Vieira: Sermão do nascimento do menino Deus

Este modo de dizer não pertence aos ouvidos, senão aos olhos.

Spacca. Vieira

O nascimento de Jesus Cristo é um evento significativo para praticamente todas as vertentes da Cristandade[1]. Abundam representações nas artes visuais e na música celebrando-o, além de gêneros artísticos – como os autos natalinos e presépios – surgidos a partir desse acontecimento. O sermão, gênero de oratória tão desprezado modernamente, também tem suas obras-primas sobre o tema. O sagaz Sermão do nascimento do menino Deus de padre António Vieira (1608 –1697) faz jus estar entre as cenas renascentistas da natividade ou oratórios como o Messias de Händel.

O sermão teria sido pregado pelo jesuíta no início de sua carreira no Colégio da Bahia. Talvez fora o primeiro sermão que pregara em 1633, mas somente seria publicado em 1748. A obra é estruturada pelo paradoxo do infante Jesus ensinar sem palavras, mas mediante seu próprio nascimento e circunstâncias correlatas. De início o pregador se escusa: “Não sou eu o que hei de pregar o nascimento de Cristo: o mesmo Cristo nascido é o que há de pregar o seu nascimento”. Obviamente Vieira não fez um quadro, um presépio ou montou um auto, mas empregou copiosas ilustrações e recursos retóricos nesse sermão.

Na história da retórica, especialmente em língua portuguesa, esse sermão introduz o pensamento oratório de Vieira, para qual deve a pregação ensinar, deleitar e mover sua audiência. Com a reflexão e prática, Vieira amadureceria sua arte homilética, apresentando mais tarde outra elaborada teoria da retórica no Sermão da Sexagésima.

O recurso do contraste permeia o Sermão do nascimento do menino Deus. Compara a voz humana e a divina: enquanto a voz humana é compreendida pelo ouvido, a voz divina é entendida pela vista. Do contraste entre mudez e proclamação Vieira infere que as ações devem portar a mensagem de seu ator. “A razão de as vozes de Deus se perceberem com os olhos, e não com os ouvidos, é porque as vozes de Deus não são palavras, são obras; e o juízo das obras não pertence ao ouvido, senão à vista: as palavras ouvem-se, as obras veem-se.” Com isso, Vieira faz uma síntese do que seria a mensagem ensinada por Jesus Cristo a ser imitada pelos que creem:

Diz Santo Agostinho, falando da Retórica de Deus; e, assim como Deus, antes de ser homem, ensinava sem estrépito de palavras, porque falava interiormente aos corações, assim, tanto que nasceu Menino, ensina também sem estrépito de palavras, porque fala exteriormente aos olhos: Et videamus hoc Verbum. (…) Não declarou as perfeições do orador pelas palavras que se ouvem, senão pelas ações que se veem. O mesmo responderei eu a quem me perguntar que ensina o nosso Orador infante, e como ensina? Não ensina com vozes, mas ensina com ações; não ensina o que diz, mas prega o que faz; não diz palavras, mas fala obras. Este mesmo Orador infante, que agora ensina sem abrir a boca, virá tempo em que a abrirá para ensinar.

Vieira, dessa forma, antecede o dito “demonstre, não diga”[2], unindo forma ao conteúdo. O Sermão do nascimento do menino Deus é uma obra digna de se ler integralmente. Como uma metarrepresentação do sermão, os quadrinhos em resolução maior no site do ilustrador Spacca demonstram a mesma impactante mensagem.

NOTAS

[1] Ainda que haja várias vertentes que não comemorem o natal ou a epifania, quase todos grupos religiosos herdeiros da mensagem de Jesus de Nazaré consideram a encarnação como um fato singular na história.

[2]  No inglês, “show, don’t tell”, técnica narrativa popular entre autores e publicitários de língua inglesa.

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