
Volta e meia dou uma espiada em anúncios a procura de antropólogos para consultorias, conduzir etnografias, mediações comunitárias ou emissão de laudos. Quase sempre há requisitos impertinentes. Por vezes, há exigências mais para um acadêmico que para um pesquisador de campo. Outras vezes espera-se que se tenha experiência com o processo ou a população em foco.
Raramente especificam critérios típicos de um bom treinamento em antropologia. Sem problemas: soa condescendente, mas a função da antropologia aplicada é exatamente revelar as necessidades que, em geral, não são comunicadas apropriadamente.
Para quem pensa em contratar os serviços de alguém com sólida formação em ciências sociais, seria importante atentar-se a alguns pontos para uma seleção profissional. Por mais que tenho em vista a antropologia, esses critérios servem para contratar formados em sociologia, serviço social, ciências políticas, psicologia, economia, bem como profissões recentes como UX researcher, designer, arquiteto de soluções, business intelligence, pesquisador de marketing, dentre outros.
- Experiência prévia: O pleonasmo é proposital. O cientista social pode não ter antecedentes profissionais no tipo de trabalho, população, técnica de pesquisa para o qual se pretende contratar. E isso é totalmente irrelevante, pois idealmente em sua formação adquiriu uma base teórica rigorosa, domínio de metodologias complexas e uma capacidade de comunicação efetiva.
- Técnicas de estranhamento/familiarização: conhecer ou ter envolvimento prévio com os sujeitos ou tópicos de pesquisa pode enviesar a pesquisa, além de criar potenciais complicadores, como os conflitos de interesses. Mas, para isso há remédio. A técnica de estranhamento, ver as coisas com olhares externos compensa esses vieses. É o peixe que aprende a respirar fora da água. Por outro lado, a técnica de familiarização — o aprendizado sistemático, crítico e reflexivo de algo desconhecido — pode dar novas perspectivas. O peixe já imerso no aquário sequer nota a realidade da água, mas quem a pouco aprendeu a mergulhar vai notar mais coisas nesse novo meio.
- Se seus pares insistem em contratar somente com “experiência prévia”: peça para o candidato apresentar um estudo de caso de uma investigação feita ou leia seus artigos, tese ou dissertação. Preste atenção não tanto no resultado, mas na metodologia.
- Infelizmente há profissionais ruins: como em qualquer profissão, mas por falta crônica de sério investimento na formação dos cientistas sociais (principalmente nas pós-graduações), muita gente inteligente acaba discutindo teorias ou trabalhos alheios e não tem tempo ou grana para desenvolver sua própria pesquisa de campo. Consequentemente, há cientistas sociais que sequer sabem manipular uma planilha básica ou aplicar conceitos simples como uma análise FOFA/SWOT. Não faça generalizações com base nesses. Como mencionado, veja os caminhos percorridos nas pesquisas que já fizeram.
- Não correlação entre credencialismo e profissionalismo: a tendência é ter profissionais com mais habilidades a medida que fizeram cursos mais avançados. Entretanto, melhor contratar um bacharel em antropologia com extensivo trabalho de campo que um graduado, mestrado, doutorado e livre-docente com foco no pensamento de Albênzio Peixoto.
- A teoria orienta e a metodologia manda: é importante compreender quais dimensões da teoria social empregada (macro x micro, coesão x conflito, agência x estrutura, indivíduo x coletivo, sincronia x diacronia, particularismo x generalismo) e qual metodologia (qualitativa, quantitativa) sejam viáveis ou com as quais o pesquisador tenha maior habilidade.
- Falando em viabilidade: entenda que uma pesquisa robusta toma tempo e recursos. Fazer uma enquete com conhecidos do Facebook não é estudo quantitativo, tampouco filmar transeuntes no shopping com o celular é estudo qualitativo.
- Aprenda quais métodos e metodologias serão empregados: etnografia, estudo de caso, entrevistas aprofundadas, análise de discurso, análise de conteúdo, netnografia, discussão em grupo, questionários, formulários, pesquisa narrativa, histórias de vida, estudos por amostragens, estudos longitudinais, dentre outros. Por vezes, o pesquisador praticamente tem de “inventar” seu instrumento de pesquisa.
- Não presuma que números são mais confiáveis que uma análise qualitativa: cada abordagem tem seu lado forte e fraco. Métodos mistos também e nem sempre resolvem questões que uma abordagem exclusivamente quantitativa ou qualitativa resolveriam.
- Abordagens qualitativas visam entender: significados, parâmetros, tendências, associações. Por isso, dificilmente terão resultados preditivos de causa e consequência. Aliás, raramente abordagens quantitativas conseguem isso, geralmente descobrem correlações.
- Teoria não é só blablablá: referenciais teóricos são lentes de se ver o mundo, com conceitos e terminologias próprios. Além disso, guiarão no desenho e execução da pesquisa. Familiarize-se com as principais perspectivas e autores.
- Ferramentas são frequentemente necessárias: um programa de inferência estatística como SPSS e ou de investigação qualitativa como o ATLAS.ti custa caro além de requerer um treinamento que não é da noite para o dia. Há quem se vira bem com o pacote Office ou com o Google Docs e, até mesmo, com anotações no papel. Considerando que ferramenta nenhuma faz análise sozinha, contrate alguém capacitado.
- Um bom estudo requer um bom desenho de pesquisa: seria interessante apontar quais os propósitos da pesquisa e pedir que o cientista social faça um projeto de investigação contendo: quais são a questão de pesquisa e objetivos, a abordagem teórica, meios de coleta e análise de dados, potenciais dificuldades e conflitos de interesses, critérios de validação dos resultados e o formato de reportar as descobertas.
- Todavia, não espere que o projeto de pesquisa se cumpra à risca: É previsível que haja percalços e descobertas fortuitas pelo caminho. Assim, esteja preparado para ter adaptações na metodologia e nos objetivos da investigação.
- Compreenda o papel do cientista social: pode ser a tecnologia mais maravilhosa que já inventaram, mas sua aplicação demandará mudanças de hábitos, navegações de intricados labirintos burocráticos e legais, além do convencimento de pessoas em toda uma cadeia de suprimento. A inovação ou o produto não se difundirá por si só (a não ser que seja um meme 😛 ). O cientista social liga, comunica e traduz coisas para pessoas ou pessoas para pessoas.
- Ter os serviços de um bom profissional em ciências sociais significa aproveitar ou perder a chance de uma vida: há várias historinhas de terror do tipo “como a Nokia não escutou sua antropóloga e quebrou” ou mitos consagrados do tipo “como uma antropóloga sugeriu o botão verde para a Xerox, popularizando a máquina copiadora”. Só sei que foi assim.
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Muito bom, precisamos de trabalhos como esse de popularização da ciência com foco nas ciências sociais. Se já tem pouca gente para falar de física, química e astronomia o seu caso é do um em um milhão.
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Obrigado. É essa minha ideia: popularizar, desmistificar e tornar acessível o conhecimento formado às duras penas pela antropologia.
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Acho que você vai gostar de um artigo que achei (em inglês) https://www.meforum.org/articles/other/why-arabs-lose-wars
Assim, creio que uma aplicação interessante para a antropologia está justamente no meio militar.
Anos atrás vi uma palestra de um militar britânico defendendo justamente a importância do desenvolvimento de “consciência cultural” para membros do exército, especialmente no Iraque e no Afeganistão.O que seria apenas um certo grau de competência em antropologia, não? Por exemplo, ele defendia que até os soldados em campo precisam desenvolver um nível básico para entender que a linguagem corporal de outros povos.
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Obrigado pela indicação. Não conhecer os mecanismos da própria cultura é a fórmula certa para derrota. Não conhecer a cultura alheia resulta ou em genocídios ou em uma paz superficial e frágil.
Em termos gerais, o argumento do artigo é valido. Não adianta investir pesado em armamento se não sabem como as pessoas se comportam. Há alguns problemas conceituais, como por exemplo, a visão do autor do conceito “cultura”, visivelmente baseada em Huntington, não só é tecnicamente inacurada (cultura não é confinada, uniforme ou fixa a um povo), mas problemática ao confundir relação de causalidade com correlação. O sucesso de exércitos culturalmente diversos — como os janísseros, mamelucos e a Legião Estrangeira — demonstra que a cultura das bases étnicas podem contar menos que uma cultura organizacional eficiente. A própria independência dos países árabes em relação aos otomanos resultou de vitórias em guerras travadas de grupos tribais árabes (muitos lutando entre si) armados de espadas e mosquetes contra um das maiores e bem mais treinadas e equipadas forças armadas da época.
Os Estados Unidos tem já uma longa tradição em investir em inteligência cultural para fins militares. Durante a Segunda Guerra, houve o notável trabalho de antropologia aplicada de Ruth Benedict e dos antropólogos Gregory Bateson e Tom Harrisson. No Iraque e Afeganistão houve o controverso Human Terrain System (https://www.foreignaffairs.com/articles/afghanistan/2016-02-04/academics-foxholes).
O Brasil já demonstra um incipiente valorização da cultura. A Escola Superior de Guerra hoje abandonou o dogmatismo da doutrina da segurança nacional por um currículo que preza conhecer sobretudo a cultura brasileira.
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