica da substância como forma (eidos) é modelada a partir dos seres vivos. A “alma,” por exemplo, é definida como a forma de um corpo orgânico (De Anima II.1), e a atividade vital, manifestada na nutrição e reprodução, revela a causalidade formal e final presentes nos organismos. Gotthelf rejeita interpretações “antibiologicistas,” como a de Werner Jaeger, que tendem a separar o Aristóteles biólogo do Aristóteles metafísico, defendendo a unidade e coerência do seu pensamento.
Por fim, ao analisar Partes dos Animais I.1, Gotthelf destaca a distinção aristotélica entre necessidade absoluta, característica da física atomista de Demócrito, e necessidade “sob hipótese.” Esta última depende de um fim específico, como na afirmação de que “os dentes são afiados para mastigar.” Gotthelf vê nessa distinção a base para um método científico distinto na biologia aristotélica, onde a explicação completa de um fenômeno biológico requer a consideração de ambos os tipos de causa: material e final.
A tese de Gotthelf contrapõe-se à leitura desenvolvimentista de Werner Jaeger. Jaeger separarou a fase platônica inicial de Aristóteles de sua fase empirista posterior. Embora hoje a tese de Jaeger seja amplamente criticada, as interpretações de Gotthelf eram um desafio às leituras dominantes nos meados do século XX.
Há ressonância dessas ideias em abordagens contemporâneas da biologia, como a “biologia organicista”. Pensadores como Hans Jonas, em The Phenomenon of Life (1966), argumentam que os seres vivos exibem uma autoorganização direcionada a fins. Embora os termos e escopos sejam diferentes, compartilham a noção aristotélica de que a vida não pode ser reduzida a meros processos mecânicos.
A interpretação de Gotthelf, embora influente, recebe algumas críticas. Uma objeção notável, apresentada por John Cooper em 1987, argumenta que a teleologia de Aristóteles não se restringe ao domínio biológico, encontrando-se também em fenômenos físicos, como os movimentos celestes. Além disso, outras leituras de Aristóteles, como as de Martha Nussbaum, privilegiam a ética em detrimento da biologia, oferecendo perspectivas rivais à abordagem naturalista.
Aristóteles Analítico: A Abordagem de Terence Irwin
Em contraste com o foco de Gotthelf na biologia, a abordagem do Aristóteles analítico aplica ferramentas da filosofia analítica contemporânea aos textos aristotélicos. Essa metodologia, caracterizada pela ênfase na clareza argumentativa, na lógica formal e nas distinções conceituais rigorosas, busca elucidar o pensamento de Aristóteles com o rigor da filosofia moderna. Terence Irwin (n. 1947) é um dos principais expoentes dessa linha interpretativa, especialmente em ética e metafísica.
Em sua obra Aristotle’s First Principles (1988), Irwin propõe que Aristóteles desenvolve um método dialético refinado. Nesse método, os princípios éticos, como a concepção do bem humano, são justificados através de argumentos que buscam a coerência com as opiniões reputáveis (endoxa), ou seja, as crenças amplamente aceitas e consideradas razoáveis. Irwin critica assim o fundacionalismo, argumentando que a ética aristotélica não se baseia em axiomas indubitáveis, mas em uma sistematização racional das crenças morais.
Na metafísica, Irwin, em sua tradução comentada de Aristotle’s Metaphysics (1999), analisa a complexa relação entre forma (eidos), matéria e essência à luz da filosofia da linguagem contemporânea. Um exemplo central é sua interpretação da forma (eidos) como o explanans primário, um conceito comparável às “propriedades essenciais” discutidas por Saul Kripke. Assim, Irwin busca traduzir e tornar relevante a metafísica aristotélica para os debates da filosofia analítica.
Finalmente, em The Development of Ethics (2007), Irwin aproxima Aristóteles do naturalismo ético moderno. Essa corrente filosófica busca fundamentar os fatos morais em fatos naturais, e Irwin argumenta que a concepção aristotélica da função humana, central na Ética a Nicômaco, se encaixa nesse paradigma.
A abordagem de Irwin também suscita debates. Alasdair MacIntyre critica o que considera uma “domesticação” de Aristóteles, argumentando que Irwin negligencia o crucial contextualismo histórico do pensamento aristotélico. Além disso, há tensões com a hermenêutica continental, cujos expoentes, como os heideggerianos, criticam a “dessubstancialização” do conceito de physis (natureza) na filosofia analítica. Heideggerianos (por exemplo, Hubert Dreyfus) criticam leituras analíticas por “achatarem” o conceito de physis de Aristóteles. Contudo, essa é mais uma divisão mais ampla entre continental e analítico na filosofia contemporânea que exatamente uma questão interna aos estudos aristotélicos.
Impactos dos debates
A obra de Gotthelf influencia significativamente a filosofia da biologia, especialmente nas discussões em torno da “neo-teleologia” na evolução, como exemplificado pelas contribuições de Denis Walsh. Da mesma forma, o naturalismo ético de Irwin exerce considerável influência, embora continue a ser um ponto de discórdia; enquanto “Natural Goodness” de Philippa Foot apresenta uma perspectiva comparável, outros, como Bernard Williams, expressam ceticismo em relação a tais abordagens.
As abordagens de Gotthelf e Irwin diferem em seu foco principal e metodologia. Enquanto Gotthelf se concentra na biologia e na metafísica da vida, utilizando uma exegese detalhada dos tratados biológicos de Aristóteles, Irwin prioriza a ética, a lógica e a teoria da substância, empregando a análise conceitual e a reconstrução racional. As influências intelectuais também variam: Gotthelf se inspira na biologia evolutiva e na teleologia, enquanto Irwin se baseia na filosofia analítica, em Quine e em Kripke. As críticas comuns a essas abordagens refletem suas diferentes ênfases: Gotthelf é acusado de reducionismo biologicista, enquanto Irwin é criticado por abstrair excessivamente o pensamento aristotélico de seu contexto histórico.
No entanto, esses debates são cruciais para a compreensão contemporânea de Aristóteles. Para a biologia, a interpretação de Gotthelf demonstra que Aristóteles antecipou debates modernos sobre a teleologia na natureza, como o neofinalismo na biologia teórica. Para a ética, a abordagem de Irwin oferece um modelo para naturalizar a moralidade, buscando fundamentar os valores em fatos sobre a natureza humana, sem recair no positivismo ético.
SAIBA MAIS
- Aristóteles. De Anima (On the Soul). Translated by J. A. Smith. In The Complete Works of Aristotle, edited by Jonathan Barnes, vol. 1. Princeton: Princeton University Press, 1984.
- Aristóteles. Ética a Nicômaco (Nicomachean Ethics). Translated by Terence Irwin. Indianapolis: Hackett, 1999.
- Aristóteles. Partes dos Animais (Parts of Animals). Translated by William Ogle. In The Complete Works of Aristotle, edited by Jonathan Barnes, vol. 1. Princeton: Princeton University Press, 1984.
- Cooper, John M. “Hypothetical Necessity and Natural Teleology.” In Philosophical Issues in Aristotle’s Biology, edited by Allan Gotthelf e James G. Lennox, 243–274. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.
- Gotthelf, Allan. Aristotle’s Concept of Final Causality. New York: Garland, 1987.
- Gotthelf, Allan. Teleology, First Principles, and Scientific Method in Aristotle’s Biology. Oxford: Oxford University Press, 2012.
- Gotthelf, Allan, e James G. Lennox, orgs. Philosophical Issues in Aristotle’s Biology. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.
- Irwin, Terence. Aristotle’s First Principles. Oxford: Clarendon Press, 1988.
- Irwin, Terence. Aristotle’s Metaphysics. Translated with commentary. Indianapolis: Hackett, 1999.
- Irwin, Terence. The Development of Ethics: A Historical and Critical Study. 3 vols. Oxford: Oxford University Press, 2007–2009.
- Jaeger, Werner. Fundamentals of the History of his Development. Clarendon Press, 1948.
- Nussbaum, Martha C. The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.


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