A tragédia de Medeia em um ato

Medeia

PERSONAGENS

DEA MEDOMAI, professora de literatura,
JACINTO DE YOLCO, professor de linguística.

CENÁRIO

Uma sala de um chalé em uma região montanhosa, com telhados de vidros e uma lareira.
Cena única: O casal, sentado à beira da lareira, folheia várias notas manuscritas em papéis avulsos.

ATO ÚNICO

JACINTO: Jasão é um herói mequetrefe que sequer consegue roubar o velocino de ouro.
DEA: De fato, seu sucesso só foi possível porque a princesa e feiticeira Medeia se apaixonou por Jasão. Para conseguirem o velocino, Medeia, com seus poderes e artimanhas, derrota os monstros, trai seu pai e mata seu irmão e foge com o amado para a Grécia.
JACINTO: Ainda assim, Jasão não consegue o trono da cidade de Iolcos e o casal mora por uma década em Corinto com seus dois filhos.
DEA: Mas a oportunidade de Jasão subir na vida aparece quando Creonte, o rei de Corinto, ofereceu-lhe a mão de sua filha.
JACINTO: Seria questão de tempo Jasão herdar o trono de Corinto.
DEA: É aqui que se inicia a peça de Eurípedes.
JACINTO: Esse retiro foi bom para finalmente produzirmos esse artigo. Fizemos bem em trazer as traduções do Trajano Vieira e a de Mário da Gama Kury.
DEA: São boas. Espero que o artigo seja aceito em uma publicação de renome.
JACINTO: Esse artigo pode dar outra possibilidade mais vantajosa para nós.
DEA: Bem, veremos. É uma peça focada nos personagens. A cena se passa somente na casa de Jasão em Corinto. Nunca aparecem mais que dois personagens por vez. Não há artifícios cenográficos que distraiam a plateia, exceto na saída final de Medeia.
JACINTO: São pontos importantes. Com a peça, Eurípedes acabou em último lugar no concurso teatral em 431 a. C..
DEA: Merecia o prêmio de seu público ateniense, mesmo porque destruía a imagem de Corinto, a inimiga de Atenas no começo da Guerra do Peloponeso.
JACINTO: Conforme você apontou, a peça praticamente não foi celebrada, sendo notável a ausência de alusões nas cerâmicas da época.
DEA: Sim, foi largamente digerida ou indigesta, (risos). De tanto que foi comentada e adaptada tornou-se canônica.
JACINTO: O julgamento de Medeia e Jasão nunca terminou.
DEA: Por isso que nosso artigo a quatro mãos inova com uma leitura contrastando as condições das mulheres gregas do século V d.C. e a situação feminina nas sociedades contemporâneas. Apesar da distância temporal e cultural, ainda têm aspectos comuns.
JACINTO: Falando nisso, esta é a versão final do artigo?
DEA: Destruí os outros borrões para não misturar com a versão passada a limpo. Cuide dela: só temos uma única cópia.
JACINTO: Sim, vou guardar com cuidado.
DEA: É fruto de dois meses de isolamento.
JACINTO: Uma recepção canônica da peça permite inferir que as maquinações são políticas, inclusive que a sujeição da mulher e a própria mulher como sujeito resultam da prática política.
DEA: (risos).
JACINTO: O que foi?
DEA: Por isso que em minha pesquisa faço provocações: Medeia seria uma nova teodiceia baseada na agência humana e sua consequente justificação da política informada pelas condições sociais dos agentes. Mas, há possibilidades de discussão.
JACINTO: Falando em discussão, sabe aquela vaga permanente naquele departamento prestigioso? O decano insinuou que é minha. Basta de uma monografia inteligente como essa para convencer o comitê.
DEA: É, mas só tem uma vaga e somos dois. E nós dois fizemos o artigo.
JACINTO: Então, não repita o erro de Medeia e mate suas chances. Se eu conseguir a vaga, consigo uma bolsa ou outra coisa para você lá dentro de dois ou três anos.
DEA: Medeia não cometeu erros, como os erros de Helena, Pandora ou Psiquê. Ela própria é mestra de suas ações. O filicídio foi deliberado. Não foi fruto de engano, ingenuidade – meio machista isso, não?! – ou dos caprichos divinos. Talvez seja possível ler uma mensagem tropológica na peça.
JACINTO: Qual seria a moral da estória?
DEA: (Põe-se em pé e aproxima–se pensativa da lareira) A moral da estória seria não negar a humanidade aos humanos, tampouco negar a humanidade às mulheres. Caso contrário, as consequências serão sangrentas.
(Atira o manuscrito ao fogo)


Reza a lenda que esse manuscrito destruído por Dea foi recuperado por um filólogo desconhecido. Teria sido publicado como um ensaio com a autoria de Leonardo Marcondes Alves (uma pseudepígrafa, talvez?) na revista literária A Hora da Escrita (Issuu), Instagram @ahoradaescrita, editada por Sofia Mello Lungui e Rafael S. Agostinho Jorge.

Tal revista combina representações artísticas do ser humano (e suas circunstâncias) com uma interpretação crítica. Tudo isso na forma de contos, ensaios literários e poemas.

Além dessa tragédia grega, esse número aborda desde Clarice Lispector (que inspira o nome da revista) até um retrato social dos impactos da COVID-19.

A arte da ilustração é de Rafael Athaualpa Alves Petracco, @ludius.07

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