Meio século do maio de 1968

Maio de 1968 foi a revolução alternativa. Politicamente foi uma revolução abortada, mas são inegáveis seus efeitos duradouros na mudança da mentalidade francesa e mundial.

Nos princípios de maio de 1968 um grupo de estudantes em Paris-Nanterre faz alguns protestos. As demandas eram um tanto confusas: acesso aos dormitórios femininos, reclamações contra o autoritarismo universitário, melhores condições de vida dos estudantes, preocupação com futuro do trabalho, solidariedade com os jovens americanos que enfrentavam a convocação militar para irem ao Vietnã. Deveria ser mais um protesto trivial. Afinal de contas, a própria Universidade de Paris (e a universidade como instituição independente) nasceu no século XIII em resultado de um protesto estudantil. Mas o movimento cresceu e as barricadas tomaram as ruas de Paris. Seguiu-se uma crise política, social e trabalhista.

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Contexto e influências

  • Gaullismo: A França vivia uma década do regime gaullista. Desde 1958, o general Charles de Gaulle, o herói da 2ª Guerra Mundial, dominava o ambiente político como o forte presidente da Quinta República. O crescimento econômico, financiado pelo Plano Marshall, consolidou esse arranjo político-social. O discurso patriótico exigindo consenso por de Gaulle refletia em um estado centralizador e forte com uma sociedade autoritária, temerosa das influências estrangeiras, quer comunistas, quer anglófonas. Tanto os nacionalistas e reacionários quanto la gauche estavam desapontados com a postura que de Gaulle tomava a respeito da Argélia e outras colônias.
  • Contra-cultura juvenil: subculturas juvenis norte-americanas – os beatnicks, o rock’n’roll e o imaginário dos rebeldes-sem-causas como James Dean – foram exportados pelo cinema, TV, rádio, moda e HQs. Todavia, a geração paterna via essas manifestações culturais com desdém ou como delinquência. Essas diferenças de orientações, valores e interesses causavam conflitos geracionais. Em 1966 de Gaulle teria reagido a um relatório sobre a situação dos jovens franceses com a recusa de considerá-los uma categoria com necessidades próprias: para o general, o estado deveria servir a todos os franceses.
  • Pressão demográfica e as universidades: a juventude da geração baby-boom do pós-guerra estava chegando em massa à educação superior. Havia insatisfação com as condições cada vez mais precárias de estudo e a ansiedade de se conseguir emprego depois de formado. As faculdades de filosofia e letras passaram de 36 mil alunos em 1950 para 170 mil em 1967. Em cinco anos, o número total de estudantes no ensino superior passou de 250 mil para 500 mil em 1968. O sistema universitário era organizado como um funil, somente com um catedrático por disciplina/curso e apoiado por um séquito precário de auxiliares e assistentes. E a iniciativa privada não conseguia absorver essa nova população, tampouco os egressos estavam preparados para o mundo de trabalho com base na estrutura curricular vigente.
  • Segunda onda feminista: desde os anos 1940 essa onda contestava o papel doméstico da mulher em sociedades democráticas e industrializadas. A publicação de O segundo sexo de Simone de Beauvoir vinha desafiando os papéis de gêneros tidas como “naturais”. Como consequência, havia uma atmosfera contestadora à autoridade estabelecida, principalmente aos símbolos de poder. Na pauta feminista ganhava espaço a liberação sexual.
  • Movimentos intelectuais: O existencialismo de Sartre, Camus e de Beauvoir conclamava à produção individual do sentido. Tacitamente, esse humanismo fundado no livre-arbítrio contrapunha-se a uma concepção de mundo determinista fundada no estruturalismo ou na psicanálise, outras grandes correntes em voga entre os franceses. Há um tempo o movimento artístico e político Situacionismo Internacional, liderado por Guy de Bord, vinha alcançando visibilidade entre a juventude francesa. O situacionismo seria a junção do surrealismo político com a pop culture para contestar tanto a sociedade de consumo capitalista quanto a truculência do estabelecimento comunista.
  • Movimento pelos direitos civis: havia em todo o mundo um sentimento de solidariedade com as campanhas de Martin Luther King, assassinado no dia 4 de abril de 1968.
  • Protestos estudantis estavam em curso ao redor do mundo: pelos direitos civis, apoio às causas anti-colonialistas, pela democracia e contra a convocação para o serviço militar no Vietnã. Em abril de 1967 milhares de jovens norte-americanos queimaram a convocação para o serviço militar e fizeram passeatas, organizados pelos Students for a Democratic Society. Na Nigéria, Espanha, Itália, Tchecoslováquia, Reino Unido, Alemanha, Polônia, Brasil e México, estudantes também reclamavam pela liberdade.
  • Rejeição da ortodoxia marxista soviética: em geral, a gauche francesa não apoiava a política partidária da Internacional Comunista liderada pela União Soviética. Emergiam as alternativas à ortodoxia marxista, como a Escola de Frankfurt – mais afoita à crítica social que à militância política – bem como tendências revolucionárias como o maoísmo, o trotskismo e o anarquismo, além dos não alinhados. A repressão brutal pelos soviéticos à Primavera de Praga era reminiscência da invasão da Hungria em 1956. Os partidos comunistas e socialistas da Europa Ocidental eram vistos pelos jovens com desconfiança por apoio ou por omissão às atitudes totalitárias soviéticas.
  • Exaustão do sistema de Bretton Woods: os trinta gloriosos anos de desenvolvimento econômico guiados pelo estado de bem-estar social e financiados pelo sistema financeiro internacional estabelecido em Bretton Woods começavam a dar sinais de fissuras. Criou-se uma expectativa de padrão de consumo que, visivelmente, não seria para todos, apesar do discurso meritocrático. A fé no progresso tecnológico e na sociedade de consumo começava a ser questionada.
  • Tensão da guerra fria: a corrida armamentista nuclear e os incidentes entre os Estados Unidos e a União Soviética geravam insegurança ao redor do mundo.

Cronologia

22 de março

Iniciam protestos organizados pela Union National des Étudiants de France (UNEF) e pelo Syndicat National de l’Enseignement Supérieur (SNESup), com apoio de pequenos grupos de radicais – maoístas, trotskistas e marxistas revolucionários. O protesto era contra a discriminação de classe social e contra a gestão dos fundos da universidade sem participação dos estudantes e professores. Dissipado, o movimento responderia um processo disciplinar em Nanterre. Pequenos atos ocorrem em várias faculdades de Paris e continuam através de abril.

A crise universitária: 2 a 12 de maio

2 de maio

Os estudantes interrompem as aulas em Paris-Nanterre, uma das novas universidades construídas nos subúrbios de Paris para atender a demanda crescente, mas virtualmente galpões de concreto para uma educação industrial e desumanizante. A Universidade de Paris-Nanterre é fechada e os protestos deslocam-se para o centro de Paris.

3 de maio

A Sorbonne é ocupada. Temendo conflito entre os ocupantes e o movimento estudantil nacionalista-autoritário Occident, a administração da Sorbonne pede intervenção da polícia. A polícia aprende cerca de 500 manifestantes com violência. Os estudantes montam barricadas pelo Quartier Latin, o bairro universitário à margem esquerda do Rio Sena, em Paris. Escaramuças entre as tropas de choque e os estudantes aumentam a visibilidade do movimento.

6 de maio

Suspensas as aulas na Sorbonne, gerando revolta entre os estudantes que se mantinham até então neutros quanto ao movimento. Os protestos espalharam-se pelas províncias em solidariedade. A repressão policial intensifica. Representantes dos discentes fazem um ato no Arco do Triunfo exigindo que não fossem indiciados os estudantes detidos e que a polícia deixasse as universidades, as quais deveriam ser reabertas.

7 de maio

Manifestações em várias cidades. Cerca de 30 mil pessoas fazem protestos em Paris. Os embates se intensificam entre a polícia e manifestantes no Quartier Latin. Manifestantes denunciam o uso de agentes provocadores da polícia nos atos de vandalismo.

Noite de 10 a 11 de maio

No final de semana, a tensão e violência crescem. Tiros, bombas de gás, carros queimados, vitrines quebradas deixam cerca de mil feridos. A polícia abandona o Quartier Latin.

O protesto estudantil até então era tido como “normal”. Por exemplo, o ministro da cultura, André Malraux tinha almoçado com o escritor José Bergamín nos arredores da Sorbonne e passou pela universidade ocupada para deixar Bergamín e voltar à sua rotina. Mas a escalada da violência começou a preocupar o governo. O primeiro-ministro Georges Pompidou voltou de uma viagem do exterior e promete a reabertura das universidades e a soltura dos estudantes detidos.

A crise social-trabalhista: 13 a 27 de maio

13 de maio

Enquanto os gaullistas celebravam os dez anos da insurreição de Argel, na qual marcou o início da Quinta República, líderes trabalhistas juntam-se aos estudantes para protestar. Ocorrem manifestações em mais de 150 localidades na França e em Paris,

200 mil pessoas se reúnem em Denfert-Rochereau. O Partido Comunista Francês e as centrais sindicais Confédération Générale du Travail (CGT) e a Force Ouvrière convocam uma paralisação.

14 de maio

Paralisação na fábrica da Sud-Aviation em Nantes.

15 e 16 de maio

Operários da Renault paralisam e a greve se espalha por outras montadoras da região parisiense e entre mineradores e siderúrgicos da Lorena. O Teatro Nacional em Paris é tomado e transformado em local de assembleia permanente. Cerca de 50 fábricas são ocupadas.

17 e 18 de maio

Controladores aéreos e trabalhadores de outros meios de transporte entram em greve. Trabalhadores da rádio e TV – monopólio estatal da ORTF –  também paralisam, aumentando a sensação de greve-geral. Com os transportes e transmissões interrompidos, trabalhadores de colarinho branco e técnico-profissionais também aderem à paralisação: professores do ensino básico, funcionários públicos e bancários. O setor do cinema também parou, com jurados do festival de Cannes renunciando e diretores retirando seus filmes do evento.

22 de maio

Estimava-se que 10 milhões de trabalhadores franceses (quase dois terços da força de trabalho) estavam paralisados.

24 de maio

Manifestantes queimam a bolsa de Paris. Radicais entusiasmados e alarmistas temerosos pensam estar vivendo uma nova Queda da Bastilha e o fim do capitalismo. Mas, o próprio Partido Comunista Francês e a CGT tentam apaziguar o movimento, perdendo o pouco de controle que tinham sobre os protestos.

25 e 27 de maio

Pompidou se reúne com líderes sindicais e patronais no ministério do trabalho na rue de Grenelle. O acordo prevê aumento de 35% do salário mínimo e aumento de 10% dos salários correntes em duas etapas, além de assegurar vários direitos sindicais dentro das empresas. Aparentemente, as manifestações chegariam ao fim.

A crise política: 27 de maio a 23 de junho

27 de maio

Os empregados da Renault ligados à CGT rejeitam os acordos da rue Grenelle.

Uma assembleia dos trabalhadores e estudantes se reúne no estádio de Charléty. Passam a discutir a substituição do regime gaullista, tendo como candidato à presidência Pierre Mendès France, como representante unificado dos movimentos sociais. Todavia, Mendès France não toma uma posição.

28 de maio

François Mitterrand, líder dos socialistas moderados da Fédération de la Gauche Démocrate et Socialiste convoca uma coletiva de imprensa e se apresenta como o candidato dos movimentos sociais, tendo Mendès France como primeiro-ministro provisório. Hesitante, Mendès France anuncia sua intenção de formar um governo, inclusive em coalizão com os comunistas, caso de Gaulle renunciasse. A atenção se volta para de Gaulle. Onde estaria o presidente?

29 de maio

De Gaulle cancela sua reunião de gabinete e viaja secretamente ao posto militar francês em Baden-Baden, na Alemanha Ocidental, para conversar com o general Massu. A desinformação e a ausência do presidente fazem com que o impacto dessa viagem repercuta mal mesmo entre os governistas. Nem Pompidou soubera da viagem secreta. Especulava-se que de Gaulle renunciaria a qualquer momento.

30 de maio

Às 16:30 de Gaulle fez um pronunciamento em cadeia nacional de rádio. Usando um tom que evocava suas declarações durante a 2° Guerra e na crise da Quarta República, de Gaulle falou da ameaça do comunismo totalitário e da necessidade de restaurar a ordem pela força. Declarou dissolvida a Assembleia Nacional e convocou novas eleições para junho.

À noite, 400 mil pessoas fazem uma passeata pelos Champs-Élysées apoiando as medidas presidenciais. Parecia ser uma passeata espontânea, mas vinha sendo organizada pelos gaullistas dias antes.

Junho

As pessoas voltam ao trabalho e os estudantes encerram os protestos. Os partidos políticos se preparam para as eleições. Os gaullistas reorganizam-se sob um novo partido, a Union pour la Défense de la République (UDR), alegando que apoiavam as reformas, mas desde que ordeiras. Era, então, a quarta vez que os gaullistas fizeram um rebranding de seu partido.

12 de junho

O governo proíbe as demonstrações. Inicia-se a dissoluções dos coletivos estudantis.

16 de junho

A Sorbonne é retomada pelas autoridades.

23 e 30 de junho

Eleições. Os gaullistas ganham com uma maioria confortável o suficiente para não precisar fazer coalizões. Os socialistas e comunistas perdem assentos na Assembleia Nacional.

14 de julho

No dia da Queda da Bastilha ocorrem protestos isolados e reprimidos.

10 de julho

Maurice Couve de Murville nomeado primeiro-ministro em lugar de Pompidou, que passa a articular a sucessão do velho de Gaulle.

27 de abril de 1969

Buscando receber apoio popular, de Gaulle convocou um referendo para confirmar sua permanência na presidência. Porém, 53% dos eleitores pedem sua saída.

15 de junho de 1969

Georges Pompidou sucede a de Gaulle como presidente.

Agenda

Não havia uma pauta comum. Entretanto, havia causas declaradas e demandas negociadas. Ao nível das causas declaradas os slogans “é proibido proibir!”, “Sejam realistas: exijam o impossível”, “Sou marxista da tendência de Groucho”, “Marx, Mao, Marcuse!”, “A imaginação [seja levada] ao poder”, “O estruturalismo não ganha as ruas” refletem uma postura libertária.

Havia um sentimento contrário ao paternalismo autoritário e centralizador do estado gaullista. Fora um movimento de massa com sentimentos tanto anti-capitalista quanto anti-comunista. Em contraposição, trabalhadores e estudantes exigiam maior autonomia participativa, a autogestão. Seria essa a grande pauta negociada.

Em termos práticos, os estudantes demandavam maior controle sobre o ensino e controle das universidades. Os empregados queriam melhores termos nas relações contratuais. Apesar desses anseios “pequeno-burgueses”, o movimento de 1968 passaria ao imaginário como exigindo um mundo mais pacífico e justo.

Líderes

O triunvirato estudantil era composto por Daniel Cohn-Bendit, Alain Geismar e Jacques Sauvageot.

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  • Daniel Cohn-Bendit, Dany le rouge, era um estudante de sociologia em Nanterre. Tinha 23 anos na época do movimento. Nascido apátrida na França filho de judeus alemães e, por ser cidadão alemão, foi deportado, mas apareceu uma semana depois em Sorbonne com uma barba falsa. Provocador irônico e satírico, incomodava tanto os comunistas quanto os gaullistas. Tornou-se político do partido Verde e eurodeputado.
  • Alain Geismar era um jovem físico e engenheiro de minas de 29 anos em 1968. Secretário da SNESup desde 1967, era adepto do maoísmo francês.
  • Jacques Sauvageot era um estudante de direito e história da arte. Vice-presidente da UNEF, tinha 25 anos. Em 3 de maio foi detido no Quartier Latin.

Intelectuais

Na França a figura pública do intelectual tem relevância política. As reações dos nomes mais conhecidos da época variaram, desde ignorar até engajar com os movimentos. Em suma, houve uma perda das hegemonias das “grandes narrativas” marxista, psicanalítica e estruturalista em prol de posições menos ortodoxas que atacavam qualquer forma de autoritarismo.

Louis Althusser representa o declínio da ortodoxia das grandes narrativas com o maio de 68. O filósofo inspirava os estudantes, que criaram a Union des jeunesses communistes marxistes-léniniste na busca de uma síntese do marxismo, estruturalismo, psicanálise e cristianismo. Althusser não participou dos acontecimentos de maio, pois estava internado. Mais tarde, deu opiniões ambíguas ao movimento. Ora repetia a posição oficial do PCF de considerar as manifestações como atitudes infantis, ora achava que fora o maior movimento social francês desde o final da ocupação alemã. Desapontados, seus seguidores buscaram outras agendas, do movimento ecológico à liberação sexual.

Na antropologia, a escola chamada de “marxismo estrutural” que teve inicialmente Althusser por referência, passou a favorecer a designação “antropologia da libertação”. Antropólogos como Claude Meillassoux, Pierre-Philippe Rey, Maurice Godelier e Emmanuel Terray passaram a utilizar conceitos teóricos marxistas e estruturalistas, mas sem haver uma conotação determinista. Por fim, essa própria corrente perderia sua influência, dando lugar a enfoques identitários, da práxis e morais na antropologia francesa.

No vácuo deixado pela perda da relevância das “grandes narrativas”, as ideias de Derrida, Guattari, Deleuze, Foucault emergiram como correntes pós-modernistas questionadoras.

Os existencialistas se deram bem com o maio de 1968. As provocações de Sartre para a criação individual do sentido por meio de atos revolucionários eram congruentes com o espírito de 1968.

Os psicanalistas institucionais, já enfraquecidos pelo cisma de Lacan, ainda tiveram contestações baseadas em Reich, Marcuse, Guattari e Deleuze. O próprio Lacan passaria a advogar uma postura pós-estruturalista.

As grandes narrativas não sumiram, nem foram diretamente confrontadas (exceto pelos pós-estruturalistas), mas perderam muito de sua relevância em um mercado cada vez mais plural e competitivo das ideias. Floresceram a fenomenologia e hermenêutica, especialmente a tendência que se orientava pelo trabalho de Ricoeur, a práxis de Bourdieu e a abordagem sociológica liberal de Raymond Aron.

Resultados

Os resultados imediatos do maio de 1968 foram bem mundanos: reformas trabalhistas e universitárias, nada drástico. Não houve a esperada e temida revolução, mas ficou o espírito de Les soixante-huitards.

Esse espírito de 68 resume-se na quebra de tabus, abertura para diferentes expressões de sexualidade, inserção do ativismo de gênero nas discussões de políticas, valorização da cultura popular e do regionalismo (no caso da França, um desafio ao estado centralizador), pacifismo e campanha contra armas nucleares. A música de Bob Dylan, Joan Baez e Leonard Cohen expressaram esses valores de 1968. Tornou-se inspiração para os hippies dos anos 1970. Todavia, as crises políticas e econômicas nos meados da década de 1970 reduziram o otimismo utópico de 1968. Entretanto, ficaram alguns legados.

A mobilização política dos estudantes e trabalhadores fez com que passassem a ser levados a sério. A autogestão foi incorporada no desenho organizacional de várias empresas, serviços públicos e instituições de ensino. Politicamente, se inicia o declínio do gaullismo e o fim da carreira para de Gaulle.

As mulheres, apesar da ativa participação do maio de 1968, ficaram fora da agenda explícita de demandas. Entretanto, passaram a organizar grupos feministas nas universidades, no trabalho e nos bairros, muitos deles articulados pelo Mouvement de la Libération des Femmes.

Além das mulheres, a política identitária ganhou representatividade para os interesses de imigrantes, população LGBTS, pós-coloniais (especialmente pela disseminação das obras de Frantz Fanon e de Edward Said), racismo e pobreza, como expressos na obra de Renaud e Coluche. Com o tempo, essa política foi absorvida pela gauche não alinhada ao PCF.

Uma tendência política protagonista em maio de 1968 foi o maoísmo francês. Essa vertente surgiu na França a partir da ruptura sino-soviética e do reconhecimento da República Popular da China por de Gaulle no começo dos anos 1960. Em 1964 de Gaulle reatou as relações diplomáticas com a China do regime de Mao Tse Tung, em desafio à União Soviética (frise-se que estava rompida com Mao) e aos Estados Unidos. Vários coletivos maoístas franceses organizaram os protestos. Em comum, eram grupos estudantis e intelectuais, anti-PCF, anti-imperialista, anti-burocracia e defensores da democracia direta. Possuíam uma visão romântica da China e viam com bons olhos a Revolução Cultural, pois acabaria com a burocracia da intelligentsia partidária. O que era irônico, visto os ativistas serem exatamente intelectuais. A ironia não parava aí: havia até mesmo maoístas gaullistas. O Centre Marxiste-Léniniste de France era um grupo maoísta que apoiava de Gaulle, principalmente contra o imperialismo anglo-americano. Seria um dos poucos coletivos marxistas que não foi suprimido por decreto em junho de 1968. Até por volta de 1975, quando os maoístas se transmutaram em outros grupos, essa tendência representava o espírito de 68.

Com esse espírito anti-totalitário, após a publicação das obras-denúncias de Alexander Solzhenitsyn (e consciência que o regime de Mao não era tão utópico assim), formaram-se uma corrente de novos filósofos como Bernard-Henri Lévy, Maurice Clavel e André Glucksmann. Inspirados por Sartre e 1968, buscavam uma face humana alternativa ao capitalismo “burguês” e à burocracia autoritária dos comunistas.

Semelhante aos maoístas, as tendências revolucionárias como os trotskistas, anarquistas e os não alinhados se afastaram da política eleitoral e concentram-se nas fábricas e estudantes. Na linha oposta, os socialistas e comunistas se afastaram de suas bases e se tornaram cada vez mais focados em políticas eleitorais. Outros grupos, especialmente o Baader-Meinhof na Alemanha e segmentos do autonomismo na Itália, radicalizaram e passaram a empregar a violência como meio político.

O desapontamento com o sectarismo da gauche, resultou em vários pensadores políticos revisionistas, pós-comunistas e pós-socialistas, como Guy Lardreau, Christian Jambet, Jean-Paul Dollé, Michel Guérin e Philippe Némo.

Ainda em novembro de 1968, a reforma universitária veio com a loi Edgar Faure ou loi d’orientation sur l’enseignement supérieur. A cátedra como unidade acadêmica e organizacional foi substituída por departamentos nos quais havia gestão colegiada, com participação de docentes e estudantes. As dezessete instituições de ensino superior público foram reorganizadas em setenta unidades multidisciplinares, as Unités d’Enseignement et de Recherche (UER). A educação superior passou a ter três ciclos. O primeiro ciclo, o Diplôme d’Études Universitaires Générales (DEUG), passou a combinar formação técnica e teórica generalista para garantir o mínimo de habilidades aplicadas dentro de dois anos. No segundo ciclo, começava a especialização em um ano (licence) ou dois (maîtrise). O terceiro ciclo reunia a pesquisa e a aplicação avançada do conhecimento. Outros formatos de didática além da palestra foram reconhecidos e passaram a ser computados uniformemente pelas unidades de valor, noventa minutos semanais de estudos.

As religiões estabelecidas, como a Igreja Católica, a Igreja Reformada e a Comunidade Judaica, passaram a ver a sociedade francesa como mentes e corações a serem conquistados. Continuou o declínio institucional que caracteriza a secularidade francesa. Bastiões do catolicismo militante, com certa influência durante o regime gaullista, perderam terreno. Intelectualmente se reorganizaram, crescendo a influência do neotomismo como alternativa de assertividade em tempos de incertezas. Politicamente, esse catolicismo militante aliou-se ao nacionalismo e se apresentou como cruzados da cultura francesa diante das “ameaças” dos imigrantes muçulmanos, secularismo, cultura anglo-americana e a expansão geográfica e legal da nascente União Europeia. Entre os protestantes cresceu a divisão entre a ala evangelical e os mais politicamente engajados, como Leonel Jospin, Jacques Ellul e Paul Ricoeur.

A desconfiança nas instituições afetou as comunicações. Demandas pela liberação do monopólio da TV e rádio estatais cresceram; discussões sobre o financiamento público da imprensa, item. Popularizaram-se tabloides e editoras independentes, bem como a mídia underground de zines e rádios piratas. O satírico Charlie Hebdo que não poupa nenhuma forma de autoridade, principalmente religiosa, ganhou um público cativo.

Com o tempo, houve uma “rotinização do carisma” dos sentimentos de 68. A juventude militante envelheceu e a cultura juvenil de discos e quadrinhos passaram a ser exploradas pelo capitalismo da indústria cultural de massa. Os videoclipes musicais, as bandas de garagem, o Walkman, a moda descolada, os graffiti e a disseminação das drogas em uma logística de larga escala transformaram o rebelde-sem-causa em outro tijolo na parede. As crises econômicas dos anos 1970 e 1980 fizeram os sessenta-oitos reavaliarem suas prioridades.

Uma infeliz consequência de 1968 foi o enrijecimento dos preconceitos mútuos entre as instituições de manutenção da ordem e a manifestação democrática nas ruas. O uso da polícia de choque contra as passeatas obviamente já existia, mas a loi anti-casseurs e a loi Sécurité et Liberté passaram a enquadrar problemas sociais e posições políticas como coisas dignas a serem somente resolvidas às bordoadas. A reação foi a organização de grupos violentos como o Baader-Meinhof e a tática black-bloc.

Ao redor do mundo, manifestações estudantis e populares ganharam visibilidade. Porém, ao invés de uma primavera de liberdade, o reacionarismo ganhou força. Houve a invasão de Praga no final do verão de 1968. A violência global foi midiatizada, como o massacre de Tlatelolco quando o mundo se voltava aos jogos olímpicos na cidade do México. Nixon foi eleito enquanto os britânicos se digladiavam pelas declarações intolerantes do conservador Enoch Powell. O Brasil teve a promulgação do AI-5 que marcou a fase mais brutal da ditadura civil-militar.

Interpretações

O maio de 1968 pode ser considerado mais uma reviravolta ideológico-cultural que política. (Entenda-se cultura aqui como conjunto de atitudes, valores, estética e ideologias). A concepção do ser humano diante do mundo passa a ser repensada. Participação torna-se o valor orientador nessa reviravolta. Essa é uma das interpretações de um dos líderes, Geismar. De forma semelhante, o jornalista Zuenir Ventura corrobora que as passeatas de 1968 refletem uma mudança no curso das mentalidades e atitudes políticas.

Uma das interpretações canônicas porque o 68 ocorreu na França e teve um impacto distinto de outros movimentos sociais é a tese da société bloquée (sociedade estagnada). O sociólogo organizacional Michel Crozier via a França como uma sociedade estagnada. No país, as diferenças internas se acomodavam em um limite aceitável de pressões, sob uma organização sociopolítica rígida e não transparente. Volta e meia, a pressão era tanta que surgiam crises populares – como ainda continuam a cada sábado em protestos em praças na França e todos os dias nas periferias de Paris e Marselha.

O 68 passou para o imaginário social como centrado nos valores da pluralidade e tolerância. É um pouco disso. Mas também foi centrado nos interesses da individualização.

Saiba Mais

Aron, R. (1968) La Revolution introuvable, Paris: Fayard.

Bénéton, P. e  Touchard, J. (1970) “Les Interprétions de la crise de mai-juin 1968”, em  Revue française de science politique, 20, 3.

Capdevielle, J. e Mouriaux, R. (1988) Mai 68, l’entre-deux de la modernité Paris: Presses de la FNSP.

Caute, D. (1988) Sixty-Eight: The Year of the Barricades, Londres: Hamish Hamilton.

Crozier, M. (1975) La Société bloquée, Paris: Éditions du Seuil.

Geismar, A. (2008) Mon Mai 1968. Paris: Perrin.

Joffrin, L. (1988) Mai 68: histoire desévénements, Paris: Points-Éditions du Seuil.

Marini, M. (1992) ‘La Place des femmes dans la production culturelle’, em G.Duby e M. Perrot, (orgs) Histoire des femmes, vol. 5, Paris: Plon.

Morin, E., Lefort, C. e Castoriadis, C.(1988) Mai 1968: la brèche, Brussels: Complexe

Schivartche, F. (2008). “68 é antídoto contra intolerância mundial, diz FHC”. Entrevista. G1.

Schnapp, A. e Vidal-Naquet, P. (1969) Journal de la commune étudiante, Paris: Éditions du Seuil.

Ventura, Z. (2008) 1968: O ano que não terminou. São Paulo: Planeta.

Vine, R. (2018) The Long ’68: Radical Protest and Its Enemies. Londres: Allen Lane.

Weber, H. (1988), Vingt ans après: que restetil de ’68?, Paris: Éditions du Seuil.

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