—Depressa!
—É muito alto!
—Deixe de frescura, pule!
O counch potato despencou maduro muro abaixo.
—Ai meu joelho!
—Quebrou? Não!? Então corra!
Folhas úmidas e cortantes batiam na nossa cara, galhos machucavam os braços que pouco nos protegiam e abriam caminho no matagal denso. Não dava para ver nada naquele emaranhado vegetal e noite sem lua. Ao contrário do que se poderia supor à primeira vista, o gorducho era bem ágil. A rapidez em contraste com seu tamanho resultava do próprio tratamento: correr na esteira à velocidade 14 com as mãos atadas.
Cinco minutos depois, ofegantes, chegamos à estrada de terra. A vida do spa não era mole. Ao menos as horas de exercícios me deixaram com um preparo mínimo para correr nessas escapadinhas. Meu colega de suplício fazia o trajeto pela primeira vez. Senti um desgosto ter sua companhia fracassada e mimada, mas precisava de alguém para me pagar o rango.
Já longe dos muros, tive que aguentar os quarenta minutos de caminhada até a vendinha com os soluços, queixas e choramingos.
Encontramos uma portinha com uma luz amarelada. A vendinha de secos e molhados não era grande coisa, mas parecia o céu.
O dono, cuja cara magra era ampliada pelos seus óculos enormes, mirou seus novos clientes com um olhar cúmplice. O uniforme, molhado com o suor e esverdeado com o mato amassado, indicava nossa procedência óbvia.
Exaustos, demandamos bife com fritas e duas latas de guaraná.
Os olhos do dono, como dois besouros gigantes, movimentavam desconfiados. O dono continuou impassível. O comparsa percebeu e arrancou do elástico da calça dois rolos de dinheiro amassado e suado. O rosto envincado do vendeiro iluminou-se mostrando uma fileira branca postiça.
Fomos para os fundos tomar os assentos naquela imunda e empenada mesa dobrável de metal e cadeiras que rangeram ao peso do meu cúmplice. Sob a fraca luz de uma única lâmpada, meu companheiro parecia ainda mais um mané. Ele devia pesar o dobro de mim. Seu estado era deplorável, transpirava às bicas pelo seu moletom cinza manchado de sujeira e transpiração.
As batatas caras eram rançosas, molengas e salgadas – tudo o que precisávamos para sair da dieta inclemente de caldos ralos, saladas insossas e gelatina sem gosto da clínica de emagrecimento. A disciplina era rígida. “Garantimos 100% de sucesso se seguirem nossas regras” – repetia a nutricionista-chefe. “Ninguém saiu daqui gordo” era o mantra. Meu comparsa no crime engolia aquela carne solada, gordurosa e de terceira. Evitei olhá-lo.
Já saciado, começou suas lamúrias de culpa e temor que nos descobrissem. Reclamou mais uma vez do joelho contundido. Escutei calado.
Sabendo da antiguidade dos doces, limitei-me a outro refrigerante, enquanto o gorducho recebia das mãos sujas do vendeiro meia-dúzia de gomas bicolores açucaradas. Algumas baratas perderam o lar essa noite.
O balofo estocou as guloseimas nos bolsos, contou as notas enroladas e úmidas, entregou-as todas para o vendeiro. Saímos pela estrada escura.
Decidido a abreviar meu suplício, sugeri pegarmos um atalho pelo mato. Subserviente, o chato seguiu-me silencioso, saboreando as gomas. Já fazia alguns minutos que andávamos, quando me dei conta que não estava seguro do caminho. Se ao menos tivesse meu celular para iluminar o caminho ou usar o GPS… mas nada. Estava ferrado, mesmo. Sem transparecer meu pânico, continuei a abrir o caminho com uma falsa confiança até que senti um forte cheiro de borracha queimada, muito próximo. Como não dava para ver coisa alguma, parei e mandei meu colega ficar calado. Merda! Barulhos de passos estalando os gravetos e folhas.
—Será que os funcionários nos acharam?
—Cale a boca!
Desorientado, achei melhor nos escondermos atrás de uma raiz elevada de uma árvore e esperar a pessoa passar. O gorducho tremia de medo e choramingava qualquer coisa. Tentei mantê-lo calmo.
—Duvido que sentiram nossa falta. Às 4 da manhã? Deve ser algum empregado contrabandeando comida…
Meu engano.
Atrás de mim, escutei um galho quebrando. Uma pancada. Desacordei. O desgraçado para salvar o couro resolveu me deixar de isca.
Acordei quando já amanhecia, com a cabeça dolorida. Vi um rastro de mato pisado. Segui-o até deparar com um tronco riscado com arranhões e…coberto de sangue! Saí em disparada em pânico. Caí algumas vezes, encontrei a estradinha. Mais calmo, arranjei um bastão bem ameaçador e andei o mais rápido o quanto meu fôlego permitia. Não demorou muito para eu pegar a trilha para o spa. Suei frio quando tive de entrar na floresta novamente, mas logo me deparei com o muro. Escorei o bastão contra a parede, peguei impulso e alcancei o topo. Não havia ninguém do outro lado. Saltei e corri discretamente até meu quarto. Tomei um banho e pulei na cama.
À hora do café-da-manhã a sirene soou. Coloquei o odioso moletom e fui ao refeitório. Queria encontrar o covarde desgraçado. Nem sabia todos os palavrões com que iria xingá-lo. Já estava decidido a espetar o garfo na mão dele e roubar-lhe a sobremesa por uma semana. Mas, nada. Não apareceu.
Esperei o horário do almoço. Nada dele. Concentrei-me no caldo ralo, dessa vez com sabor carne. Mordi algo doce e com uma textura borrachuda. Cuspi um pedaço de uma geleia bicolor.
Crédito da foto: Palácio de Queluz (lugar lindo, nada assombroso), por Carla Borges.
CurtirCurtir
Adorei o conto. Mas acho que vou evitar as jujubas por esses dias…
CurtirCurtido por 1 pessoa
nada de sair à noite comprar doce.
CurtirCurtir
Texto com linguagem simples e rico em detalhes, tornando o conto quase visível.
Aguardando a continuidade.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Obrigado. As aventuras do gordinho do spa só podem piorar, hhohohohohoo.
CurtirCurtir